A baixada dos Goitacazes

I

Recentemente, Marilene Ramos, presidente do Instituto Estadual do Ambiente (INEA), esteve em Campos anunciando a segunda etapa de recuperação da malha de canais da Baixada dos Goitacazes. De certa forma, ela reconheceu o fracasso da primeira fase, atribuindo-o ao assoreamento e à eutrofização do sistema. Em outras palavras, ela disse que os R$ 180 milhões investidos na primeira fase foram jogados fora e vem anunciar agora a aplicação de R$ 370 milhões na segunda fase, não eliminando os fatores que contribuíram para o malogro da primeira fase. Podemos entender que a presidente veio anunciar que vai jogar fora uma soma bem maior que a primeira? Creio que o INEA e os autores dos projetos de recuperação dos canais precisam levar mais em conta a singularidade da Baixada dos Goitacases, outrora tão bem conhecida pelos engenheiros que nela faziam intervenções. Tentemos recordar alguns saberes que parecem ter se perdido para os atuais administradores públicos e planejadores.

Em 1933, o governo federal, tendo à frente Getúlio Vargas, criou a Comissão de Saneamento da Baixada Fluminense. Depois de várias tentativas fracassadas de drenar águas acumuladas nas partes baixas e planas por comissões criadas ou contratadas pelo poder público, um governo com tendências centralizadoras criava uma instituição de caráter permanente para atacar o problema das cheias e dos alagamentos. No ano seguinte, o engenheiro Hildebrando de Araujo Góes apresentava os primeiros resultados dos trabalhos da Comissão: um alentado e ilustrado relatório que reunia informações dos órgãos anteriores e as sistematizava. Em “Saneamento da Baixada Fluminense”, Góes identifica as quatro baixadas do Estado do Rio de Janeiro – Sepetiba, Guanabara, Araruama e Goitacazes – como as áreas mais problemáticas, pois as águas das chuvas caídas na zona serrana corriam para elas em demanda ao mar e ali ficavam retidas em tempos diferentes.

Quanto à Baixada de Sepetiba, também estudada por Góes em rico relatório do mesmo nome (1942), é ela formada e drenada por rios de pequeno porte. A distância entre a zona serrana e o mar é considerável para a ocorrência de enxurradas ao longo da planície. Não assim com relação à Baixada da Guanabara. A distância entre a serra e a Baía de Guanabara não permite a existência de longos rios nem de uma larga planície. Desta forma, chuvas torrenciais causam enxurradas. As águas alcançam logo o mar. No que concerne à Baixada de Araruama, há que se destacar a existência da grande Lagoa de Araruama entre a zona serrana e o mar, o que a transforma em principal receptáculo das chuvas abundantes.

A Baixada dos Goitacazes é singular em relação às suas irmãs. Primeiramente, ela é formada pelo Rio Paraíba do Sul, o maior do Estado do Rio de Janeiro, o que nos leva a concluir que ela também é a mais extensa de todas. Na retaguarda dessa planície, a zona serrana se constitui da Serra do Mar, interrompida abruptamente na margem direita do Rio Paraíba do Sul, e de uma formação cristalina antiga e baixa na sua margem esquerda.

A segunda característica é a distância entre a zona serrana e o mar. Só podemos registrar enxurradas nas vertentes da Serra do Mar. A vertente interior é drenada pelos Rios Piabanha, Paquequer, Grande e do Colégio, principalmente, todos eles afluentes do Rio Paraíba do Sul. Pela vertente exterior, descem os Rios Macabu, Urubu, Imbé e Preto, confluindo todos eles, direta ou indiretamente, para a Lagoa Feia. Da zona serrana baixa, à margem esquerda do Paraíba do Sul, provêm os Rios Paraibuna, Pirapitinga, Pomba e Muriaé, com nascentes na Zona da Mata Mineira.

A terceira característica dessa planície é a mínima declividade dela entre a margem direita do Paraíba do Sul e o mar, o que dificulta o escoamento das águas fluviais e pluviais. Transbordando em períodos de cheia, as águas do Paraíba do Sul derivavam lentamente e, no seu percurso, acumulavam-se em depressões e formavam extensas e rasas lagoas, banhados e brejos. Esta baixada propiciava a constituição de um verdadeiro pantanal. Foi na margem direita do Rio Paraíba do Sul que se instalaram a cidade de Campos e a fatia mais significativa da agroindústria sucroalcooleira.

Na Baixada dos Goitacazes, a rigor, só existiam três extravasores originais e regulares das águas acumuladas no continente para o mar: os Rios Paraíba do Sul, Iguaçu e Guaxindiba, que enfrentavam e enfrentam permanentemente uma forte energia oceânica, que tende a fechar qualquer desaguadouro. Os rios que drenam as Baixadas de Sepetiba e da Guanabara desembocam em baías protegidas. Os que drenam a Baixada de Araruama são capturados pela lagoa de mesmo nome e outras. Já os da Baixada de Goitacazes lutam contra um mar aberto e violento. Não sem razão, Alberto Ribeiro Lamego considerou o mar como o maior adversário da agropecuária e da vida urbana. Ele dizia não ser difícil abrir canais para transportar água do Paraíba do Sul para uma lagoa e desta para outra e desta para mais outra. O problema era abrir canais que transportassem água do continente para o mar, pois a virulência deste certamente faria malograr a obra.

II

Ao ler o plano de recuperação dos canais da Baixada dos Goytacazes, redigido pela Coppetec por encomenda do Instituto Estadual do Ambiente (INEA), um estudioso íntimo da região nota logo que os autores do plano trabalham em gabinete, com programas de computador. Existem propostas boas no plano, que lembram de longe o grande engenheiro Francisco Saturnino Rodrigues de Brito. Uma delas é reconhecer os limites da engenharia para resolver problemas de drenagem.       

Os técnicos recomendam que algumas áreas alagadas sejam mantidas quer por impossibilidade de serem drenadas a contento, quer para não sobrecarregar os sistemas de escoamento. Recomendam também a necessidade de demarcar as faixas marginais de proteção dos canais já cercados pela malha urbana, inclusive com ciclovias, contrariando, assim, a proposta de retirar dispositivos de circulação hídrica e de prédios que estreitam o leito e obstruem as margens.

Também para manter a integridade das faixas marginais de proteção, o plano prevê a arborização delas. Pena que, a julgar pelas ilustrações, não se trata de reflorestamento. As árvores são usadas como elemento ornamental e não funcional. Nas margens dos trechos não canalizados dos rios, cabe reflorestamento cerrado com espécies nativas. Já o reflorestamento das margens dos canais da planície aluvial, mesmo que numa apenas, é discutível, pois não havia florestas contínuas nessa área. Além do mais, é preciso manter caminho para dragas.

Outra boa proposta refere-se à proteção de uma grande área inundável entre a nascente do Rio Ururaí, na Lagoa de Cima, e o início da localidade de Ururaí. Embora, à primeira vista, críticos da área de ciências sociais não simpatizem com a ideia, não vejo em que a proteção desta área afete os interesses dos moradores de Ururaí. Pelo contrário, se tal área for ocupada por aterros e construções, as enchentes da localidade tornar-se-ão mais violentas, por falta de uma área amortecedora de inundações. O mesmo é válido para uma grande várzea à margem direita do Rio Ururaí. Este ponto pode estar ameaçado por mais um núcleo do programa Morar Feliz, da prefeitura e Campos.

Para que o erroneamente denominado Parque das Águas pelo plano seja bem sucedido, sugere-se que ele funcione como elo de ligação entre o Morro do Itaoca e o Parque Estadual do Desengano, incorporando a Lagoa de Cima. Assim, haveria continuidade entre o Parque do Desengano, ampliado até o Rio Imbé, e o Morro do Itaoca, que o INEA pretende incorporar como núcleo isolado do Parque do Desengano. Porém, a Lagoa de Cima só pode ser classificada como Unidade de Conservação de Uso Sustentável. Ela pode passar Área de Proteção Ambiental (APA) municipal à condição de APA estadual. Desta Unidade de Conservação deve ser excluído o Assentamento Antonio de Faria, junto à Lagoa do Pau Funcho. 

Outras áreas que poderiam funcionar como amortecedoras de enchentes, retendo água no continente até o advento da estiagem, situam-se na foz do Rio Macabu e na drenada Lagoa da Piabanha. Nenhuma subtração de terra agricultável causaria a religação da Lagoa Feia às Lagoas da Ribeira e de Dentro. Pela Lagoa da Ribeira, inclusive, seria possível reativar o escoadouro da Lagoa Preta para o mar, além de se estudar a retomada do malfadado Canal de Jagoroaba, aberto no final do século XIX pelo engenheiro Marcelino Ramos da Silva.

As áreas alagáveis ao longo do Canal do Quitingute, que o plano considera de bom alvitre manter, podem ser incorporadas ao grande Banhado da Boa Vista, hoje protegido pelo Parque Estadual da Lagoa do Açu. Com exceção deste último e possivelmente da Lagoa da Piabanha, todas as que se mantêm alagadas durante a maior parte do ano seriam excelentes áreas pesqueiras. Assim, a conciliação das economias agropecuária e pesqueira conheceria um avanço significativo.

Para a margem esquerda do Rio Paraíba do Sul, o projeto pretende usar o Canal do Vigário com o fim de aduzir água do rio para o sul da Lagoa do Campelo, fazendo com que o excedente hídrico da lagoa volte ao Paraíba do Sul pelo Córrego da Cataia. Parece que o grupo de hidrólogos da Coppetec não está a par do conflito entre pescadores e proprietários rurais no Banhado e Córrego da Cataia. Enquanto os proprietários rurais querem as comportas do córrego junto ao Paraíba do Sul fechadas quando das cheias, os pescadores querem-nas abertas para a entrada do peixe. Há uma lógica ainda não devidamente explicada no pleito dos pescadores. A solução conciliatória que encontrei para os dois interesses seria erguer diques de terra ao longo de todo o córrego para que as águas de cheia do Rio Paraíba do Sul pudessem alcançar a Lagoa do Campelo sem inundar terras ocupadas pela agropecuária. As comportas do córrego junto ao rio seriam mantidas e poderiam ser arriadas quando os dois lados entendessem que a abertura tivesse atendido aos interesses dos pescadores.

Como o assunto dá panos pra manga, continuo a analisá-lo na próxima semana.

III

De forma sistemática, podemos apontar os aspectos positivos e negativos nos documentos Projeto de Recuperação da Infraestrutura Hídrica da Baixada Campista (maio de 2011) e Norte Fluminense – PAC II, ambos do Instituto Estadual do Ambiente (INEA)

POSITIVOS

1- Defesa da manutenção de áreas alagadas e alagáveis no interior da rede de canais por reconhecer a quase impossibilidade de drenagem completa e a importância de não sobrecarregar os canais de drenagem. Como exemplos, menciona a área alagada da Lagoa do Açu, parecendo ignorar que ela já está protegida por um Parque Estadual criado pelo próprio INEA, uma grande área do Rio Ururaí entre sua nascente e ponto a montante da localidade de Ururaí, não excluindo o assentamento Antônio de Faria, e as margens da Lagoa de Cima, desinformado sobre a condição de Área de Proteção Ambiental Municipal da lagoa e da demarcação de sua Faixa Marginal de Proteção pelo próprio INEA.

2- Reconhecimento de que as áreas alagáveis, no âmbito da rede de canais, secam muito lentamente, mas não efetuou estudos sobre evaporação correspondentes a elas.

3- Previsão de instalação de rede coletora de esgoto ao longo dos canais já urbanizados, mas sem fazer menção ao tratamento terciário deste efluente líquido. Além do mais, em se tratando de área urbana, cabe às prefeituras dotar tais áreas de redes de coleta e de estações de tratamento de esgoto.

4- Intenção de definir as Faixas Marginais de Proteção dos canais para evitar usos indevidos das margens, que devem ficar livres para a circulação de máquinas necessárias à manutenção da integridade do sistema, bem como desimpedir o leito dos canais, restabelecendo as larguras e as profundidades.

5- Reforma dos diques nas margens do Rio Paraíba do Sul.

6- Anúncio da recuperação e da modernização do sistema de comportas.

NEGATIVOS

1- A redação dos textos é sofrível e primária. Há muita repetição e erros. O que mais espanta é grafar psicultura em vez de piscicultura várias vezes. Nem de longe eles se aproximam do pior relatório produzido sobre a Baixada dos Goytacazes.

2- Insistem na abertura de um canal, denominado Campos-Açu, com início no Canal de Coqueiros, cruzando os Canais de São Bento e Quitingute, para chegar ao mar pelo destruidor canal do estaleiro da OSX, no Açu. O próprio Estudo de Impacto Ambiental do distrito industrial do Açu mostra que esse canal ameaça a Lagoa Salgada, Patrimônio da Humanidade e parte do Parque Estadual da Lagoa do Açu. Melhor seria se este canal aproveitasse as Lagoas de Gruçaí e Iquipari. Esta segunda, no entanto, terá sua parte inicial aterrada pelo distrito industrial com aval do INEA. Menos pior seria a ligação do Canal do Quitingute ao mar na antiga Barra Velha, na Lagoa do Lagamar.

3- Pretendem não remover de todo o Durinho da Valeta, mas reduzir sua espessura, preocupando os pescadores.

4- Os projetos parecem não levar em conta o complexo logístico de Barra do Furado.

5- Pretendem priorizar a drenagem da margem esquerda do Paraíba do Sul pelo Canal do Vigário e pelo Córrego da Cataia, deixando o Canal Engenheiro Antonio Resende em segundo plano. Inclusive preveem um vertedouro auxiliar junto à bateria de comportas do Córrego da Cataia junto ao Paraíba do Sul. O pleito dos pescadores foi ignorado.

6- As premissas históricas dos projetos estão totalmente erradas.

7- Não mencionam a coleta de lixo nas partes urbanizadas dos canais nem abordam o impacto dos fertilizantes químicos no processo de eutrofização dos sistemas hídricos.

8- Preveem o uso de dragas para a remoção da vegetação flutuante e não sua remoção manual, conforme anunciada pelo Secretário Estadual de Ambiente, Carlos Minc.

9- Planejam áreas de lazer e ciclovias em ambas as margens do Canal de Coqueiros, na área urbana, algo que compete à prefeitura de Campos. Os canais devem ficar livres para facilitar a limpeza. Com ciclovias em ambas as margens, como uma draga pode circular?

10- O plantio de árvores nas margens de certos cursos d’água é puramente decorativo, desprovido das funções exercidas pelas matas ciliares.

11- A propósito, não há referências à necessidade de reflorestar pontos críticos no Noroeste Fluminense nem sobre a importância das lagoas da margem esquerda do Rio Muriaé na mitigação de enchentes e de estiagens prolongadas.

12- Concluo reiterando que os projetos devem passar necessariamente pela apreciação do Comitê de Bacia IX, que toma decisões sobre o baixo Paraíba do Sul.

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