Reforma agrária faz sentido? Só se for para valer

As negociações de paz entre o governo Juan Manuel Santos e a direção das Farc, iniciadas em Havana há seis meses, fixaram um primeiro consenso na busca da reconciliação colombiana.

O centro desse primeiro estirão fala a toda a América Latina. E isso inclui o Brasil.

Seu nome é ‘reforma agrária integral’, diz o comunicado emitido de Cuba.

“O que acertamos será o início de transformações radicais da realidade rural e agrária da Colômbia com equidade e democracia. Centramo-nos nas pessoas, no pequeno produtor, no acesso e distribuição de terras, na luta contra a pobreza, no estímulo à produção agropecuária e no resgate da economia do campo”, diz o texto.

Sendo fruto de um conflito que já fez mais de um milhão de vítimas, as palavras, neste caso, merecem consideração.

O comunicado fala a uma bandeira secular desgastada regionalmente, sem nunca ter sido implantada de fato na maioria dos países. 

A Colômbia, das Farcs, é um desses casos.

O indicador de desigualdade no acesso à terra é um dos mais agudos do planeta: 1% dos proprietários detém 50% das glebas.

Infelizmente, não é um cenário muito distinto do brasileiro.

Aqui 1% detém cerca de 45% das terras cultiváveis.

Enquanto os estabelecimentos brasileiros com menos de 10 hectares ocupam 3% da área total dos imóveis, propriedades com mais de 1.000 hectares abocanham mais de 43% do conjunto.

Em miúdos, o Brasil rural assenta-se na seguinte espiral: 4,3 milhões de estabelecimentos ficam com 24% das terras; 76% de todas as terras particulares estão concentradas em apenas 807 mil imóveis.

46 mil deles tem acima de 1000 hectares.

E somente 15 mil fazendeiros tem glebas acima de 2 mil hectares.

Mas se apoderam de 98 milhões de hectares.

Os dados são do Censo Agropecuário de 2006.

A reforma agrária, a rigor, nunca foi prioridade do Estado brasileiro e seus tímidos passos jamais tocaram nessa assimetria. 

O termo ‘reforma agrária integral’ é um conceito distinto da distribuição aleatória de glebas verificada na maioria dos países, inclusive aqui.

Uma aproximação descritiva incluiria ‘zonas inteiras reformadas’, dotadas de infraestrutura, assistência técnica, logística social, escoamento de produção, vilas, escolas, posto médico etc.

Algo cogitado por Jango quando anunciou a 300 mil pessoas no famoso comício da Central do Brasil, em 13 de março de 1964, a desapropriação das terras improdutivas às margens de ferrovias, rodovias e zonas de irrigação de açudes públicos.

Algo que o governo atual poderia cogitar, também, em relação às áreas lindeiras aos canais de transposição do São Francisco.

Escala relevante; concentração espacial; infraestrutura cooperativa; sinergias multiplicadoras.

É disso que a reforma agrária precisa para dar certo.

De algum modo, pode-se dizer que o termo ‘integral’ é um pleonasmo. 

A rigor, não existe reforma agrária digna desse nome quando o que se pratica é o rudimentar acantonamento de famílias dispersas na geografia e na engrenagem econômica.

Trata-se, neste caso, de uma antirreforma. 

Seu efeito mais notável é desacreditar o alcance de uma política demonizada pelo conservadorismo.

Hoje, é o argumento da irrelevância econômica e demográfica que sustenta o fogo das críticas.

Dotado de um agronegócio cuja eficiência graneleira é indiscutível, desde que desconsiderados seus custos sociais e ambientais, o Brasil foi colonizado por uma ideia fixa.

A de que a reforma agrária consiste no picotamento de lotes, de consequências desastrosas do ponto de vista da produção e da própria subsistência.

Governos sucessivos trabalharam para que essa percepção se tornasse um consenso negativo no imaginário da sociedade.

O êxodo rural promovido pela chamada modernização conservadora, por exemplo, foi um sucesso nesse sentido.

A América Latina e o Caribe formam hoje a região mais urbanizada do mundo, informa o relatório "Estado das Cidades da América Latina e Caribe" da ONU-Habitat. 

Mais de 80% da população regional (588 milhões de pessoas) vivem em cidades. 

No Brasil, a taxa de urbanização bate em 85%.

Deve chegar a 90% até 2020. 

Ainda assim, cerca de 33 milhões de brasileiros persistem no campo – sem considerar que o conceito de urbanização entre nós é, digamos, algo elástico.

Dos 5.560 municípios brasileiros, 2.080 são arruamentos com menos de cinco mil habitantes.

Orbitam em torno da lógica rural, abrigando uma população da ordem de cinco milhões de pessoas.

Se a ‘desimportância demográfica’ da reforma agrária é discutível, o balanço social do agronegócio enseja poucas dúvidas: não será por aí que o campo dará sua contribuição à justiça social na América Latina.

Um estudo realizado em conjunto pela FAO, OIT e Cepal (‘Políticas de Mercados e Pobreza Rural na América Latina’) evidencia o efeito desprezível da alta dos preços das commodities na redução da miséria rural.

Entre 1980 e 2010, período em que o agronegócio mais lucrou, a pobreza rural registrou um recuo medíocre: de 60% da população total, em 1980, caiu para 53%, em 2010. 

O Brasil ilustra essa assimetria.

O país é um dos cinco maiores exportadores de alimentos do mundo.

Cerca de 18 milhões de brasileiros residentes no campo são miseráveis.

Destes, quase 13 milhões recebem o Bolsa Família.

Tratar a agenda da reforma agrária como uma relíquia histórica, portanto, soa precipitado.

No mundo todo, é justamente no campo que se concentram as maiores legiões de famintos (70% dos 870 milhões de subnutridos).

O que esses números evidenciam, na verdade, é a densa barragem de interesses que resistem à reforma agrária ‘integral’, só agora cogitada na Colômbia.

E não por acaso, após 50 anos de uma guerra fraticida, na qual morreram um milhão de pessoas.

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