Segundo Pilar Lacerda, os descendentes de escravos no Brasil não aprendem a história dos africanos nas escolas. O mesmo acontece com os índios ainda não totalmente aculturados e com aqueles que já se integraram na sociedade brasileira. Com estupor, vejo num livro didático de meu neto que índios e negros são representados por cães e gatos que ladram e miam, carecendo de uma humana para traduzir suas línguas.
Herdamos remanescentes das representações mentais desenvolvidas pelos europeus acerca dos índios e dos negros e ainda as reproduzimos. A propósito, é preciso esclarecer que índios e negros também formularam representações sobre o europeu. O antropólogo Claude Lévi-Strauss diz que os europeus matavam ou escravizavam os índios por não considerá-los humanos, o que foi muito bem enfocado no filme "A missão", de Roland Joffé . Por sua vez, os índios matavam os europeus para verificar se seus corpos se decompunham, já que os consideravam apenas espíritos. O antropólogo Eduardo Viveiros de Castro tem estudo s antológicos sobre as visões de mundo dos cristãos e dos animistas e xamanistas. Os guanches, nativos do Arquipélago das Canárias, acreditavam que um cavaleiro europeu formava com seu cavalo um único animal.
Os europeus formularam a representação geral de que os negros africanos eram infra-humanos e que, em vista dessa condição, podiam ser escravizados, até porque os próprios negros escravizavam negros de etnias derrotadas em guerra. Os ideólogos da escravidão colonial consideravam a escravidão de negros por negros aviltante, ao passo que a escravidão praticada por brancos fora da África era engrandecedora. Mesmo na condição de escravos, o simples contato dos negros com os brancos promovia a civilização dos primeiros até onde sua sub-humanidade permitisse. Por outro lado, os negros também achavam os brancos seres não humanos, pois, entre outros argumentos, sua boca não era carnuda como a dos negros e seus pés não tinham dedos, já que tom avam as botas pelos pés.
Se todos os povos representam o estranho, por que condenar as representações dos europeus e não também as dos índios e negros? É que os brancos tinham doenças e armas desconhecidas dos outros, elementos que permitiram a Europa, depois os Estados Unidos, dominar o mundo. Para defender os vencidos e os esquecidos, os historiadores também precisam de representações, principalmente a de que todos - brancos, amarelos e negros, ocidentais e não ocidentais - são humanos, todos têm cultura e todos têm história. E aonde eles vão buscar subsídios para formar esta representação? Na Antropologia, na Etologia, na Anatomia, na Fisiologia e na Genética, embora os historiadores, na sua maioria, façam com estes conhecimentos científicos o que os domi nadores brancos fazem com outros povos: não se interessam por estes conhecimentos de modo mais profundo.
A Antropologia mostra que todos os povos constroem culturas e têm história, mesmo os povos considerados sem história. A Etologia mostra comportamentos muito semelhantes entre primatas e humanos, inclusive a presença de uma protocultura nos primatas. A Anatomia mostra a nossa semelhança morfológica com índios, negros e primatas. A Fisiologia revela que o funcionamento do organismo branco é o mesmo do organismo amarelo, negro e até mesmo dos primatas e de outros mamíferos. A Genética não deixa dúvidas quanto a integrarmos a ordem dos primatas e a família dos hominídeos. Os historiadores costumam obter estas informações de maneira muito superficial em leituras de jornal e de revistas de notícias. Em resumo: a humanidade de brancos, amarelos e negros é uma representação que os historiadores usam sem muito rigor científico.
Num mergulho mais profundo, as ciências, notadamente a Genética ou Genômica, não deixam dúvidas sobre a íntima ligação do "Homo sapiens" com os animais, vegetais, fungos, protozoários e bactérias. No entanto, a maioria esmagadora dos historiadores continua considerando a natureza como palco e fonte e recursos para a história humana. O que os ecohistoriadores procuram demonstrar é a condição da natureza também como protagonista, vencida e esquecida. É certo que a ecohistória não estará presente no Segundo Festival de História de Diamantina. Se estiver, apenas os historiadores que trabalham com representações humanas sobre a natureza participarão dele.