Diz-se que o diabo arrasta com ele um fedor de fogo e enxofre. Os feitos do diabo são frequentemente descritos como “o mal mais alucinado” [1]. E quem pareça (seja ou não seja) inocente é sempre descrito como “cheirando a rosas”. Parece haver, pois, associação antiga entre feitos e fedores.
O exército israelense recentemente se empenhou em demonstrar essa associação. Dia 6 de março, o Middle East Monitor noticiou que:
...o exército de Israel atacou casas de palestinos na vila de Nabi Saleh com jatos de água podre de esgoto, como punição aos palestinos que organizavam protestos semanais contra o Muro do Apartheid construído em terra roubada. O grupo de defesa de direitos humanos B’Tselem publicou um vídeo (a seguir) no qual se veem caminhões-tanques blindados israelenses, armados com “canhões d’água”, lançando água podre de esgotos sobre casas de palestinos.
A água podre de esgoto é líquido tão mal-cheiroso que não há quem não se afaste para o mais longe que possa, de quem feda como fede aquela água podre. Não é a primeira vez que o exército de Israel usa esse tipo de tática imunda.
Os colonos sionistas orgulham-se muito da prática de lançar os esgotos bem longe das próprias colônias, quase sempre erguidas nas áreas mais altas, diretamente nos campos e cidades palestinas, nos vales abaixo. Ao que tudo indica, são práticas conhecidas e, muito provavelmente, aprovadas pelo estado de Israel.
Duvido que muitos dos israelenses envolvidos nessas manobras tenham algum dia lido O Inferno, de Dante. Naquele poema épico, o inferno é lugar afogado em esgoto e podridão: as ações dos israelenses parecem desejar reproduzir o mesmo cenário. Estarão os israelenses dedicados a converter em inferno a Terra Santa? Sim, pelo menos no que tenha a ver com os palestinos. Por isso os colonos e os soldados copiam os passos dos amaldiçoados de Dante.
Até onde vai o fedor das ações dos israelenses? Com certeza chega até Londres. Recentemente, o deputado David Ward, do partido Democrático Liberal escreveu num livro de visitas do Memorial do Holocausto que:
...tendo visitado Auschwitz duas vezes (...) muito me entristece ver que os judeus, vítimas de níveis inacreditáveis de perseguição durante o Holocausto, já estivessem, poucos anos depois de libertados daqueles campos de morte, a infligir tais atrocidades aos palestinos no novo Estado de Israel e que continuem a fazer o mesmo até hoje, diariamente, na Cisjordânia e em Gaza.
A referência que Ward fez a “os judeus” é qualificada, porque nem todos os judeus apoiam o sionismo, nem a ideia de que Israel tenha algum direito a ocupar “Judéia e Samaria”, muito menos a comandar pogroms como se veem hoje, em ações de limpeza étnica em áreas que o estado israelense controla. A verdade é que cada dia mais e mais judeus norte-americanos manifestam-se contra o que Israel faz na Palestina.
Mas Ward acerta no que diz do comportamento do “estado judeu”. E é possível que a generalização errada, na frase de Ward, seja resultado da propaganda israelense, que nunca se cansa de repetir que Israel representa(ria) todos os judeus do mundo.
Mas nem todos dão sinais de desgostar do fedor que emana do estado de Israel: há os que gostam. O partido Liberal Democrático do deputado Ward chamou-o às falas, pelo crime de ter denunciado que os crimes do mal mais alucinado continua a ser praticados contra os palestinos, por autoproclamados representantes de todos os judeus.
Teria bastado uma advertência discreta, que lembrasse Ward de que, em todos os casos, devem-se evitar generalizações. Mas, usando processo semelhante ao que se vê nos regimes totalitários, o partido Liberal Democrático ordenou que o deputado
...procure a divisão do partido chamada Amigos de Israel, para informar-se sobre o correto linguajar que os deputados devem empregar sempre que falarem sobre o conflito Israel-palestinos.
O deputado obedeceu e distribuiu as exigidas desculpas públicas. Meu nariz fareja aí um horrível fedor de censura.
Mas uma coisa é punir alguém por chamar a atenção para o abjeto comportamento de Israel. Outra, diferente, é insistir no desatino de pretender que o que é insano e abjeto seria justo e bom. Haveria alguém suficientemente cínico, impiedoso, a ponto de impor a outros seres humanos esse tipo de castigo nauseabundo e em seguida elogiar o castigo e todo o fedor, ante as câmeras de televisão de todo mundo? Parece que há. Parece que vive em Washington, onde negar os fedores que emanam de Israel é prática quase unânime. Parece que é presidente dos EUA.
Dia 15/3, antes de partir para visitar Israel, o presidente Obama disse, em entrevista ao Canal 2 da televisão israelense (ver a seguir, em inglês e legendado em ídiche), que admira muito “os valores centrais” de Israel.
Em análise que publicou depois, o jornalista israelense Gideon Levy – que tem nariz honesto e fareja podridões onde as haja – perguntou:
...de que valores Obama falava? De desumanizar os palestinos? Da atitude contra migrantes africanos? Da arrogância? Do racismo? Do nacionalismo? Obama admira isso? Será que jamais, antes, ouviu falar de ônibus segregados (palestinos não entram)? Será que jamais antes ouviu falar de comunidades convivendo no mesmo território, uma com todos os direitos, a outra sem nenhum direito? Terá esquecido... tudo?!
Dizer que admira “os valores centrais” de um dos países mais racistas do mundo, onde há muro e políticas de apartheid, significa, isso sim, trair todos os valores centrais do movimento pelos direitos civis nos EUA – o movimento que tornou possível o milagre-Obama.
O caso é que, chegado a Israel, o presidente Obama disse que o apoio dos EUA àquela Israel que Levy descreve será “eterno”, forever. Deve-se acrescentar que, ao mesmo tempo, o presidente insistiu que os palestinos parem de querer o fim das construções nas colônias em território ocupado e das correspondentes políticas de esgoto podre... ou jamais terão qualquer conversação de “paz” com os israelenses.
No que tenha a ver com Israel, nem o presidente Obama, nem a maior parte dos políticos no Congresso dos EUA são capazes de ver a diferença entre o certo e o errado, entre o justo e o “mal mais alucinado”. Por isso vivem num mundo à parte, estanque, só deles, cujos parâmetros e “valores” são definidos e “ensinados” a eles por um lobby sionista ao qual se deram poderes orwellianos.
Nesse mundo excepcional, abunda o duplipensar. Racismo, apartheid, limpeza étnica e o uso tático de água podre de esgotos e Skunk desaparecem, substituídos por imaginários “valores centrais” que cheiram a rosas.
O presidente, se quiser, que se afogue o quanto queira, privadamente, nos fedores mais nauseabundos, e chame-os de cheiro de rosa o quanto queira. Mas quando tenta vender a nós todos a falcatrua, é a credibilidade de seus discursos que se vai pelo esgoto. Lembremos o que George Orwell ensinou sobre o mau uso do discurso político.
Usada para o mal mais desatinado, a fala política torna possível “defender o indefensável” e “foi construída para fazer mentiras soarem como verdades, para tornar respeitável o assassinato e para dar ao vento aparência de solidez”. A isso está reduzida a fala da maioria dos políticos, no que tenha a ver com Israel/Palestina.
Que isso continuará forever, como quer o presidente Obama, é puro exagero, hipérbole. Considere-se um recente relatório da CIA, que questiona a capacidade do estado sionista para conseguir sobreviver outros vinte anos.
A verdade é que o fedor que emana de Israel indica podridão sociopolítica intestina, tão podre quanto as táticas podres que Israel usa contra moradores não judeus. Mais cedo ou mais tarde, qualquer homem, qualquer mulher que ainda preserve boa consciência humana (e melhor se mantiverem também nariz honesto e em funcionamento) passarão a recusar a ter qualquer associação ou contato com esse estado, na prática, já estado de apartheid.
Lawrence Davidson |
25/3/2013, Lawrence Davidson, To the point analysis
“The Holy Land Gets Skunked”
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
Nota dos tradutores
[1] Orig. “most foul”. A expressão aparece em Hamlet, ato 1, cena 5, quando o espectro do rei assassinado conta a Hamlet sobre o crime de que foi vítima: Murder most foul, as in the best it is, but this most foul, strange and unnatural” [aprox. “Assassinato é sempre [o mal] mais alucinado, mas esse do qual falo é o mais alucinado de todos, estranho, contra a natureza”]. Foul sempre significa “mau”, em algum sentido. O espectro diz a Hamlet que, dentre os assassinatos, sempre o pior dos crimes, assassinar o próprio irmão é o crime pior.
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