A lógica do Estado deve prevalecer sobre a justiça?

Recentemente, dois juristas, Cláudio Fonteles e Marcelo Neves, solicitaram o pedido de impeachment de Gilmar Mendes, presidente do Tribunal Superior Eleitoral. Sem sombra de dúvida, apesar de certos polêmicos episódios anteriores,  o que impeliu tais juristas a uma atitude tão drástica tem a ver com a atuação de Gilmar Mendes  no julgamento da cassação da chapa Dilma/Temer.

Talvez com a melhor das intenções, no referido julgamento, o ministro Gilmar Mendes colocou acima de tudo a lógica da manutenção da ordem e do Estado constituído acima da lei. O seu voto de minerva, previsível, não quis se ater ao óbvio, diante de provas incontestáveis, tudo em nome da valorização da paz provisória,  interpretando pessoalmente a legislação eleitoral que deveria ter sido aplicada no caso específico.
O caso mostra mais uma vez a elasticidade das leis que podem ser interpretadas de acordo com uma visão muitas vezes pré-concebida, atendendo a pressões de vários lados, frequentemente justificável em nome da ordem estabelecida.

Gilmar Mendes comportou-se como o médico que, após solicitar exames do seu paciente, busca consolá-lo em face aos índices possivelmente muito acima ou abaixo dos padrões estabelecidos, asserindo que se trata sempre de uma perspectiva de interpretação que pode ser múltipla, sujeita a comparações matemáticas entre índices e curvas de complicados gráficos, variáveis de acordo com cada pessoa ou ao menos de acordo com cada grupo formado por idades ou fatores de risco semelhantes. Em poucas palavras, pouco ou nada há de preciso em tais resultados de análises laboratoriais.

Pois bem, o “analista” e juiz Gilmar Mendes fez prevalecer a sua leitura dos fatos, muito mais baseada no ditado popular “é inútil chorar sobre leite derramado” do que no outro, igualmente na boca do povo, “antes tarde do que nunca”. O leite já foi derramado, mas ainda é possível fazer a limpeza com um bom pano úmido e um pouco de detergente, para não deixar marcas de gordura.
Realmente, a impugnação da candidatura Dilma/Temer deveria ter ocorrido antes mesmo que eles fossem eleitos, mas, considerando-se a tradicional lentidão na apuração dos fatos e, sobretudo, na emissão da sentença final, perdeu-se uma oportunidade única e histórica de consertar erros do recente passado político cujos malefícios repercutem no atual momento, no bolso dos consumidores, na falta de oportunidades de emprego e, enfim, na crise moral-política-econômica que insiste em permanecer no país.

Também não concordo com a tese defendida pelo ilustre juiz de que, apesar da evidência de financiamentos ilícitos, é preciso relevar o perigo de, num espaço de pouco mais de um ano, destituir  dois chefes de Estado. É muito perigoso abrir precedentes em casos do gênero, pois pode dar a impressão que não existe verdadeira independência entre os três poderes.  Se há provas claras do financiamento ilícito, não há nada, nem mesmo o agravamento da crise política que poderia decorrer da cassação do mandato de Temer, que possa justificar a absolvição do vice-presidente em exercício, ao menos no caso em questão.

Só há verdadeira democracia quando as decisões tomadas, em todas as instâncias e por todos os poderes, são fundamentadas na legalidade, nunca cedendo a pressões de políticos ou lobistas, tampouco a possíveis apelos à governabilidade ou a previsões catastrofistas de caos social. Vamos ao encontro do caos quando esquecemos, ainda que momentaneamente, a indissociabilidade entre o respeito pelo voto popular e o respeito pela aplicação das leis. Quem elegeu não sabia que estava escolhendo uma candidatura financiada com dinheiro da corrupção. No entanto, uma vez que, após a apuração dos fatos, constatou-se a ilegitimidade de todo o processo que levou Dilma e Temer ao poder, não há motivos para continuar insistindo numa lógica de defesa do Estado que não se coaduna com a rígida aplicação das leis!

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Sérgio Mauro é professor da Faculdade de Ciências e Letras da Unesp de Araraquara.

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