O impacto das cheias no noroeste fluminense

De longa data, ganhei fama de criador de caso, quando, na verdade, sempre desejei contribuir para encontrar soluções que respeitassem o ambiente, as economias comunitárias e a atividade agropecuária e industrial. É com este ânimo que comento a proposta apresentada pelo Conselho de Secretários de Defesa Civil do Norte e Noroeste Fluminense à Secretaria Estadual do Ambiente com o fim de reduzir o impacto de cheias em cidades do noroeste fluminense. Não tenho maiores informações sobre a proposta porque tomei ciência dela por meio de reportagem publicada na Folha da Manhã de 6 de março do corrente ano.

Já apreciada pela Agência Nacional de Águas (ANA), a proposta consiste em abrir canais extravasores saindo dos rios, no caso em foco, do Rio Muriaé, contornando as cidades atingidas por cheias e voltando ao rio à jusante da cidade. Esses canais, pelo que entendi, funcionariam como estradas de contorno que aliviam o fluxo de veículos no meio urbano. Há veículos que não precisam passar pelo núcleo urbano, pois desejam chegar a outro lugar. Assim, as vias de acesso só atenderiam àqueles que quisessem chegar à cidade.

A comparação foi boa? Creio que não porque os veículos desviados do centro retomam a estrada principal adiante da cidade contornada, enquanto os veículos que alcançam a cidade detêm-se nela.
As águas de cheias correndo por um rio e, em grande parte, desviadas para um canal de contorno voltam ao rio abaixo da cidade. Do mesmo modo, as águas que correm pelo rio não param na cidade. Elas correm até encontrar novamente as águas do canal lançadas novamente no rio à jusante. As águas só se dividem antes da cidade, mas se somam, talvez com maior ou menor vazão, no encontro do rio e da desembocadura do canal.

Por este ângulo, seria preciso abrir canais de contorno antes de todas as cidades porque o volume das águas não diminui no final.
Joelson Oliveira, Coordenador de Defesa Civil de Itaperuna, observou oportunamente que a solução deve ser coletiva, pois "eles (os canais) aumentam muito a velocidade da água. Se não for feito no município seguinte, a água chegará até ele com mais força."

A ideia de construir canais de derivação para atenuar impactos de cheias não é de hoje. Aliás, para o estreito horizonte histórico de nossos gestores públicos, é muito antigo. Miguel Alamir Baglione publicou uma série de memoráveis artigos sobre o assunto no jornal "Monitor Campista", em 1865. Sua proposta, contudo, não consistia em rasgar canais no Rio Paraíba do Sul antes de Campos e São João da Barra para descarregarem o volume desviado para o próprio rio abaixo das respectivas cidades, mas do Paraíba do Sul para a Lagoa Feia, que deve ser considerada um subsistema do Paraíba do Sul. Por este prisma, desviar águas do rio para a lagoa é desviar águas para o mesmo sistema hídrico. A solução foi adotada por todos os engenheiros sanitaristas, hidrólogos e pelo Departamento Nacional de Obras e Saneamento posteriormente, não resolvendo o problema das enchentes.
Isto porque as águas do Paraíba do Sul, em tempos de grandes cheias, não correm pelos canais como deveriam porque os ruralistas temem a inundação de suas propriedades. Quando o rio baixa, falta nível para a água entrar pelos canais.

Escoando do Rio Paraíba do Sul para a Lagoa Feia, era preciso encontrar uma saída para o mar. Havia uma saída natural pelo Rio Iguaçu. Contudo, buscou-se uma saída mais curta e mais rápida para o mar, primeiro pelo Canal de Jagoroaba ou de Ubatuba, concebido e executado pelo engenheiro Marcelino Ramos da Silva, em 1898. O competente engenheiro Francisco Saturnino Rodrigues de Brito previu que a solução não funcionaria e acertou. Voltou-se, então, à solução natural pelo rio Iguaçu e pela Vala do Furado. Os engenheiros, contudo, continuaram a defender uma saída mais curta e mais rápida.
Alberto Ribeiro Lamego, em 1940, entusiasta das obras do DNOS, acabou num dilema: as águas do rio que transbordam por sua margem direita caem em diversas lagoas e, dessas, para outras lagoas, em demanda ao mar. Todavia, alcançar o mar era e é um problema porque a energia oceânica, na costa norte-fluminense, é muito forte e tende a tapar todos os canais que defluem no oceano, a não ser os Rios Itabapoana, Guaxindiba, Paraíba do Sul e Macaé. Lamego estava certo. Os Canais de Ubatuba (ou de Jagoroaba) e da Flecha não conseguiram manter suas barras abertas. No caso do Segundo, o DNOS prolongou seu leito mar adentro, mas não solucionou o problema de obturação das barras.

O engenheiro Martins Romeu foi mais longe em termos de soluções arrojadas e caras para as cheias: propôs a abertura de um longo canal na margem esquerda do Rio Paraíba do Sul saindo das imediações de Campos e desaguando no mar. Ele equivaleria a um rio paralelo ao Paraíba do Sul para acelerar a drenagem e para navegação.

Na década de 1920, Saturnino de Brito examinou a proposta e se pronunciou sobre ela nos seguintes termos: "Na margem esquerda (do Paraíba do Sul) as condições das inundações são algo diferentes: - geralmente as águas saem do rio, aumentam lagoas e banhados, inundam terras, - mas, quando a cheia baixa no rio principal, as águas de inundação a ele voltam, quer normalmente, quer descendo paralelamente para entrar no rio à jusante."

Convém continuar ouvindo Saturnino de Brito, pois ele tem muito a nos ensinar ainda nos dias de hoje: "Portanto, na defesa contra as inundações nessa margem (esquerda) convém estudar como recurso auxiliar, a canalização das águas para a descarga à jusante, quer no Paraíba, quer diretamente no mar, em Gargaú. Esta obra - para dar resultado eficiente, como solução do problema, - custaria caríssímo, pois seria necessário cavar um rio desde a barra do Muriaé até o oceano." A riqueza do pensamento de Saturnino de Brito está em contemplar várias soluções para as cheias. Não apenas a abertura de canais e a construção de diques, mas também o aproveitamento de várzeas, banhados e lagoas como áreas de escape e de re tenção de águas no continente, da mesma forma que a conservação e a restauração de florestas à montante dos pontos críticos. O DNOS e o INEA esqueceram completamente tais soluções para se concentrarem única e exclusivamente na hidrologia.

Em 1940, o engenheiro Camilo de Menezes, da Diretoria de Saneamento da Baixada Fluminense, leu a proposta de Saturnino de Brito. Ele informa, num relatório datilografado a merecer publicação, que o grande engenheiro apenas deixou algumas anotações sobre o canal à margem esquerda do Rio Paraíba do Sul. Ou o estudo "Melhoramentos do Rio Paraíba do Sul e da Lagoa Feia" não havia ainda sido publicado ou Saturnino de Brito deixou apontamentos avulsos. Camilo de Menezes transcreve a nota: "Na margem esquerda, o estudo deverá abranger a série de lagoas e extravasores de sorte a: 1º - ver se é possível traçar o dique de defesa, ficando entre este e a margem do rio as lagoas e terras que continuarão inundáveis; 2º - traçar, para ulterior estudo completo, um canal de drenagem ligando as lagoas e tendo comunicação com o rio e, talvez, com o mar, na barra."

A primeira solução concebida por Saturnino de Brito é
lapidar: erguer um dique, na margem esquerda do Rio Paraíba do Sul muito mais afastado do atual, incluindo lagoas e todo o leito maior do curso d'água. Se esta proposta tivesse sido adotada pelo DNOS, hoje, os ruralistas não estariam reclamando tanto de alagamento de suas terras (em grande parte dentro do leito maior do rio) nem os conflitos entre proprietários e pescadores seriam tão excruciantes.

Mas Camilo de Menezes optou pela segunda alternativa, abandonando a foz no mar. A proposta de Menezes foi abrir um canal começando no Paraíba do Sul, dentro da cidade de Campos, cortando as Lagoas do Taquaruçu, de Brejo Grande e outras até chegar à Lagoa do Campelo. O canal seguiria o traçado do desativado Canal do Nogueira, que foi aberto no século XIX para fins de navegação. Da Lagoa do Campelo, o canal continuaria rumo ao norte, cortando a Baixa do Ariticum e desaguando no mar pela foz do Rio Guaxindiba. Camilo de Menezes aventava ainda uma variante para o grande canal, cujo início se localizaria à montante da cidade de Campos, no Canal do Jacaré, aproveitaria a Lagoa do Cantagalo (alguém se lembra dela?) e alcançaria a Lag oa de Brejo Grande, daí seguindo para a foz do Rio Guaxindiba. Segundo o autor da proposta, haveria apenas o problema de cortar o divisor de águas da ferrovia Leopoldina, considerado alto por ele. Este canal seria capaz de escoar de 900 a 1000 m3/s, sendo, portanto, mais eficaz que os canais abertos entre o subsistema Paraíba do Sul e o subsistema Lagoa Feia, que, no total, seria capaz apenas de drenar 930 m3/s no total.

Camilo de Menezes apontava uma série de vantagens para o canal da margem esquerda do Paraíba do Sul: aproveitamento de inúmeras lagoas, poucas desapropriações, reduzidas escavações, número diminuto de pontes e viadutos, benefícios imediatos à cidade de Campos, drenagem de muitas lagoas e brejos, proteção das terras mais ricas de ambas as margens do rio e comunicação mais rápida entre Campos e o norte da Lagoa do Campelo, pois o canal também se destinaria à navegação. Por fim, o engenheiro rejeitou a construção de um dique afastado do leito menor do Paraíba do Sul, incluindo nele muitas lagoas. Em suas palavras, "porque esta região é precisamente a mais fertil e que mais precisa de proteção, ao contrário da que l he fica ao norte, toda de restinga. O dique, caso se venha a construí-lo, deve ser próximo do rio." E complementava: "Aliás já há um dique, de comportamento satisfatório, que é a estrada marginal entre Campos e Barra Seca (a S.O. da Lagoa do Campelo), com ‘grade' propositalmente elevado para impedir transbordamentos do Paraíba. Pequenas correções torná-lo-ão perfeito."

Prudente, Saturnino de Brito propôs um dique na margem esquerda do trecho final do Paraíba do Sul bastante afastado do curso d'água, de modo a abranger as lagoas e a comportar as águas de cheia.

Camilo de Menezes entendia que este dique deveria ser colado à margem esquerda para permitir a ocupação de terras férteis. Ele ganhou. O dique já havia sido construído quando ele defendeu a proposta.
Posteriormente, esse dique serviu para a instalação de uma estrada, hoje administrada pelo DER-RJ com o nome de RJ-194. O dique permitiu a ocupação de muitas terras atrás dele, mas não oferece segurança aos proprietários, que desejam a elevação e a fortificação do mesmo. No entanto, a experiência vem mostrando que diques dentro do leito maior de um rio tendem a ser erodidos e destruídos pela força da água.

De volta ao grande canal da margem esquerda do Rio Paraíba do Sul, a idéia foi retomada pelo engenheiro Coimbra Bueno, cujo escritório projetou o magnífico plano urbanístico de Campos de 1944. O traçado do canal concebido por Coimbra Bueno teria início na margem esquerda do rio, entre a barra do Rio Muriaé e o estrangulamento do Fundão, alcançaria a Lagoa das Pedras, atravessaria a atual rodovia
BR-101 e a ferrovia para desembocar na Lagoa de Brejo Grande.

Também o escritório de Hildalius Cantanhede projetou um canal com origem próxima à barra do Rio Muriaé, valer-se-ia das lagoas de Guarus, cruzaria a BR-101 e a ferrovia, desembocaria na extinta Lagoa das Águas Claras e findaria na Lagoa de Brejo Grande. Não há, portanto, muita diferença entre os dois. A partir dos anos de 1940, a idéia de um canal auxiliar que corresse junto ao Paraíba do Sul até o mar, pela margem esquerda, foi sendo descartada.

Em 1969, os estudos encomendados pelo DNOS à Engenharia Gallioli retornam à idéia de um canal norte com dois traçados possíveis, ambos com início na margem esquerda do Rio Muriaé. Um conduziria as águas de cheias para a Lagoa da Saudade e outro para a Lagoa de Brejo Grande. Delas, um ou outro canal seria conectado a um segundo, rumando em direção ao Rio Guaxindiba até chegar ao mar, passando pela Lagoa do Campelo.

A solução da Engenharia Gallioli dependia, além do canal, de uma represa em São Fidélis para regularizar a vazão do Paraíba do Sul, de uma grande bacia construída com diques no triângulo que se forma na confluência do Rio Muriaé com o Rio Paraíba do Sul e o aproveitamento da caixa da Lagoa do Campelo. Seria, portanto, uma solução muito cara.
O DNOS abandonou a represa, a bacia de acumulação de águas e o grande canal. Em vez, abriu um canal saindo da margem esquerda do Paraíba do Sul, aproveitando em parte o Canal do Nogueira, construído no século XIX para fins de navegação, atingindo a Lagoa do Campelo. Este canal foi batizado de Vigário. Da Lagoa do Campelo à foz do Rio Guaxindiba, outro canal, de nome Engenheiro An tonio Rezende, alcançou o mar.

A solução do DNOS não tem funcionado a contento. Mas não se cogitou mais de um canal que sai do Paraíba do Sul antes de altura de Campos e volta ao mesmo rio à jusante, em ponto distanciado. Voltemos, agora, à solução proposta pelo Conselho de Secretários de Defesa Civil do Norte e Noroeste Fluminense à Secretaria Estadual do Ambiente com o fim de reduzir o impacto de cheias em cidades do noroeste fluminense.
A proposta consiste em abrir canais de derivação no Rio Muriaé antes de quatro principais núcleos urbanos: Laje do Muriaé Itaperuna, Italva e Cardoso Moreira. Em caso de cheias, cerca de 80% das águas do Muriaé seriam desviadas para esses canais, que contornariam as cidades e voltariam ao rio em ponto à jusante.

Assim, as sedes desses quatro municípios passariam a se situar em ilhas construídas por ação antrópica. A solução teria o ponto positivo de dividir as águas de cheias para livrar as cidades anualmente afetadas por alagamentos, como Cardoso Moreira, por exemplo. Mas, depois da última cidade contornada, as águas se reuniriam novamente e alcançariam Campos, que se situa na planície.
Talvez até com mais volume e velocidade. Este é o primeiro aspecto a ser observado na solução proposta. Em segundo lugar, a abertura de quatro canais na região serrana é mais difícil e mais cara que a construção de canais na planície fluviomarinha. Serão necessários estudos topográficos bastante precisos e muito dinheiro para romper formaç ões rochosas. Em terceiro lugar, a abertura desses canais não seria feita de imediato.

Sendo ou não sendo esta a solução, volto às propostas de Saturnino de Brito de reter água de cheia no continente.
Primeiramente, por meio do reflorestamento das Áreas de Preservação Permanente no noroeste fluminense, solução contemplada pelo Conselho de Secretários de Defesa Civil, mas também demorada. A solução mais rápida, no caso, é desimpedir as várzeas e lagoas das margens do Rio Muriaé para que as águas de cheia aí se alojem até que o nível do rio baixe, solução também aplicada ao Rio Paraíba do Sul.

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