Menezes e Volpi (convivência...)

Visitei Volpi agora nos seus 89 anos. É triste, é deplorável, não dá uma palavra. Antigamente ele falava comigo, me visitava, levava-o a pizzarias, muita vez com o Ronaldo Azeredo. Não escuta absolutamente nada, totalmente surdo. E essa surdez não lhe dá nenhuma intranquilidade, porque a escuta é sempre uma maneira de ressonância da palavra e ele nunca deu o menor valor à palavra, nem à que ele escutava, nem à que ele dizia. O Volpi sempre agiu observando, olhando a vida e o mundo e as pessoas. Pessoas, aliás, às quais ele quase nunca deu o menor valor. Sabe... às vezes fico pensando: se a pessoa se desgasta, assim, nas afeições, dividindo-se nas afeições, não pode fazer uma grande Obra. Veja, que é sempre restrito o círculo de amigos dos grandes criadores (p. ex., Beethoven, Augusto de Campos, Volpi : são caras de pouquíssimos amigos, mesmo).

( DITADO EM MICROFITA, EXTRAÍDO DA GAV. FITINHAS)

Nesse pequeno aporte sobre Volpi, esta foto, com minha ilustração poemática, em esboço rudimentar numa cartolina de favor, sobra de calço de mesa, algumas afirmações estão totalmente desligadas da observação mais pesada sobre sua essência de vida. Até um certo ponto do convívio e de sua relação social esporádica, ele era nítido, e decifrado em seus idioletos cotidianos, que eram compostos de sueltos de atitudes desiguais . Por exemplo: sua gargalhada tosca, toscana?, despregada de uma causa objetiva, o prazer de ouvinte de uma só música (a Serenata juvenil de Brahms, que lhe dei de aniversário), a ênfase no Matíssa! [quando periodicamente provocado por mim e pelo Nílton de Castro perguntando-lhe matreiramente se ele achava mesmo Picasso o maior gênio do século, e lá vinha um grito: - nãããooo!, Matissa !; o apego à boneca mal vestida que era o Quico, o Quico!, que ele pegou no colo, criou e quase acalentou (um de seus doze ou treze filhos que lhe traziam para aquele convívio alegre e róseo de teto de igreja barroca, e que ele acabava por adotar. Aninha era seu único filho realmente sanguíneo...) e quando vieram buscar o Quico de volta, comentou comigo: “é, o Quico foi embora.” Só. E deu uma risada mambembe, parecia mais um pigarro. Aceitava que o Quico tivesse vontade própria e autonomia de ir e vir?!...; sua seródia e última viagem para o Rio, a viuvez, a solidão com o carteado de paciência, sua volta para a casa onde morou a maior parte de sua vida, a indignação com a modernidade que impingiram, à sorrelfa, àquela sala surreal, com pianola, tapetes cuzcos autênticos pelas paredes, quadros e esculturas pelos cantos, de primitivos que ainda não eram famosíssimos, gatos e cães em promiscuidade assustada pelo ruflar de pombas, que a Judite caçava escondidinha na escadinha do atelier e nos servia em panelada, bem refogadas e ao vinho Bolla; uma madona sua, hoje milionária no topo de escada de algum “E o vento levou”... E então, no retorno de umas pequenas “férias” na casa de Botafogo do Bruno Giorgi, tudo modificado!: tropeçantes puffs caríssimos, nenhum resquício da bagunça, decoração e luminária parecendo maquetes e instalações de interiores de Bauhaus, imitando álberes e semicálderes, que a dupla, Willis de Castro e Barsotti, artistas significativamente originais, remobiliou e remodelou, afinal deram um tom e toque de modernidade rica, digna, coisas feitas em dois meses, e com a grana que Aninha tirou das latinhas de tinta vazias, onde o Mestre guardava toda sua fortuna... só soube o que era Banco quase velho, quando aprendeu a assinar em papel timbrado, diferente daquela assinatura linda de trás das telas. Ou quando precisou guardar as sobras: antes sua casa era uma colméia, mas aquela do verbete do “Pequeno Dicionário Brasileiro da Lingua Portuguesa” antes de virar Aurelião: “Casa muito cheia do necessário”. Isto era estupendo, muito cheia do necessário! Foi suprimido por infeliz inadvertência ...
P.S. Quando perguntado sobre o medo de morrer, contava o caso do homem de 100 anos, “vizinho, lá do Itanhaem”, sem dilemas nem problemas...
- É, 100 anos!
- Mas Volpi, ele não sofre nada, de nada?
-Aaa, o único sofrimento que tinha era a preocupação pelo filho de 75 anos [ que tinha uma obcecada mania de doença...]
E a gargalhada espoucava pela ingenuidade do pai terrificado por uma doença tão impalpável do filho, óstia!, não sabia que nessa idade ninguém mais fica doente de morte??!!! 

Texto enviado por Florivaldo Menezes, o autor que se aplica no sítio Flomenindex

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