Os números impressionam: em 2009, foram vendidas no Brasil 789.974 toneladas de agrotóxicos, movimentando US$ 6,8 bilhões e fazendo do país o maior consumidor desse tipo de substância no mundo. São mais de 400 tipos de agrotóxicos, comercializados sob a forma de 2.195 diferentes produtos.
Os dados, do Sindicato Nacional da Indústria de Produtos Defensivos (Sindag, entidade das empresas produtoras de agrotóxicos), levantam, no mínimo, algumas curiosidades. Como e por que o Brasil se tornou o principal consumidor de agrotóxicos no mundo? Que conseqüências diretas isso traz para a população? Há regulação para esse uso intensivo? Isso é seguro?
Além das questões imediatas, o tema dos agrotóxicos levanta outros debates, que se relacionam ao contexto e às bases materiais desse consumo intenso dos ‘defensivos agrícolas’, como são chamados pelas empresas produtoras, ou ‘venenos’, nomenclatura comumente utilizada entre pequenos agricultores e trabalhadores do campo. Afinal, se o Brasil utiliza os agrotóxicos em larga escala, certamente o modelo de produção agrícola majoritário no país é compatível com o uso dessas substâncias. E que modelo é esse? Por que ele é baseado na utilização dos agrotóxicos? Que tipo de interesses essa questão envolve, e quais seus impactos econômicos, sociais, políticos e ambientais?
Foram temas como esses que deram o tom do Seminário Nacional contra o Uso de Agrotóxicos, realizado entre os dias 14 e 16 deste mês na Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF), em Guararema - São Paulo. Organizado pela Via Campesina e pela Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), o Seminário foi apoiado pela Vice-Presidência de Ambiente, Atenção e Promoção da Saúde da Fiocruz e contou com a participação de cerca de 90 pessoas, representando mais de 30 movimentos sociais, instituições, entidades ambientalistas e organizações da sociedade civil.
Impactos na saúde
“Aconteceu em outubro de 2009, no interior do Espírito Santo. Foi feita uma pulverização aérea de agrotóxicos em uma plantação de café próxima a uma escola. Os aviões passavam perto da escola despejando os agrotóxicos e as aulas não puderam continuar. Por causa do cheiro forte, as crianças começaram a passar mal e algumas chegaram a desmaiar”. O relato, do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), foi apenas um dos apresentados no Seminário para ilustrar alguns dos impactos imediatos do uso de agrotóxicos no dia-a-dia da população. A constatação de que aqueles que lidam com ‘veneno’ ficam frequentemente enjoados, depressivos, adoecem mais de câncer e tem índices de suicídios mais altos do que trabalhadores de regiões em que não há contato direto com agrotóxicos foram alguns dos elementos destacados pelo MPA.
Se a experiência concreta dos trabalhadores aponta problemas decorrentes do contato humano com os agrotóxicos, estudos recentes na área vão na mesma direção. No início de 2008, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), uma das responsáveis pelo monitoramento do uso de agrotóxicos no Brasil, decidiu colocar uma série de ingredientes ativos de agrotóxicos em reavaliação. A decisão, publicada no Diário Oficial da União de 25 de fevereiro daquele ano, aponta alguns dos motivos que determinaram a reavaliação: no caso da substância cyhexatina, “os estudos demonstram alta toxidade aguda bem como apresentam suspeita de carcinogenicidade para seres humanos, toxidade reprodutiva e neurotoxidade”. Isso quer dizer que a suspeita da Anvisa é de que esses produtos possam produzir efeito venenoso ou letal sobre o tecido nervoso de seres humanos, câncer e outros problemas.
Já os motivos que levaram à revisão do glifosato, outro ingrediente ativo de agrotóxicos, foram “sua larga utilização no Brasil, os relatos de casos de intoxicação ocupacional e acidental, a solicitação de revisão [para aumento] da dose estabelecida para a Ingestão Diária Aceitável (IDA) por parte de empresa registrante, a necessidade de controle de limite máximo de impurezas presentes no produto técnico e possíveis efeitos toxicológicos adversos”. Letícia Silva, da Gerência Geral de Toxicologia da Anvisa, apresentou no Seminário dados que comprovam o aumento da utilização de glifosato no Brasil na última década: em 2000, foram vendidas no país 39.515 toneladas da substância. No ano passado, esse número chegou a 299.965 toneladas.
Na lista de reavaliações da Anvisa, itens como suspeita de indução de câncer em seres humanos, efeitos letais sobre tecidos nervosos e possibilidade de efeitos sobre o sistema reprodutivo aparecem diversas vezes para os 14 diferentes produtos colocados em reavaliação. Segundo Letícia Silva, os resultados da avaliação, publicados em agosto deste ano, determinam o banimento total da cyhexatina até julho de 2011 (a substância só será mantida no estado de São Paulo) e apresentam o indicativo do banimento da utilização de acefato, metamidofós e endossulfan, também muito utilizados no Brasil. Esse indicativo está em análise por uma comissão tripartite formada, além da Anvisa, pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (Ibama, responsável pela análise ambiental) e pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa, responsável pela análise agronômica).
Na água da chuva e na mesa de casa
Além da reavaliação de ingredientes ativos, Letícia Silva apresentou dados do Programa de Monitoramento de Resíduos de Agrotóxicos em Alimentos, o PARA. Segundo ela, as análises do PARA de 2009 encontraram substâncias que estão em reavaliação pela Anvisa, como o endossulfan. Proibido em 45 países, entre eles Estados Unidos e em toda a União Européia, o endossulfan foi reavaliado por suspeita de desregulação endócrina e toxicidade reprodutiva e teve seu banimento indicado. Como demonstrou Letícia, o endossulfan foi encontrado em culturas de pepino, pimentão e beterraba. Isso significa que produtos consumidos nas grandes cidades estão contaminados por essa substância.
E os resultados não param por aí: o acefato, também indicado pela análise da Anvisa para ser banido no Brasil, foi encontrado em culturas de cebola e cenoura; e o metamidofós, também com banimento indicado e proibido em 37 países, foi encontrado em culturas de pimentão, tomate, alface e cebola. Mas o contato da população com os agrotóxicos vai além: Letícia também contou que, de acordo com dados de um estudo feito pela Universidade Federal do Mato Grosso em parceira com a Fiocruz, foi encontrado endossulfan em águas de chuva coletadas no Mato Grosso. De 104 amostras, 40 continham endossulfan alfa, 58 endossulfan beta e 40 endossulfan sulfato.
Para Alexandre Pessoa, professor-pesquisador da EPSJV/Fiocruz, que esteve presente no Seminário, a presença de agrotóxicos em águas de chuva tem implicações muito profundas: “A apresentação desses dados nos causa imensa preocupação. A contaminação das águas de chuva pela pulverização de agrotóxicos em grandes fazendas, feita através de aviões, tem impactos também para políticas públicas desenvolvidas pelo próprio governo federal. Exemplo disso são os programas Um Milhão de Cisternas e 1+2, através dos quais o governo faz uma parceria com a Articulação do Semi-Árido para utilização das águas de chuva para consumo dos pequenos agricultores. A presença de agrotóxicos nessas águas compromete o projeto”, adverte. E lembra: “As águas têm sido contaminadas em todo o seu ciclo hidrológico. Isso afeta não apenas as águas de chuva, mas também os corpos hídricos superficiais e o lençol freático. Nesse momento, está em revisão a portaria nº 518 do Ministério da Saúde [que estabelece procedimentos e responsabilidades do controle e da vigilância da qualidade da água] e isso precisa ser levado em consideração”.
Rosany Bochner, pesquisadora do Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde (Icict/Fiocruz), explicou que os resultados considerados insatisfatórios pelo PARA dividem-se em duas categorias: resíduos que podem causar dano à saúde porque excederam os limites máximos estabelecidos em legislação e resíduos que podem causar dano à saúde porque são agrotóxicos não autorizados para aquele determinado alimento. Segundo dados do último ano, apresentados pela pesquisadora, 10% dos resultados insatisfatórios referem-se ao primeiro caso, e 85% ao segundo.
Esses danos à saúde podem ser divididos em agudos e crônicos. “Os efeitos agudos são aqueles mais visíveis, e que aparecem durante ou após o contato da pessoa com o produto e apresentam características mais marcantes. Já os efeitos crônicos podem aparecer semanas, meses, anos ou até mesmo gerações após o período de uso ou contato com o produto”, explicou. E completou: “Hoje temos uma situação que chamamos de iceberg da informação. Os problemas que mais conhecemos são os decorrentes das intoxicações por exposição aguda, o que é apenas uma ponta que fica mais visível. Os casos de intoxicações por exposição crônica, muito maiores, ficam escondidos”, analisou. Rosany é pesquisadora do Sistema Nacional de Informações Tóxico-Farmacológicas (Sinitox), criado em 1980 e vinculado à Fiocruz. O Sinitox é responsável pela coleta, compilação, análise e divulgação dos casos de intoxicação e envenenamento registrados pela Rede Nacional de Centros de Informação e Assistência Toxicológica, e desde 2002 atua em conjunto com a Anvisa.
Economia política dos agrotóxicos
Os dados apresentados pela Anvisa também apontam elementos que remontam ao papel econômico da venda de agrotóxicos: enquanto o mercado mundial movimentado pela venda dessas substâncias cresceu 94% no mundo na última década, o índice de crescimento específico no Brasil no mesmo período foi de 172%. Segundo Letícia Silva, o fato de o país ser o maior consumidor de agrotóxicos do mundo amplia em muito as disputas judiciais no setor. Ela explica que a pressão política das empresas produtoras de agrotóxicos contra as reavaliações na Anvisa vem crescendo, o que passa inclusive pela tentativa de desqualificação técnica das restrições impostas pela Agência.
Ela lembra, ainda, que após países como China e Estados Unidos proibirem substâncias que ainda são permitidas no Brasil, essa pressão aumentou. A representante da Anvisa lembra que a legislação que rege o uso de agrotóxicos, a Lei 7802, de 1989, é avançada no sentido de regular o uso dessas substâncias. “Mas o que vemos desde que ela foi aprovada é uma pressão política que se reverteu em uma série de decretos, todos no sentido de flexibilizar a fiscalização e estender os prazos de adaptação às empresas produtoras”.
Segundo Horário Martins, engenheiro agrônomo que foi debatedor no Seminário, o mercado de agrotóxicos é extremamente concentrado. Ele explicou que as grandes empresas multinacionais que controlam a oferta e demanda de agrotóxicos atuam também nos ramos de sementes, na farmacêutica e veterinária, concentrando as áreas da biotecnologia. Os dados confirmam: as seis maiores empresas produtoras de agrotóxicos no mundo (Syngenta, Bayer, Monsanto, Basf, Dow e DuPont) concentram cerca de 70% de todo o mercado dessas substâncias. Horácio destacou, ainda, que somente a Monsanto reponde, hoje, por 25% do mercado brasileiro de sementes de hortaliças, estimado em US$ 200 milhões anuais. Segundo ele, essa alta concentração reflete um modelo de produção agrícola voltado para os lucros, que pressiona o setor público e consegue, direta ou indiretamente, influenciar os processos de construção dos marcos regulatórios para o uso dos agrotóxicos. “Estamos diante da perspectiva de o capital financeiro, representado por essas grandes empresas, controlar as áreas de saúde e alimentação”, analisou. O engenheiro agrônomo apontou que o agronegócio, representado pelas grandes empresas que controlam o mercado de sementes, agrotóxicos e também de transgênicos, determina um novo sistema agroalimentar mundial. A modificação genética de sementes para recebimento de agrotóxicos, segundo ele, demonstra como os transgênicos fazem parte de uma estratégia para vender pesticidas e aquecer esse lucrativo mercado.
Dados apresentados por Sílvio Porto, da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab, vinculada ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento), confirmam: a utilização de transgênicos não minimiza os custos e nem o uso de agrotóxicos, como muitas vezes afirmam as empresas. No ramo da soja, a venda de herbicidas passou de 73.302 toneladas em 2000 para 142.169 toneladas em 2005 e atingiu 226.825 toneladas em 2009, o que representou um aumento de 209% na década. Já a área plantada passou de 13, 97 milhões de hectares em 2000 para 22,74 milhões de hectares em 2005 e chegou a 23,35 em 2009, um aumento de 67%.
Agroecologia como alternativa
O Seminário realizado na Escola Nacional Florestan Fernandes também se dedicou à discussão das alternativas ao modelo do agronegócio, sustentado e impulsionador do uso abusivo de agrotóxicos. Segundo Denis Monteiro, da Articulação Nacional de Agroecologia, a agricultura familiar vem sendo discutida cada vez mais entre os movimentos sociais e deixando de ser considerada ‘coisa de fundo de quintal’: “A agroecologia e agricultura familiar têm aparecido como uma real alternativa ao agronegócio. Esse debate está na pauta dos movimentos sociais e estamos conseguindo mostrar que sementes produzidas e guardadas pelos povos agricultores são mais produtivas e têm menor custo do que as sementes transgênicas do agronegócio”, disse, lembrando que o enfrentamento aos transgênicos deve se dar conjuntamente ao enfrentamento aos agrotóxicos: “Trata-se da mesma lógica. Os transgênicos também estão relacionados à monocultura, degradação ambiental, dependência tecnológica de grandes empresas e determinam o aumento do uso de agrotóxicos”.
Como encaminhamento concreto, o Seminário aprovou, consensualmente, a construção da Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida. Segundo Alexandre Pessoa, a iniciativa combinará denúncias e proposições: “As organizações presentes decidiram organizar-se em dois eixos, que são o combate aos agrotóxicos e o desenvolvimento da alternativa de produção saudável consolidada na agroecologia. A Campanha, que deverá ser construída nacional e internacionalmente, deve estabelecer um conjunto de ações permanentes que revelarão com estudos, pesquisas e mobilização social os impactos e riscos à saúde pública decorrentes do uso intensivo de agrotóxicos no Brasil. Isso será combinado com desenvolvimento de ações de agroecologia, que deve ser difundida como alternativa no país”.
*Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio
(Envolverde/Adital)