Por que estamos entrando novamente na Guerra Fria?

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Roberto Savio. Foto: IPS

Roma, Itália, maio/2014 – Há várias semanas os meios de comunicação dominantes se dedicam unanimemente a denunciar as ações de Vladimir Putin, primeiro na Crimeia e agora na Ucrânia.
A primeira página do jornal The Economist mostrava, no final de abril, um urso tragando a Ucrânia, sob o título “Insaciável”. A unanimidade dos meios de comunicação sempre é preocupante, porque revela algum reflexo instintivo. É possível que se esteja manifestando a inércia de 40 anos de Guerra Fria?
Essa inércia, na realidade, não desapareceu. Se for dito, ou escrito: “o presidente comunista Raúl Castro”, ninguém se surpreenderá. Mas causará surpresa chamar o presidente Barack Obama de capitalista, embora se aplique a mesma lógica.
Existem ao menos quatro pontos de análise ausentes no coro midiático.
O primeiro é que nunca se refere às responsabilidades do Ocidente nesse assunto.
Recordemos que o último líder soviético, Mikhail Gorbatchov (1985-1991) concordou com George Bush pai, Margaret Thatcher, Helmut Köhl e François Mitterrand em aceitar a reunificação da Alemanha, mas também se acordou que o Ocidente não deveria tentar invadir a zona de influência da Rússia.
Um vez que Gorbatchov foi eliminado, o jogo foi reiniciado. E a docilidade total de Boris Yeltsin (1991-1999) em relação aos Estados Unidos é bem conhecida.
Muito menos conhecido é que o Fundo Monetário Internacional (FMI) concedeu um empréstimo de US$ 3,5 bilhões para apoiar o rublo. O crédito foi parar no Banco da América, evitando o Banco Central da Rússia e acabou nos bolsos dos oligarcas que compraram todas as empresas públicas russas.
Depois de Yeltsin, Vlatimir Putin apoiou a invasão do Afeganistão pelos Estados Unidos de uma forma impensável durante a Guerra Fria: permitiu que os aviões norte-americanos voassem pelo espaço aéreo russo.
Em novembro de 2011, Putin visitou George W. Bush em seu rancho no Texas, mas algumas semanas depois este anunciou que os Estados Unidos se retiravam do Tratado sobre Mísseis Balísticos, simplesmente para desenvolver um sistema na Europa Oriental supostamente para proteger os membros da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) da ameaça do Irã.
Com realismo, essa estratégia foi interpretada como dirigida à Rússia.
A isso se seguiu o convite de Bush, em 2002, a sete países da extinta União Soviética (incluídos Estônia, Lituânia e Letônia) a se unirem à Otan, o que fizeram em 2004.
A Revolução das Rosas de 2003 na Geórgia levou ao poder Mikhail Saakashvili, um presidente pró-ocidental. Quatro meses depois, os protestos de rua na Ucrânia, a Revolução Laranja, conduziram à eleição de outro mandatário favorável ao Ocidente, Viktor Yushchenko.
Sucessivamente, Bush apoiou a adesão da Ucrânia e da Geórgia à Otan, uma bofetada em Moscou. Assim, não foi surpresa quando, em 2008, Putin respondeu militarmente à tentativa da Geórgia de ocupar a região pró-russa de Osetia do Sul, junto com outra região separatista, Abjasia. Entretanto, para os meios de comunicação se tratou de uma ação irracional.
O presidente Barack Obama tentou reparar os danos causados às relações internacionais pelo governo de Bush.
Pediu um “reinício” das relações com Moscou e, no princípio, tudo saiu bem.
A Rússia concordou com o uso de seu espaço aéreo para fornecimentos militares ao Afeganistão. Em abril de 2010, Estados Unidos e Rússia assinaram um novo Tratado de Redução de Armas Estratégicas (Start), reduzindo seus arsenais nucleares. E Moscou apoiou as sanções das Nações Unidas contra o Irã e desistiu de vender aos iranianos seus mísseis antiaéreos S-300.
Mas, em 2011, em vista das eleições parlamentares na Rússia, era claro que os Estados Unidos estavam apoiando a oposição.
Todos os meios de comunicação ocidentais estavam contra Putin, que acusou Washington de injetar centenas de milhões de dólares a favor da oposição. O então embaixador norte-americano em Moscou, Michael McFaul, respondeu que era um grande exagero e que “apenas” algumas dezenas de milhões foram entregues a organizações da sociedade civil.
Putin foi reeleito em 2012, já obcecado pela ameaça ocidental ao seu poder, e em 2013 asilou Edward Snowden, que denunciou a espionagem da norte-americana Agência Nacional de Segurança (NSA) e Obama cancelou uma reunião bilateral.
Em 2011, ocorreu a Primavera Árabe. A Rússia consentiu na ação militar na Líbia, mas só para fornecer ajuda humanitária. Como de fato se utilizou para uma mudança de regime, Moscou se sentiu enganado e protestou em vão.
Diante da guerra civil na Síria, o Ocidente tentou novamente obter o apoio russo para uma mudança de regime, e ficou descontente quando Putin o negou.
Agora o conflito se estendeu à Ucrânia com a tentativa de associar este país à União Europeia (UE) e separá-lo do bloco econômico que a Rússia tentava criar com esse país e a Bielorússia.
O segundo ponto é que a Rússia tem os recursos e a vontade para resistir às tentativas externas de reduzi-la a uma potência local.
De seu ponto de vista, qualquer esforço para cercá-la ou enfraquecê-la, agora que os enfrentamentos ideológicos desapareceram, é visto como parte da velha política imperialista, já que, ao contrário da União Soviética, a Rússia não pode ser considerada uma ameaça.
O terceiro ponto é que a questão da Ucrânia deve ser tomada com uma pitada de sal.
É um Estado muito frágil, onde a corrupção controla a política e tem problemas econômicos estruturais. Sua região oriental é a mais industrializada, e, portanto, sua população teme que a entrada da Ucrânia na UE represente a eliminação gradual de muitas fábricas.
Na parte ocidental, durante a Segunda Guerra Mundial, muitos ucranianos ficaram do lado dos nazistas, e atualmente existe um forte movimento nacionalista, próximo do fascismo.
A Ucrânia é um assunto muito complicado e caro. É razoável mudar os critérios da UE, aceitando um país totalmente fora de sintonia com o bloco e assumir uma carga enorme, só para parecer que triunfou contra um homem forte?
O que nos leva ao último ponto.
Putin é um ex-oficial da KGB, que sente que a Rússia recebeu tratamento injusto depois do colapso da União Soviética. Todos os esforços para chegar a um entendimento com o Ocidente são rechaçados, com a progressiva ampliação da Otan, a rede de bases militares que cercam a Rússia, o constante apoio aos seus oponentes e o tratamento restritivo em seu comércio.
Putin sabe que seus sentimentos sobre o declive russo são compartilhados por uma grande maioria de seus concidadãos. Mas ele é um autocrata arrogante, para dizer o mínimo, que nada faz para incentivar a modernização da economia, já que mantendo em suas mãos a produção e o comércio pode conservar o controle sobre a Rússia.
Viktor Yanukovich, presidente da Ucrânia desde fevereiro de 2010 até fevereiro deste ano, também é um autocrata ao estilo de Putin. Foi deposto por protestos em massa nas ruas, patrocinados e apoiados pelo Ocidente. Para o presidente russo, qualquer possível contágio deve ser detido de pronto.
Portanto, Putin está desempenhando o papel de salvador da nação russa, que pode intervir onde quer que haja minorias russas ameaçadas.
A pergunta é: se Putin, partir, será sucedido por uma sociedade democrática participativa, limpa e não corrupta? Os que conhecem bem a Rússia pensam que não.
A história ensina que a eliminação de autocratas não necessariamente leva à democracia. Assim, a política de hostilizar Putin em nome da democracia pode conduzir a jogar seu jogo, ao convertê-lo no defensor do povo russo.
Como escreve Naomi Klein, os únicos ganhadores nesse conflito são as corporações petroleiras, empenhadas em uma campanha mundial para conquistar mercados que abastecem os hidrocarbonos russos.
Isso implica acelerar a produção de hidrocarbonos nos Estados Unidos, sem considerar o que acontecer com o meio ambiente, e, para os europeus, substituir o gás russo pelo norte-americano.
O jornalista Tarzie Vittachi, do Sri Lanka, disse certa vez: “Tudo é sempre sobre outra coisa”. E a história não mostra muitos exemplos de petróleo e democracia marchando na mesma direção. Envolverde/IPS

* Roberto Savio é fundador e presidente emérito da agência de notícias IPS e editor de Other News.
(IPS)

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