O retorno à terra dos tupinambás

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Jovens indígenas durante ritual, em 2012. Foto: Daniela Alarcon

No sul da Bahia, 4,7 mil índios enfrentam a polícia, as tocaias e a omissão do governo federal para ter de volta o território de seus “troncos velhos”.

“O velho João, meu sogro, cansou de dizer: ‘Aqui nessa região ainda vem época de o rico desejar ser pobre’. Porque, quando viesse a vassoura-de-bruxa, os ricos iam perder tudo e os pobres já não tinham nada mesmo”, diz dona Maria da Glória de Jesus, mulher do pajé da aldeia Tupinambá de Serra do Padeiro, aludindo à derrocada da cacauicultura, que dominou o sul da Bahia até o final da década de 1980. “Deus mandou a bruxa para poder salvar o pobre. Só fala que foi desgraça quem não conhece da terra, quem não quer viver na terra. Porque o pobre, de primeiro, era pisado, tinha que trabalhar ali e se matar. E pobre não tinha direito de terra. Se fosse no tempo em que não tinha a vassoura-de-bruxa, os índios estavam se apoderando de terra? Uma peste que estavam! Ô, meu Deus, os ricos mandavam matar tudo!”
A reorganização dos índios Tupinambá – que tiveram seus antepassados aldeados, a partir de 1680, na redução jesuítica de Nossa Senhora da Escada (hoje Olivença, distrito de Ilhéus) – coincide, de um lado, com a decadência dos coronéis de cacau e, de outro, com o início de uma nova etapa, inaugurada pela Constituição Federal de 1988, que passou a reconhecer os direitos territoriais indígenas. A análise de dona Maria é perspicaz. Apesar de enfraquecidos, contudo, filhos e netos dos coronéis de outrora vêm juntando forças com outros setores da elite regional – em especial, o turístico –, para inviabilizar a reparação das injustiças historicamente cometidas contra os Tupinambá.
Recentemente, o emprego de métodos que remontam ao tempo do cacau, como a contratação de jagunços e a realização de tocaias, intensificou-se. Na noite de 14 de agosto, os estudantes da Escola Estadual Indígena Tupinambá Serra do Padeiro voltavam para suas casas quando um balaço acertou o para-brisa do caminhão em que viajavam. Ninguém foi atingido pelo disparo, mas os estilhaços de vidro feriram Lucas Araújo dos Santos, 18 anos, e Rangel Silva Calazans, 25, no rosto e no peito. O ataque ocorreu em represália à realização de uma série de “retomadas de terras” (ações de recuperação, pelos indígenas, de áreas por eles tradicionalmente ocupadas e que se encontravam em posse de não índios) entre junho e agosto.
O processo de demarcação da Terra Indígena (TI) Tupinambá de Olivença – que se estende por cerca de 47 mil hectares, abarcando porções dos municípios de Buerarema, Ilhéus e Una – teve início em 2004. Vivem na área cerca de 4,7 mil indígenas. Todas as contestações à demarcação foram indeferidas e não restam dúvidas sobre a tradicionalidade da ocupação indígena. Contudo, descumprindo os prazos estabelecidos legalmente, o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, ainda não assinou a portaria declaratória da TI, para que o processo então se encaminhe para as etapas finais, incluindo o pagamento das indenizações devidas aos ocupantes não indígenas e o reassentamento daqueles que têm perfil de cliente da reforma agrária. O governador Jacques Wagner, por sua vez, tem prestado declarações ecoando os argumentos da elite regional, que tenta convencer a opinião pública de que a demarcação provocará uma “tragédia” de grandes proporções.
Os dias que se seguiram à emboscada contra o veículo escolar foram marcados por protestos violentos no município de Buerarema, organizados por indivíduos e grupos contrários à demarcação. Imagens veiculadas pela imprensa regional mostram veículos de órgãos públicos como a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai/MS) e o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) sendo retidos e incendiados pelos manifestantes. Apesar de a Força Nacional de Segurança ter sido deslocada para a área, os ataques persistiram: prédios públicos foram depredados e, no dia 24 de agosto, indígenas tiveram suas casas incendiadas. Na imprensa local, os Tupinambá são apresentados como “criminosos que se dizem índios”. Em um editorial publicado no final de agosto, lê-se: para frear a ameaça indígena, “só restam as armas”.
Para o Procurador da República em Ilhéus, Ovídio Augusto Amoedo Machado, “a conclusão do processo demarcatório é essencial para a pacificação da região, pois trará segurança jurídica para ambas as partes”. O Ministério Público Federal comprometeu-se a buscar meios para acelerar sua conclusão, bem como a instaurar investigações para apurar a autoria dos ataques contra os Tupinambá. Uma campanha pela urgente conclusão do processo demarcatório, incluindo uma petição online, foi lançada em agosto. Na ocasião, dezoito pesquisadores que desenvolveram estudos acerca dos Tupinambá, junto a diferentes universidades, divulgaram uma carta pública, enfatizando que apenas a conclusão da demarcação fará cessar o conflito territorial.

Uma orelha pregada na parede. 

Nas décadas de 1920 e 30, lê-se nos jornais da época, o “bando” comandado por um “criminoso perigosíssimo e hediondo” esteve à solta no sul da Bahia. Após sucessivos confrontos com a polícia, seu líder foi preso e, em 1937, desapareceu. Tratava-se de Marcellino José Alves, indígena que, junto a alguns companheiros, mobilizou-se para tentar barrar a penetração de não índios em suas terras, no que ficou conhecido como o “levante do caboclo Marcellino”, um dos muitos episódios de resistência territorial levados a cabo pelos Tupinambá.
Quando procuravam Marcellino, certa noite, os policiais invadiram um sítio habitado por três indígenas – os irmãos Flaviano, Lourenço e Rufino – e suas famílias. Para que informassem o paradeiro do “bando”, os irmãos foram amarrados, açoitados com varas e interrogados. Os filhos menores de Rufino foram poupados, mas os dois mais velhos, Estelina Maria Santana e seu irmão Pedro, levaram uma surra de bainha de facão. Estelina morreu em 1987. A história quem conta é um de seus filhos, que vive em uma área retomada. Em sua perspectiva, o imperativo de recuperar o território tem a ver, junto às questões materiais, com uma obrigação moral, em memória de Estelina. Também participa do processo de retomada a filha de outro indígena torturado na perseguição a Marcellino, Manoel Liberato de Jesus, o Duca, que teve unhas arrancadas a saibro e a orelha esquerda pregada na parede. Ao fazê-lo, os policiais avisaram: se ainda estivesse ali quando voltassem, morreria. “Meu pai fez força, rasgou a orelha e saiu.” O lóbulo acabou permanentemente mutilado, como se pode ver no retrato em sua carteira de filiação ao Sindicato Rural de Ilhéus, guardada pela filha.
Estes e outros casos indicam que a constatação de uma injustiça, ruminada por décadas, conecta as retomadas de terras à violência historicamente perpetrada contra os indígenas da região. Não faltam casos de tortura, estupros, desaparecimentos e massacres, inclusive no século 20 – nem mesmo na literatura memorialística escrita pelos “vencedores”. A “pacificação dos índios” remonta aos primórdios da colonização. Em 1559, a praia do Cururupe, extremo norte da TI, foi cenário da sangrenta Batalha dos Nadadores, comandada por Mem de Sá. Segundo relato do próprio governador-geral, quando dispostos ao longo da praia, os corpos dos indígenas assassinados estendiam-se por quase uma légua.
O aldeamento jesuítico de Nossa Senhora da Escada, se, por um lado, minimizou as dificuldades enfrentadas pelos colonos para dominarem a Capitania de São Jorge dos Ilhéus – liberando terras, contendo as investidas dos índios e reservando mão-de-obra –, por outro, nunca foi capaz de desarticular completamente a sociedade indígena. Antes, a resistência expressava-se em incêndios de engenhos e fugas conjuntas de “negros da terra” (indígenas escravizados) e “negros da Guiné” (africanos escravizados), entre outras ações. Agora, em uma correlação de forças mais desfavorável, os índios aldeados punham em marcha estratégias mais ou menos silenciosas, ao passo que outros se refugiavam na mata, fora do alcance dos jesuítas.
A penetração dos não índios no território só se intensificaria com o desenvolvimento da agricultura cacaueira, a partir do final do século 19 e, mais ainda, em meados do século 20. Foi o tempo dos coronéis, como Manoel Pereira de Almeida, recordado pelos índios mais velhos por suas perversidades; de jagunços como Salu Barbadura, Testa de Ferro e Bode Preto; e das tomas de terra. Mesmo aquela que seria considerada a mais moderna agroindústria da área, a Unacau Agrícola S.A., continuou com as práticas do período “heroico” do coronelismo. Criada em 1978, a Unacau adquiriu diversas áreas contíguas nas imediações do rio das Caveiras, em Una. “Tomaram muita roça aí nessa Unacau”, conta um indígena nascido em 1937, exemplificando com o caso de um homem conhecido como Zequinha da Manteiga, que detinha uma posse lindeira à Unacau e teria sido assassinado por capangas da empresa. Indígenas que moram nos arredores lembram-se dos “três maiores pistoleiros da Unacau”; dois eles, conhecidos como Zé Bagueiro e Antonio Silvino, já estão mortos.
Rapidamente, a Unacau tornou-se uma das maiores produtoras de cacau do país. O avanço da vassoura-de-bruxa, porém, levou-a ao declínio e, a partir da década de 1990, já sob controle do grupo Gafisa, passou a produzir pupunha e café, com financiamento público. Nos anos subsequentes, a empresa foi autuada por crime ambiental; as fazendas, arrendadas; denunciou-se o emprego de trabalho escravo na produção de café; e, em 2006, iniciou-se o processo administrativo de desapropriação de parte da área para a reforma agrária. Em maio de 2012, os Tupinambá retomaram a porção da Unacau localizada no interior da TI e, desde então, vêm tratando de recuperar as roças de cacau e introduzir novos cultivos.
A elite regional hoje se ocupa em negar a presença histórica dos indígenas na área, sustentando que os Tupinambá teriam sido “extintos” no século 17. Silva Campos, um insuspeito cronista, escrevendo no final da década de 1930, afirma: “Ainda agora o tipo indígena, quase indene de miscigenação de outros sangues, prepondera na massa da população”. Em 1985, Duca Liberato – o indígena que teve a orelha mutilada –, acompanhado de um parente, seu Alício Francisco do Amaral, viajou a Brasília, para pedir o apoio de Mário Juruna, então deputado federal: “viemos a fim das nossas terras, porque as nossas terras estão tomadas, e nós precisamos delas pra trabalhar”, seu Alício lembra de ter dito. A visita, contudo, não resultou em qualquer ação do Estado em defesa dos indígenas.
Durante o período em que estiveram “invisíveis” para além das fronteiras regionais, os Tupinambá aferraram-se em profecias sobre o “retorno da terra”, que se multiplicaram. Em sonhos ou momentos de “loucura”, indígenas previam: um dia, as terras onde estavam os cemitérios velhos, as terras onde muitos índios nasceram e tiveram seus umbigos enterrados, seriam libertadas. E os indígenas expropriados poderiam voltar.

“Os fazendeiros tomaram a liberdade de cada um de nós”. 

“Nós somos já os brotos, que nascemos dos troncos velhos. Nós estamos brotando e criando, renovando tudo de novo.” É assim que Manezinho*, 80 anos, explica o processo de retomada. No tórax, traz uma marca da violência desatada contra os indígenas em luta: a cicatriz de um tiro de bala de borracha, disparado por um agente da Polícia Federal à paisana, em uma operação de reintegração de posse significativamente batizada “Terra Firme”, realizada em 2008. “Fiquei cuspindo sangue mais de mês”, lembra. Filho de um índio e de uma não índia vinda do norte do estado, Manezinho nasceu na mata e perdeu a mãe ainda molecote. Transtornado com a perda, o pai encantou-se pela rua e partiu, depois de trocar a terra onde vivia pela promessa de uma casa, que desabou tão logo ele chegou.
“Eu fui criado no mundo, perdido”, conta Manezinho. Trabalhou em fazendas de cacau – inclusive nas terras de Gileno Amado, conhecido coronel –, aprendeu a bater facão, cantar vaquejadas e fez “um bocado de filho por aí, esparramado”. A certa altura, como não tinha terra onde parar, refugiou-se perto do topo da Serra do Padeiro, que, apesar de cercado pelas fazendas dos não índios, continuava pouco devassado. Essa formação rochosa é um marco simbólico para os indígenas da área. Ali é a morada dos encantados, entidades não humanas que, segundo a cosmologia tupinambá, são os donos da terra. Na mesma serra, Marcellino e seus companheiros refugiaram-se da perseguição policial. Durante cerca de seis anos, Manezinho viveu ali, sob uma grande pedra, dormindo em uma cama de vara, forrada de folhas. Hoje, ao cabo de uma vida inteira “dando o dia” para os fazendeiros em troca de quase nada, vive em uma área retomada. “Agora, eu não trabalho para ninguém”, sorri.
Desde as primeiras retomadas de terras, realizadas em 2004, centenas de indígenas expropriados retornaram ao território. Antes do reconhecimento pelo Estado da existência dos Tupinambá, alguns indígenas que resistiam em pedaços de terra diminutos cumpriam um papel centrípeto, dando guarida ocasional aos parentes espalhados. Contudo, um retorno que se pretendesse mais amplo e definitivo – permitindo a recomposição do povo – só se tornou possível no processo de retomada. É o caso da família de Ana Zilda Ferreira da Silva: nos últimos nove anos, mais de 20 descendentes da indígena já falecida retornaram à Serra do Padeiro, em sucessivas levas, vivendo agora em quatro retomadas. “Hoje eu luto pela terra e quero terra para ter todos os meus parentes dentro”, explica uma filha de Ana Zilda. “Porque já chegou ao ponto do meu pessoal dormir no meio do tempo, sem ter um teto. A pior coisa é ver seu irmão, sua irmã sair com uma trouxa nas costas sem saber para onde ir.”
Nascida na Serra do Padeiro, Ana Zilda perambulou por boa parte do território. Uma filha mudou-se para outro estado, outra desapareceu, filhos e filhas trabalharam em fazendas. A história repetiu-se. “Minha mãe criou a gente em fazenda dos outros”, conta Lena*, 35 anos, neta de Ana Zilda. “Os fazendeiros tomaram a liberdade de cada um de nós.” Para ajudar a mãe com as despesas, aos 20 anos, Lena deixou os dois filhos pequenos e foi atrás de uma promessa de trabalho como empregada doméstica em São Paulo. “Só fui com o dinheiro da passagem, mais nada. A mulher disse que pagava 150 reais de salário; no final de um mês, ela deu cinco.” Experiências com trabalho escravo – em fazendas de cacau ou “servindo em casa de família” – povoam os relatos dos Tupinambá.
A expropriação territorial foi particularmente cruel com as mulheres indígenas. “Minha mãe me pariu chorando e xingando”, conta dona Rosa*, 58 anos, filha de uma índia Kariri-Sapuyá e de um não-índio, esposa de um Tupinambá. A mãe de dona Rosa, conhecida como Nita, nasceu na Reserva Indígena Caramuru-Catarina Paraguaçu, próxima ao território tupinambá. O pai de dona Rosa só conseguiu se deitar com Nita – que trabalhava para ele em uma quinta de café – depois de presenteá-la com um corte de tecido enfeitiçado. Em seguida, abandonou-a. Como tinha de sustentar a si e aos filhos e a reserva indígena estava tomada pelos brancos, aonde havia trabalho, Nita ia. Junto à mãe, dona Rosa trabalhou na roça, lavou roupa de ganho, quebrou pedra em uma jazida de mármore azul: “Trabalhei desde que nasci”.
Quando dona Rosa conheceu o pai, aos seis anos de idade, ele lhe deu um minúsculo frasco amarelo de perfume, mas não o sobrenome. Adulta, tornou a vê-lo. Ele lhe disse que poderia pedir o que quisesse, mas ela já não queria nada: “Nasci nua, já estou vestida”, teria respondido. Após quatro décadas resistindo junto ao marido em um pequeno sítio aos pés da Serra do Padeiro – que lhes tentaram tomar com tocaias, cercas que se moviam à noite e cartas de advogados –, ela se entusiasma com o processo de retomada: “Na aldeia, dá para viver bem. Tem lugar para andar, para correr… Aldeia dá para tudo, até para gente virar bicho”.

* Os nomes são fictícios.
** Publicado originalmente no site Carta Capital.

(Carta Capital) 
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