A arte de reinventar a vida

64 A arte de reinventar a vida Finda o ano, inicia-se o novo. No íntimo, o propósito de “daqui pra frente, tudo vai ser diferente”… Começar de novo. Será? Haveremos de escapar do vaticínio do verso de Fernando Pessoa, “fui o que não sou”?
Atribui-se a Gandhi esta lista dos Sete Pecados Sociais: 1) Prazeres sem escrúpulos; 2) Riqueza sem trabalho; 3) Comércio sem moral; 4) Conhecimento sem sabedoria; 5) Ciência sem humanismo; 6) Política sem idealismo; 7) Religião sem amor.
E agora, José? No mundo em que vivemos, quanta esbórnia, corrupção, nepotismo, ciência e tecnologia para fins bélicos, práticas religiosas fundamentalistas, arrogantes e extorsivas!
Os ícones atuais, que pautam o comportamento coletivo, quase nada têm do altruísmo dos mestres espirituais, dos revolucionários sociais, do humanismo de cientistas como os dois Albert, o Einstein e o Schweitzer. Hoje, predominam as celebridades do cinema e da TV, as cantoras exóticas, os desportistas biliardários, a sugerir que a felicidade resulta de fama, riqueza e beleza.
Impossibilitada de sair de si, de quebrar seu egocentrismo (por falta de paradigmas), uma parcela da juventude se afunda nas drogas, na busca virtual de um “esplendor” que a realidade não lhe oferece. São crianças e jovens deseducados para a solidariedade, a compaixão, o respeito aos mais pobres. Uma geração desprovida de utopia e sonhos libertários.
A australiana Bronnie Ware trabalhou com doentes terminais. A partir do que viu e ouviu, elencou os cinco principais arrependimentos de pessoas moribundas:
1) Gostaria de ter tido a coragem de viver uma vida verdadeira para mim, e não a que os outros esperavam de mim.
No entardecer da vida, podemos olhar para trás e verificar quantos sonhos não se transformaram em realidade! Porque não tivemos coragem de romper amarras, quebrar algemas, nos impor disciplina, abraçar o que nos faz feliz, e não o que melhora a nossa foto aos olhos alheios. Trocamos a felicidade da pessoa pelo prestígio da função. E muitos se dão conta de que, na vida, tomaram a estrada errada quando ela finda. Já não há mais tempo para abraçar alternativas.
2) Gostaria de não ter trabalhado tanto.
Eis o arrependimento de não ter dedicado mais tempo à família, aos filhos, aos amigos. Tempo para lazer, meditar, praticar esportes. A vida, tão breve, foi consumida no afã de ganhar dinheiro, e não de imprimir a ela melhor qualidade. E nesse mundo de equipamentos que nos deixam conectados dia e noite somos permanentemente sugados; fazemos reuniões pelo celular até quando dirigimos carro; lidamos com o computador como se ele fosse um ímã eletrônico do qual é impossível se afastar.
3) Gostaria de ter tido a oportunidade de expressar meus sentimentos.
Quantas vezes falamos mal da vida alheia e calamos elogios! Adiamos para amanhã, depois de amanhã… o momento de manifestar o nosso carinho àquela pessoa, reunir os amigos para celebrar a amizade, pedir perdão a quem ofendemos e reparar injustiças. Adoecemos macerados por ressentimentos, amarguras, desejo de vingança. E para ficar bem com os outros, deixamos de expressar o que realmente sentimos e pensamos. Aos poucos, o cupim do desencanto nos corrói por dentro.
4) Gostaria de ter tido mais contato com meus amigos.
Amizades são raras. No entanto, nem sempre sabemos cultivá-las. Preferimos a companhia de quem nos dá prestígio ou facilita o nosso alpinismo social. Desdenhamos os verdadeiros amigos, muitos de condição inferior à nossa. Em fase terminal, quando mais se precisa de afeto, a quem chamar? Quem nos visita no hospital, além dos que se ligam a nós por laços de sangue e, muitas vezes, o fazem por obrigação, não por afeição? Na cultura neoliberal, moribundos são descartáveis e a morte é fracasso. E não se busca a companhia de fracassados…
5) Gostaria de ter tido a coragem de me dar o direito de ser feliz.
Ser feliz é uma questão de escolha. Mas, vamos adiando nossas escolhas, como se fôssemos viver 300 ou 500 anos… Ou esperamos que alguém ou uma determinada ocupação ou promoção nos faça feliz. Como se a nossa felicidade estivesse sempre no futuro, e não aqui e agora, ao nosso alcance, desde que ousemos virar a página de nossa existência e abraçar algo muito simples: fazer o que gostamos e gostar do que fazemos.
* Frei Betto é escritor, autor de “A arte de semear estrelas” (Rocco), entre outros livros.
** Publicado originalmente no Correio da Cidadania.
(Correio da Cidadania)

 

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