GERÔNIMO – O HERÓI DE ERMÍRIO

Murílio Hingel, ministro da Educação do governo Itamar Franco, um dos mais qualificados intelectuais de seu tempo, permanece e costuma dizer que “determinadas pessoas de origem humilde conseguem chegar ao topo e se esquecem de sua origem, ou buscam fazer com que não se lembrem”.

Há uma regra de etiqueta, dessas trivialidades levianas (algumas trivialidades não são levianas) que diz que ao se tomar um cafezinho ou ao segurar um copo numa recepção, principalmente se por lá estiver a crônica social, o dedo mindinho deve ficar recolhido. Aquele negócio de segurar o copo ou a xícara com o mindinho apontando para qualquer coisa é considerado sinal de “emergente social”.
Conheço gente que treina isso. Chega a perguntar – “estou conseguindo segurar o mindinho”? – Já assentar e deixar aparecer a calcinha não significa que se esteja infringindo alguma regra de etiqueta social, dependendo de quem for. Sharon Stone não infringe. Alguém que pese 100 quilos infringe.

Desejar decorar o ambiente de trabalho em termos profissionais – um decorador profissional – não quer dizer que o contratante entenda alguma coisa do assunto, ou que o decorador vá fazer refletir na decoração a alma do trabalho, do local, do que seja. De repente saem fotos montagens imundas e vai tudo para o brejo. 

O que vem acontecendo ao antigo Espírito Santo (hoje estado ARACRUZ/VALE/SAMARCO/CST) é o reflexo do modelo político e econômico que sempre se fez presente em todo o País, em maior ou menor escala aqui e ali. O predomínio das elites, agora em caráter absoluto. Pleno.

O antigo Espírito Santo é um grande latifúndio daquelas empresas (ARACRUZ/VALE/SAMARCO/CST) e os supostos governadores, meros capatazes ou gerentes mais ou menos qualificados e muito bem remunerados dos donos da fazenda.

Nessa corporação sem rosto, sem face que é a instituição Estado brasileiro, onde o que deveria ser a corte suprema é um antro em que se entra pela porta dos fundos – Gilmar Mendes – esses empresários/latifundiários perceberam a necessidade de controle de todo o aparelho estatal.

Para mafiosos como Ermírio de Moraes é fundamental o controle do INCRA – INSTITUTO NACIONAL DE COLONIZAÇÃO E REFORMA AGRÁRIA –. No antigo Espírito Santo é departamento da ARACRUZ e das outras empresas a partir do superintendente Jerônimo qualquer coisa – “Gerônimo é o herói” –, um antigo militante de esquerda, de causas populares e que resolveu dar razão à sentença de Murílio Híngel sobre não querer o menor contato com as origens.

Importante é poder segurar o copo ou a xícara, ou carregar a pasta, sem que o mindinho esteja exposto, apontado para as câmeras na hora do registro nas colunas de leviandades.

Os servidores do INCRA e os que resistem no latifúndio divulgaram nota de protesto e indignação com os rumos tomados pelas negociações com empresas sobre demarcação de terras indígenas e terras quilombolas. São propriedades seculares de índios e povos quilombolas.

Querem agora, os donos do latifúndio, que essas terras se prestem aos seus interesses e à ganância predadora com que se voltam para o que chamam progresso, o tal que “gera empregos” e um monte de doenças como conseqüência desse desenvolvimento, a maior delas, a transformação do ser humano em objeto, em escravo.

Esse, o objeto/escravo, pouco importa que o mindinho fique esticado e não junto ao copo ou xícara, pois o máximo que lhe sobra é a cachaça lembrando a música de Gonzaguinha. 

Sobra também a indignação e a coragem dos que não se deixam corromper e nem renegam as origens na luta popular e no compromisso com a ética, por menor que seja, mas compromisso com a ética, entendida aí como a da decência no trato da coisa pública.

Esse é um dos males que aflige o PT e já dominou por inteiro o PSDB. Um cargo aqui e a ética lá, bem longe, para os raios que o parta.

Não existe perspectiva revolucionária, ou transformadora que não passe hoje pela questão ambiental e isso implica no recuperar o caráter e a dimensão do ser enquanto tal, logo, na reconquista do que foi perdido na voracidade do progresso predador e puro privilégio, pois só é progresso aquilo que é comum a todos. Não o sendo é privilégio.

O que acontece no INCRA no antigo Espírito Santo, ou no Tribunal de Justiça, ou na Polícia – qualquer uma das duas – a partir do capataz maior, Paulo Hartung, é o que vem acontecendo desde notórios criminosos como Élcio Alvarez, presidente da suposta Assembléia Legislativa – clube de amigos e inimigos cordiais – é de estarrecer.

Os focos de resistência, isso mesmo, focos, lutam com o risco da própria vida tamanho o poder dos donos e a forma como teceram sua teia de poder nas máquinas estatais do antigo estado e daquilo que chamam de Federação brasileira.

Os protestos dos servidores e entidades diversas contra a forma como estão sendo conduzidas as negociações para a demarcação de terras indígenas e quilombolas são como gritos de sobrevivência diante de tanta impunidade, de tanta corrupção, da violência e da barbárie adjetivados de grandioso futuro, progresso alucinante, geração de empregos, etc, etc.

Há alguns anos atrás, num seminário católico, se discutia o futuro do mundo e da humanidade diante da devastação ambiental e humana causada por esse progresso padrão ARACRUZ. A conclusão foi simples – um mundo semelhante ao desenhado no filme Mad Max –. Desertos, cobiça, desvario, a perda do ser em si e por si.

Não existe esquerda hoje sem percepção do problema ambiental e do próprio ser.

“Ser, ou não rês, está é a questão.” 

Em breve cercas de arame farpado cercando a fazenda que já foi estado. Que nem aqueles rancheiros que contratavam pistoleiros enquanto iam tomando as terras dos outros.

Já imagino um filme de Arnaldo Jabor sobre a vida e obra de Ermírio de Moraes. O “mocinho” de chapéu de vaqueiro, duas armas num coldre em posição de saque – o saque é feito no BNDES – e botas e esporas. Bebe uma dose de etanol, negócio de macho e limpa a boca com as costas da mão.

Gerônimo, o herói do sertão, faz uma ponta no filme. Segura a pasta do mocinho.   

Um monte de escalpos. Vão ficar pendurados na parede atrás do piano do saloon. Gerônimo vai lá tirar a poeira todas as manhãs.
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