Sob a mira constante de espingardas: Área em disputa no sertão é palco de morte de trabalhador rural

José Campos Braga era um dos 1,8 mil membros das comunidades de "fundo de pasto" de Areia Grande, em Casa Nova (BA). Cobiçado por agentes privados na Justiça, território fica às margens da represa de Sobradinho.

Sob a mira constante de espingardas, as comunidades tradicionais de "fundo de pasto" de Areia Grande tentam manter uma área de ocupação antiga no sertão da Bahia. Aproximadamente 1,8 mil pessoas vivem em 40 mil hectares no município de Casa Nova (BA), à beira do lago formado pela represa de Sobradinho, no Rio São Francisco. As famílias argumentam que os seus antepassados chegaram ao local em torno de 1860.

A mais recente vítima desse conflito histórico foi o trabalhador rural José Campos Braga, 56 anos, assassinado em sua casa com dois tiros na nuca. Ele foi encontrado na tarde da última quarta-feira (4) - estava desaparecido desde sexta (30). Nesta terça-feira (10) pela manhã, membros das comunidades da Areia Grande estiveram presentes no enterro. José Campos, conhecido entre os pares como "Zé do Antero", era pai de 10 filhos.

Não foi a primeira vez que a disputa pela terra em Areia Grande resultou em violência. Outro momento tenso do conflito agrário se deu em março de 2008, durante o cumprimento de um mandado de imissão de posse. A Polícia Militar, a Polícia Civil e a Polícia da Caatinga, sob supervisão de um oficial de Justiça, tentaram retirar as famílias à força da área em disputa. "Crianças tiveram queimaduras e uma senhora abortou", relata Emília Teixeira, da Associação de Advogados de Trabalhadores Rurais da Bahia (AATR-BA), que dá suporte jurídico à comunidade. Segundo ela, houve infiltração de pistoleiros na operação, com o uso de armamentos particulares.

Na ocasião, diversas casas foram destruídas, inclusive a de José Campos. Após o ocorrido, ele decidiu permanecer no local, vivendo sob uma lona. "Ele disse que só sairia de lá morto, porque nasceu e iria morrer ali. Além de ser uma liderança, encorajava as demais", lembra Domingos Rocha, presidente do Sindicato dos Trabalhadores nas Empresas Agrícolas da Bahia (Sintagro-BA).

José Campos morava às margens do São Francisco, num local isolado - os vizinhos mais próximos ficavam a 4 km. Segundo os moradores, esses fatores faziam com que a área fosse das mais visadas pelos pistoleiros. A 650 km da capital Salvador, o território de Areia Grande inclui as fazendas de Lages, Baixa do Umbuzeiro, Urucé e Casa Nova. Ao todo, quatro comunidades (Melancia, Jurema, Salina do Brinca e Riacho Grande) convivem na área.

Revoltada, a população local acusa pistoleiros pela autoria do crime, exige a investigação e punição dos responsáveis e clama pela segurança dos membros da comunidade (confira nota pública). "Na cidade, há uma comoção muito grande. Num primeiro momento tem a indignação, até porque o Estado já sabia o que poderia acontecer. As pessoas não estão entendo que um companheiro foi embora. A revolta nesse momento é importante, mas estamos trabalhando a organização", pondera Domingos.

Grilagem
O conflito agrário na região teve início na década de 1980, com a instalação da Agroindustrial Camaragibe S.A., que produzia etanol a partir da mandioca (assista a um vídeo sobre Areia Grande, que inclusive traz um depoimento de José Carlos Braga). Na época, a empresa adquiriu terras na região mediante a "compra de títulos de posses". "Eles não usaram as terras. Recorreram a títulos forjados como garantia para fazer empréstimos com o Banco do Brasil", afirma a advogada Emília Teixeira.

A Camaragibe, que decretou falência há mais de 20 anos, acumulou dívidas estimadas em R$ 40 milhões com o BB. Além disso, a empresa esteve envolvida no chamado "escândalo da mandioca", um caso de desvio de dinheiro público da época do Programa Nacional do Álcool (Proalcool). Em 2004, porém, os empresários Alberto Martins Pires Matos e Carlos Nisan Lima e Silva "compraram" a dívida por R$ 639 mil. Eles reivindicam agora a propriedade da terra na Justiça.

Após os atos de repressão em março do ano passado, foi iniciado um processo de discriminação das terras públicas. A Bahia está pleiteando o território. "Isso resultou em um laudo que chegou a conclusão que os títulos [adquiridos pela Camaragibe] eram falsos. Eram terras públicas devolutas", diz Emília Teixeira. Em novembro do ano passado, com base no relatório, a Procuradoria Geral do Estado da Bahia ingressou com uma ação discriminatória judicial com o objetivo de arrecadar as terras públicas e regularizá-las.

Uma decisão parcial de dezembro de 2008 trouxe alento para as comunidades. O juiz Eduardo Ferreira Padilha, da comarca de Casa Nova, acolheu provisoriamente a ação discriminatória judicial e determinou a suspensão de todas as ações que discutiam o domínio e posse da terra. "Os fazendeiros não gostaram disso", diz Domingos. "Agora, a Justiça precisa decidir se a terra é do fazendeiro ou do trabalhador".

Uso coletivo
Os modelos de produção conhecidos como "fundo de pasto" são caracterizadas pela ocupação e uso de espaço aberto, geralmente composto de terras devolutas, acessível a todos os membros da comunidade. Esse tipo de manejo é comum em Estados como a Bahia, Pernambuco, Ceará e Paraíba.

Situada no bioma da Caatinga, o Fundo de Pasto de Areia Grande conta com mais de 13 mil cabeças de cabras e ovelhas, produz mel e mantém criação de gado, ovinos e caprinos. No entanto, a comunidade está inserida numa zona de expansão agrícola - as áreas próximas já estão dominadas pela plantação de cana-de-açúcar. "O poder público local sempre massacrou a agricultura familiar", conta Domingos, do Sintagro.

Há projetos de implementação de cana irrigada para a produção do álcool na região. "O preço da terra vem aumentando. Isso acirra os conflitos", observa Emília. "A comunidade tem uma relação harmoniosa com o meio ambiente. Há uma preservação alta do bioma caatinga, num terreno fértil. O que torna (a terra) ainda mais cobiçada para o lucro".

Justiça
O resultado da perícia do corpo de José Campos deve ser divulgado até o final desta semana. Os trabalhadores acionaram o Ministério Público e a Ouvidoria Agrária Nacional para acompanhar o caso. Segundo a advogada Emília Teixeira, "a prioridade é garantir laudo com idoneidade para que possa ser aberto inquérito. Só existem suspeitas. Há testemunhas de fato que relacionam a morte com o conflito agrário. Mas ainda não há provas cabais".

Os moradores relatam que, na semana anterior ao crime, pistoleiros eram vistos com freqüência na região, em rondas com carros escuros. Na ocasião, jagunços chegaram a invadir o local, rompendo o arame - num clima de tensão permanente, os moradores já faziam vigília na entrada da área.

Para Marina Braga, agente da Comissão Pastoral da Terra (CPT), o assassinato de José Campos representa uma forma de intimidação. "Até hoje os pistoleiros que agrediram trabalhadores estão impunes. Como a impunidade é grande, eles resolveram agir pela força", afirma.


Nota pública

(Parte integrante da matéria "Área em disputa no sertão é palco de morte de trabalhador rural")

Areia Grande, Casa Nova (BA), 7 de fevereiro de 2009

Ao final da celebração de sétimo dia do assassinato do companheiro José Campos Braga (nosso Zé de Antero), realizada no dia 7 de fevereiro, em Areia Grande, no sertão da Bahia, com a presença de mais de 300 pessoas das nossas comunidades, firmamos nosso compromisso selado com o sangue de nosso companheiro. O trabalhador rural, José Campos Braga, 56 anos, foi encontrado morto com um tiro de espingarda, no final da tarde do dia 4 de fevereiro, na área de Fundo de Pasto de Areia Grande, município de Casa Nova, no sertão baiano.

A questão da apropriação indevida de terras pelos grandes latifundiários é antiga. Ações por parte do Judiciário sempre estiveram contra nós e nossos direitos sobre a terra na qual vivemos. Até que em dezembro passado, finalmente, foi reconhecido ao Estado da Bahia, pelo Juiz da Comarca de Casa Nova, o direito de discriminar esta terra devoluta e regularizá-la em favor de seus legítimos donos, que somos nós e nossas comunidades, que recebemos em herança de nossos antepassados e fazemos uso coletivo como "fundo de pasto". O processo de discriminação ainda não chegou ao seu fim, mas tem representado importante vitória de nossas comunidades tradicionais contra a grilagem de terras. Isso atiçou ainda mais os que sempre se acostumaram a vencer com as armas do dinheiro e da violência.

Baseando em indícios mais que suficientes, não temos dúvida que nosso companheiro foi assassinado covardemente a mando de grupos e pessoas que ambicionam nossas áreas e, inconformados com a decisão da Justiça, nos deram esta resposta bárbara e desumana.

Neste momento sentimos que, além dos mandantes e executores, a responsabilidade maior dessa tragédia pesa sobre as autoridades: a União, o Estado, o Judiciário e a Polícia. Exigimos que tomem medidas urgentes para tornar eficaz a ação em favor da justiça que, nesta situação, para nós significa:

* Investigar com isenção, identificar, prender os executores e mandantes do assassinato de José e puní-los exemplarmente com o rigor da lei;
* Garantir a segurança das 330 famílias que moram e trabalham nas comunidades de Areia Grande, criando condições para que não transitem mais neste local, pessoas estranhas e suspeitas;
* Agilizar, por parte das autoridades judiciais, o processo de julgamento da Ação Discriminatória, garantindo, no seu curso, o exercício da nossa posse legítima e tradicional e, por parte do Poder Executivo Estadual, todas as medidas posteriores necessárias para que estas terras possam ser definitivamente regularizadas em nome das Associações de Fundo de Pasto de Areia Grande;
* Apoiar com programas de políticas públicas eficientes nossas organizações para que vivamos em paz, neste regime de Fundo de Pasto, trabalhando e produzindo conforme nossos costumes e assumindo os destinos que nós mesmos queremos para nossas vidas e famílias.

Conclamamos as organizações e pessoas do campo e da cidade a se solidarizarem conosco, assinando esta nossa nota pública e reforçando nossa pressão organizada sobre as autoridades públicas.

Jamais podemos aceitar que estas autoridades, com sua ação direta ou sua omissão, sejam promotoras de acumulação privada dos bens da natureza, de exploração e violência, como a que pesa sobre nós há muitos anos e que hoje chegou ao ponto de tirar a vida de um companheiro.

Nossa terra ferida foi encharcada com sangue do Zé de Antero. Seu sangue não mente. Jamais esqueceremos o marco triste desta morte. Dela, brotaram, porém mais forte a esperança e o compromisso de marcharmos unidos até a vitória final, com a fé que temos em Deus e na nossa união solidária.

Assinam a nota, as comunidades e as entidades abaixo:

Melancia
Riacho Grande
Salina do Brinca
Jurema
Tanquinho
Ladeira Grande
Lagoado
Curibonde
Amalhador
Cacimbas

Entidades

Articulação do Semi-Árido (ASA) - Casa Nova
Articulação Nordeste III das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs)
Comissão Pastoral da Terra (CPT) - Bahia
Instituto Regional da Pequena Agropecuária Apropriada (IRPAA)
Paróquia de Casa Nova, Bahia
Paróquia de Sobradinho, Bahia
Paróquia Santo Antônio de Juazeiro, Bahia
Pastoral da Juventude do Meio Popular (PJMP) - Sobradinho, Bahia
Setor Diocesano de Comunicação (SEDICA) - Juazeiro, Bahia
Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Remanso, Bahia
Sindicato dos Trabalhadores em Educação no Estado da Bahia (APLB) - Casa Nova
SINTAGRO
União das Associações de Fundo de Pasto (UNASFP) - Casa Nova

Para assistir ao vídeo-reportagem, clique em http://www.youtube.com/watch?v=CHLfMSe1gIc&eurl=http://envolverde.ig.com.br/

(Envolverde/Repórter Brasil)
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