Fundador e ícone do PT, o dominicano diz que no novo governo Dilma só há harmonia para cortar benefícios dos mais pobres

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Frei Betto: "O governo é um coral desafinado"

Autor de 60 livros editados no Brasil e no exterior, entre eles o “Mosca Azul”, que faz uma análise dos primeiros anos do governo Lula, e “Batismo de Sangue”, sobre a ditadura militar e o qual lhe garantiu o Prêmio Jabuti em 1982, Frei Betto é amigo do ex-presidente Lula (PT) há mais de 30 anos e foi assessor especial durante seu mandato, quando coordenava o programa Fome Zero. Quando o projeto foi descontinuado, Frei Betto ficou desanimado e deixou o governo. “Hoje sou um feliz indivíduo não governamental”, diz ele. Combatente da ditadura militar e a favor da luta armada contra o regime, o dominicano ficou preso durante quatro anos, entre 1969 e 1973.

Istoé - A presidente Dilma Rousseff surpreendeu ao indicar ministros com pouco ou quase nenhuma afinidade ideológica com o PT, como Kátia Abreu para a Agricultura, George Hilton para o Esporte e Joaquim Levy para a Fazenda. Qual a opinião do sr. sobre o novo ministério?

Frei Betto -  É um coral desafinado. De um lado se tem uma equipe econômica que entra com tesoura na mão e prometendo aumento de impostos, sem especificar esses impostos. Vão onerar quem? A maioria da população? Vamos continuar com o mesmo sistema tributário que onera o consumidor e não o rentista e o produtor? Enfim, o Brasil precisa de uma reforma tributária urgente, que seja progressiva, quem ganha mais que pague mais.

Istoé - Por que o sr. acredita que o governo é um coral desafinado? 

Frei Betto - Desse coral desafinado, os desafinamentos partem da Kátia Abreu (Agricultura) e do Patrus Ananias (Desenvolvimento Agrário). Em seguida, vem o ministro do Esporte, George Hilton, que diz que pode não entender profundamente de esporte, mas entende de gente. Então ele está no lugar errado, deveria estar no setor de psicologia do Ministério da Saúde ou no cerimonial do Itamaraty, que sempre exige pessoas que entendam de gente para poder, mais ou menos, agradar a todos. Outra dissonância é que o governo Dilma acaba de receber oficialmente o relatório da Comissão da Verdade, nomeado por ela, e o ministro Jaques Wagner, da Defesa, vem declarar que não assume o governo com lanterna voltada para o passado. Ora, se há uma coisa que o Brasil precisa, e urgentemente, é jogar muita luz sobre o seu passado. 

Istoé - Fora esses ministros citados, o sr. observa alguma harmonia no novo ministério?

Frei Betto - A única harmonia que eu sinto no ministério é justamente entre a equipe econômica e a Casa Civil. Principalmente quando a Casa Civil, antes da posse, anunciou cortes que vão prejudicar, sobretudo, os mais pobres. O seguro-desemprego, o seguro do pescador, o auxílio desemprego e a pensão morte. Espero que a presidente Dilma dê continuidade aos programas sociais, cumpra suas promessas de campanha, mas é difícil a gente ter muito otimismo quando se recebe a notícia de que já foram cortados R$ 7 bilhões da educação. Então, a pátria educativa proposta no seu discurso de posse já entra um pouco manca com esse corte considerável numa das três ou quatro prioridades brasileiras.

Istoé - As indicações da presidente Dilma não constituem novidade em se tratando dos anos do PT no poder. Sempre foram feitas concessões aos aliados.

Frei Betto - Escrevi dois livros para analisar o início do governo do PT: “Mosca Azul” e o “Calendário do Poder”, os dois publicados e editados pela Rocco. Eu creio que o PT fez uma escolha de governabilidade equivocada: depender do Congresso. Com esses partidos, com o mau-caratismo de muitos desses partidos, o PT hoje é refém desse Congresso conservador, retrógrado e elitista.

Istoé - Qual seria o outro caminho?

Frei Betto - Na minha modesta opinião, o PT deveria ter feito o caminho do Evo Morales. Ele não tinha apoio do Congresso e buscou apoio dos movimentos sociais. Os movimentos sociais que elegeram o Lula e que elegeram a Dilma. As quatro eleições dessas figuras públicas dependeram, sobretudo, da mobilização dos movimentos sociais. E a história do PT é resultado dos movimentos sociais. Mas os movimentos sociais foram escanteados. O PT vai pagar um preço muito alto por essa ambiguidade que carrega, de ser expressão dos movimentos populares, mas querer assegurar a governabilidade exclusivamente pelas alianças partidárias. Nós sabemos que essas alianças têm um preço. Muitas delas são espúrias e daí a maculação do partido na questão ética. 

Istoé - O sr. acredita que o segundo mandato da presidente Dilma vai ser diferente do primeiro em que sentido? 

Frei Betto - Diria que o primeiro mandato teve avanços muito significativos, como as políticas sociais e o programa Mais Médicos. Espero que a presidente Dilma aprimore o seu primeiro mandato nesse segundo. Vejo, pela constituição do ministério, pelos cortes e pela dificuldade de crescimento, que teremos anos turbulentos pela frente. Sem dúvida nenhuma serão anos de greves, de manifestações, de reivindicações e de governo tentando um equilíbrio entre as forças antagônicas da nação, porque é curioso que não falta dinheiro para o pagamento da dívida pública, mas falta dinheiro para uma série de necessidades prioritárias como a questão da educação e da saúde.. Faço votos que a presidente Dilma tenha suficiente coragem e lucidez para dar prioridade ao social e não ao mercado.

Istoé - O sr. chegou a afirmar que o programa Fome Zero, no qual trabalhou, era emancipatório e que o Bolsa Família, apesar de ser bom, teria caráter compensatório. Algumas pessoas falam que o PT usa o Bolsa Família como troca de voto. A sua opinião sobre o programa é a mesma? 

Frei Betto - É uma acusação infundada. Qualquer governo que fizesse uma política social receberia a mesma acusação de seus opositores. Evidentemente todo governo espera que os benefícios que ele presta à população sejam revertidos em votos para o seu partido, para a sua linha, para a sua continuidade no poder. Ninguém quer largar o poder. O Bolsa Família é muito bom, mas o Fome Zero era ótimo. No Fome Zero as famílias estariam, em três ou quatro anos, emancipadas de qualquer dependência do governo federal, em condições de produzirem a própria renda. No Bolsa Família, não, elas se perenizam na dependência oficial.. São raras aquelas que devolvem o cartão e conseguem emancipação. O Fome Zero supunha uma cesta de 60 atividades importantes na estrutura social brasileira, entre elas a reforma agrária. Já o Bolsa Família não implica essas reformas. 

Istoé - Por que o Fome Zero não deu certo?

Frei Betto - Primeiro porque propunha uma reforma na estrutura do Brasil. Até o PT, que historicamente sempre propôs fazer reformas, a começar pela agrária, que a meu ver é a mais importante e urgente, não fez nenhuma delas, nem a tributária nem a política. E o Fome Zero ameaçava uma reforma. Uma reforma que toca no agronegócio, no latifúndio, que é a reforma agrária. Segundo, o dinheiro não passava pelas prefeituras. O dinheiro ia diretamente para as famílias, que eram selecionadas pelos comitês gestores eleitos em cada município brasileiro pelos movimentos sociais. Os prefeitos se rebelaram. Foram ao Palácio do Planalto e disseram à Casa Civil: “Se não formos nós quem controlamos o cadastro,  vamos sabotar o governo”. E o governo cedeu. Destruiu 2.500 comitês gestores. As pessoas ficaram muito revoltadas, porque havia sido todo um processo pedagógico de educação política para eleger esses representantes que não tinham vínculos com A ou B ou partidos. E hoje o prefeito pode perfeitamente usar como moeda eleitoreira a inclusão ou a exclusão do cadastro.

Istoé - O sr. denunciou isso?

Frei Betto - Briguei até o limite das minhas forças, mas chegou a um ponto em que eu entreguei o boné. E hoje sou um feliz ING, um indivíduo não governamental.

Istoé - O senhor chegou a dizer: “Penso que o PT trocou um projeto de Brasil por um projeto de poder.” 

Frei Betto - Continuo dizendo isso. O PT tinha um projeto que se baseava em três pilares: ser o partido dos mais pobres, da ética e organizador das classes trabalhadores. Isso está nos documentos fundadores do PT. Ser o partido da ética na política e das reformas estruturais que conduziriam o Brasil a uma sociedade socialista. Os três pilares foram abandonados.

Istoé - E qual a avaliação, então, que o sr. faz sobre os 12 anos de PT no poder federal?

Frei Betto - O PT faz um governo bom, tanto que eu votei no Lula, votei na Dilma e votaria de novo, por uma razão simples. O meu critério de avaliação de qualquer político ou política é em que medida isso beneficia ou não os mais pobres. Esse é o meu critério que tirei do Evangelho de Jesus. O meu termômetro é como está a vida dos mais pobres e, no Brasil, a vida dos mais pobres melhorou muito nos últimos 12 anos. Está havendo uma descamarotização do acesso ao consumo. E talvez um dos equívocos que o PT tenha cometido seja justamente esse. Ele permitiu, e isso foi bom, um acesso ao consumo de bens pessoais. Agora, cadê os bens sociais? A saúde, a educação, a segurança, o transporte público? O governo está devendo os bens sociais. E daí as manifestações de 2013 e 2014.

Istoé - Mas sr. começou o livro “Mosca Azul” agradecendo por seu pai não estar aqui para ver o governo do PT.
Frei Betto - A minha esperança era muito maior. Apesar disso eu acho que o PT é muito melhor do que qualquer alternativa apresentada até agora. Mas falta muito. Falta mexer nas estruturas brasileiras. E falta ter um projeto a longo prazo de emancipação do nosso país. 

Istoé - O sr. é amigo do ex-presidente Lula há mais de 30 anos. Como funciona essa relação hoje?

Frei Betto - Nós temos um pacto: não falar de relações pessoais. Nós somos amigos, sempre fomos, mas não falo sobre isso.

Istoé - O Lula pode vir a se candidatar novamente em 2018. O sr. mesmo chegou a dizer isso. E também disse que o Lula sempre terá o seu voto. Isso permanece?

Frei Betto - Desde que ele esteja a favor dos mais pobres. Se amanhã ele falar que volta para atender exclusivamente ao mercado, não terá o meu voto.. Em 2018, Lula só não será candidato se acontecer a desgraça de ele morrer antes. E se isso acontecer haveria uma grande briga interna para saber quem seria o candidato. Bem, é certo que os próximos quatro anos são da presidente Dilma e tudo indica que os outros próximos oito anos serão do presidente Lula. Será o primeiro político a governar o Brasil 16 anos.

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