EUA na Somália: o tiro pela culatra

O famoso senhor-da-guerra paramilitar somaliano conhecido pelo codinome Indha Adde [“Olhos Brancos”], anda ao longo de trincheiras, nos arredores do Mercado Bakara em Mogadisco, que já esteve ocupado pelos milicianos do Shabab, o grupo de milícias islâmicas que jurou fidelidade à Al-Qaeda. Numa das trincheiras, o pé de um cadáver aflora à superfície de uma cova rasa, apenas algumas pás de areia jogadas de longe sobre o corpo. Um dos milicianos que acompanham Indha Adde diz que é o cadáver de um estrangeiro que lutou com o Shabab. “Enterramos os mortos deles, e também capturamos vários vivos”, diz Indha Adde, voz grave, rascante. “Cuidamos deles se são somalianos, mas se capturamos um estrangeiro, é executado para que outros saibam que não temos piedade.”

Apesar da conversa, Indha Adde já não é simples senhor-da-guerra, não, pelo menos, oficialmente. Atualmente, é conhecido também como general Yusuf Mohamed Siad e usa uniforme militar somaliano, completo, com boina vermelha e três estrelas nos ombros. As armas e a nova legitimidade que carrega foram-lhe entregues diretamente pelo exército da União Africana patrocinado pelos EUA conhecido como AMISOM e que ocupa hoje grandes porções da área de Mogadisco.

É grande mudança. Há apenas cinco anos, Indha Adde era um dos mais importantes aliados da Al-Qaeda e dos paramilitares de Shabab, além de comandante de uma das mais poderosas facções islâmicas que combatiam contra grupos estrangeiros na Somália e contra o governo apoiado pelos EUA na Somália. Ele admite abertamente que deu abrigo a algumas das figuras mais famosas da Al-Qaeda – entre os quais Fazul Abdullah Mohammed, suposto cérebro por trás dos atentados à bomba, em 1998, contra as embaixadas dos EUA no Quênia e na Tanzânia – e que desobedeceu ordens da CIA, protegê-los. (Fazul foi morto em junho, em Mogadisco.)

“A CIA não conseguiu me convencer a trabalhar para eles” – Indha Adde relembra seus encontros na Somália, no Quênia e em Dubai com agentes da CIA no início de 2004. Diz que se reuniu com o chefe da CIA para o leste na África, nos Emirados. “Ofereceram dinheiro, depois ofereceram ajuda para a região que eu controlava, ofereceram influência e poder na Somália, com cooperação dos EUA, mas recusei tudo”. Naquele momento, Indha Adde – como muitos muçulmanos em todo o mundo – viam os EUA como “arrogantes” e em cruzada contra o Islã. “Pessoalmente, eu pensava que até Osama [bin Laden] fosse homem bom, que só queria implantar a lei islâmica” – diz-me ele, numa de suas casas em Mogadisco.

Nem sempre Yusuf Mohamed Siad foi conhecido como Indha Adde. Como um dos senhores-da-guerra que dividiram e destruíram a Somália durante a guerra civil que se arrastou pelos anos 1990s, ele assumiu brutalmente o poder na região do baixo Shabelle, povoada por um clã rival. Sua ação ali lhe valeu o apelido de “Açougueiro”. Há quem diga que controlava operações de tráfico de drogas e armas pelo porto de Merca. Então, quando os ventos religiosos e políticos começaram a mudar na Somália, depois do 11/9, repaginou-se e converteu-se em xeique islâmico, em meados dos anos 2000s, dedicado a combater estrangeiros, inclusive outros senhores-da-guerra sustentados e comandados pela CIA.

Talvez mais que qualquer outro personagem, Indha Adde corporifica a constelação de ‘fidelidades’ e de solidariedades cruzadas que marcaram a Somália desde o fim do último governo estável, derrubado em 1991. E o personagem que encarna hoje traz em si todas as contradições do presente do país: é um senhor-da-guerra que acredita na lei da Xaria, é cúmplice da CIA e ganha milhões, em dinheiro e armas, da AMISOM (African Union Mission in Somalia). Em várias áreas de Mogadisco ninguém entra sem sua permissão; ele controla as maiores milícias; e, de todos os senhores-da-guerra, é quem controla o maior arsenal de armamento ‘técnico’ (armas automáticas pesadas montadas em caminhões) de toda a cidade.

Apesar de os EUA e outras potências ocidentais gastarem centenas de milhares de milhões de dólares em armas, treinamento e equipamento para militares de Uganda e Burundi, sob os auspícios da AMISOM, os militares somalianos continuam sem recursos e sem armas. Os soldados são mal pagos, indisciplinados e, no final das contas, mais leais aos respectivos clãs que ao governo central. É onde entram as milícias que Indha oferece para alugar.

Ao longo do ano passado, o governo da Somália e da AMISOM Awakening Councils nas áreas sunitas do Iraque em 2006, para comprar lealdade estratégica de ex-aliados do atual inimigo – nesse caso, do grupo Shabab. Alguns senhores-da-guerra, como Indha Adde, receberam cargos ministeriais ou patentes militares em troca de emprestar seus soldados para a luta contra o grupo Shabab. Vários são ex-aliados da Al-Qaeda ou do grupo Shabab, e muitos combateram contra a invasão dos etíopes patrocinados pelos EUA em 2006 ou contra a missão comandada pelos EUA na Somália no início dos anos 1990s que culminou no incidente que se conhece como “Falcão Negro em Perigo” [ing. Black Hawk Down] ( procuraram contato com tipos sinistros, num esforço duplo para construir alguma coisa que, pelo menos, se pareça com  um exército nacional e, como os EUA tentaram fazer com seus “Conselhos para Despertar” (ing.[1]).

O presidente da Somália Xeique Sharif Sheik Ahmed diz que Indha Adde e outros senhores-da-guerra juraram fidelidade ao governo, mas quem viaje por Mogadisco com Indha Adde comprova facilmente que seus homens são leais a ele, acima de qualquer outra lealdade. O presidente Sharif dava a impressão de nada saber dessa realidade, quando o encontrei em seu gabinete em Mogadisco. “Quanto mais território se ganhe, mais fácil será unir [as várias milícias] sob um só guarda-chuva”, disse ele.

Nem todos, no governo da Somalia veem as coisas do mesmo modo. “Esse pessoal não deveria ter qualquer função no atual governo”, diz Ahmed Nur Mohamed, prefeito de Mogadisco. “As milícias não apoiam o governo, mas estão à espera. É uma bomba-relógio: eles esperam, querem enfraquecer o governo, e esperam que o governo caia. Então, cada milícia ocupará uma área.”

Mohamed Afrah Qanyare, outro mal afamado senhor-da-guerra que foi apoiado durante anos pela CIA, concorda com essa avaliação-prognóstico. Entrevistado numa de suas casas em Mogadisco, tomando café, Qanyare manifesta desagrado por a CIA ter rompido relações com ele e não acredita que eu não trabalhe para ‘eles’. “Irlandeses-norte-americanos sempre são da CIA”, diz ele, rindo e dando palmadinhas no joelho de um deputado do Parlamento somaliano que veio prestar-lhe seus respeitos. E continua: “Seja como for, estão cometendo erro muito grave” – ao apoiar senhores-da-guerra que foram aliados do grupo Shabab e da Al-Qaeda, como Indha Adde. Diz que “há diferença entre conflito de ideologia e conflito de interesses”. “Os senhores-da-guerra que vocês [EUA] estão apoiando só se distinguem do grupo Shabab por um conflito de interesses, não por algum aspecto ideológico. Armá-los e apoiá-los é jogo muito perigoso.” 

* * *
Depois dos ataques do 11/9 e do “Vocês estão conosco ou estão contra nós” do presidente Bush, a Somália rapidamente tratou de oferecer apoio aos EUA. Naquele momento, o governo somaliano havia perdido o controle de praticamente o país inteiro, que, desde o início dos anos 90s estava sendo governado por senhores-da-guerra. Mesmo assim, o ministro das Relações Exteriores da Somália, Ismail Mamou “Buubaa” Hurre, apressou-se a escrever ao secretário de Estado dos EUA. Hoje, Buubaa cita a carta, de memória: “Estamos com vocês e tão preocupados quanto vocês sobre a possibilidade de a Al-Qaeda mudar suas bases para a Somália.” Diz também que Washington “demorou muito” a decidir-se e tomar a decisão de vir para cá”. E que, quando afinal chegaram, diz Buubaa, “o tiro saiu pela culatra”. Grave e espetacularmente pela culatra.

Quando a “guerra global ao terror” foi disparada, os EUA criaram uma Força Tarefa Combinada Unida para o Chifre da África. Em 2002, cerca de 900 militares e pessoal de inteligência foram mandados para a ex-base militar francesa de Camp Lemonier, no Djibuti. Essa base secreta rapidamente se converteria em centro de ações clandestinas dos EUA no Chifre da África e na Península Arábica, e plataforma de lançamento de operações da CIA e do Comando das Operações Especiais Conjuntas [ing. Joint Special Operations Command (JSOC)] contra alvos da Al-Qaeda fora dos cenários declarados de combate no Afeganistão. Foi parte da estratégia de guerra sem fronteiras, do governo Bush.

Quando ainda se discutia quais seriam os alvos selecionados dos EUA na Somália, especialistas experientes, profundos conhecedores da região, já se manifestavam contra toda a operação. “Não há nenhuma necessidade de correr para a Somália”, disse o ex-embaixador dos EUA na Etiopia, David Shinn. “Se estão à procura de alvos militares, meu palpite é que, por lá, não existem.” Ken Menkhaus, professor somaliano do Davidson College e ex-conselheiro político da ONU sobre a Somália, escreveu inúmeros artigos sobre a ausência de qualquer tradição de radicalismo islâmico na Somália. No início de 2002, estimou que não passaria de “entre dez e doze” o número de cidadãos somalianos (além de alguns poucos estrangeiros), que mantinham laços significativos com a Al-Qaeda. Por causa da “abismal” falta de informação de inteligência, disse Shinn, não se recomendavam, naquele momento, táticas de “saltar sobre o que aparecesse”.

Os EUA não conduziram soluções diretas de “saltar sobre o que aparecesse” na Somália. Mas iniciaram ali uma guerra-simulacro que usou e divulgou exatamente essa tática. Em vez de fazer contato com o governo somaliano, para enfrentar o que inúmeros especialistas definiam como ameaça relativamente pequena, sem gravidade ou urgência maiores, os EUA, na Somália, aproximaram-se de senhores-da-guerra como Qanyare. Escolheram um caminho que levaria a influência e o poder da Al Qaeda e do grupo Shabaa a crescer muito, crescimento que, hoje, já praticamente não se consegue avaliar.


Nota dos tradutores
[1] O incidente deu origem a um filme (“Falcão Negro em Perigo”, 2001). O enredo do filme é bom resumo dos eventos: “Em outubro de 1993, durante a guerra civil da Somália, soldados americanos participaram da Batalha de Mogadísco. Uma força de elite estadunidense foi enviada ao local para capturar generais que obedeciam a Mohamed Farrah Aidid. Porém, dois helicópteros Black Hawk [Falcão Negro] foram derrubados; e a operação, que deveria levar em torno de meia hora, tornou-se uma batalha de 15 horas, terminando com 19 estadunidenses mortos e 73 feridos, além de 1.000 somalianos mortos”.


Blowback in Somalia
Traduzido pelo Coletivo da Vila Vudu

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