Pelé critica o goleiro Aranha por não haver ignorado as agressões racistas |
Talvez o Romário não estivesse tão certo assim, ao dizer que "o Pelé, calado, é um poeta".
Eu consideraria mais apropriada para o rei do futebol a frase do personagem Cheyenne (Jason Roberds) sobre o Harmonica (Charles Bronson), no clássico Era uma vez no Oeste, de Sergio Leone: "Ele fala quando deveria calar, e cala quando deveria falar".
Pelé deveria calar quando, uma vez na vida, os ridículos tribunais esportivos justificaram a sua existência, ao excluírem de uma competição um time de futebol em razão do racismo explícito de sua torcida. Ao invés de aplaudir a decisão inédita, preferiu admoestar a vítima, o goleiro santista Aranha, por não ter ignorado as ofensas:
"Se eu fosse parar o jogo a cada vez que me chamassem de macaco ou crioulo, todo jogo teria que parar".
Mal não haveria, na verdade, em parar o jogo sempre que torcedores vilipendiassem covarde e repulsivamente um ser humano, dando um péssimo exemplo à sociedade, "criancinhas do Brasil" inclusas. O mais provável é que, depois de um certo tempo, tais turbas desistissem de prejudicar os clubes que alegam amar, causando-lhes prejuízos financeiros, perda de pontos e perda de mando de jogos.
Mas, claro, para tomar uma atitude dessas nos anos 50, 60 ou 70, Pelé precisaria ter a estatura moral de um Muhammad Ali. Nunca teve.
Hoje tudo é mais fácil, pois o racismo passou a ser considerado crime e nem mesmo a justiça esportiva (as minúsculas são intencionais...) pode discrepar das leis maiores do País.
Mas, duvido que Aranha tenha raciocinado tão longe, ao se revoltar com os xingamentos infames. O mais provável é que nem tenha se indagado sobre quais as consequências que lhe adviriam de tal atitude.
Simplesmente, reagiu como um cidadão ultrajado deve reagir, com dignidade e coragem. Aceitar ser chamado de macaco ou crioulo nunca foi solução, trata-se apenas de uma forma de fugir do problema.
FOI MESMO POR CAUSA DA DITADURA QUE
ELE NÃO DISPUTOU O MUNDIAL DE 1974?
Outra ocasião em que Pelé deveria ter optado por permanecer poeticamente calado: quando inventou que não disputara a Copa do Mundo de 1974 por discordar da ditadura militar.
Para quem o conhece bem, a desculpa simplesmente não colou.. Deu para todos percebermos que ele, com a visão majestática que tinha de si mesmo, preferiu não correr o risco de sua última participação em Mundiais da Fifa ser um fracasso; melhor sair por cima, com os louros de 1970.
Sua primeira alegação foi a de que já se despedira oficialmente da Seleção Brasileira, com direito a partida comemorativa e muitas homenagens, de forma que voltar atrás equivaleria a ter enganado o público.
Mesmo com a cabeça quente por causa da derrota na semifinal contra a Holanda (será que, com Pelé presente, o Brasil não teria conseguido construir um placar favorável no 1º tempo, quando a partida foi equilibrada?), os torcedores e cronistas esportivos aceitaram a justificativa.
O caldo, contudo, entornou em 1975: com problemas financeiros, Pelé aceitou uma oferta intere$$ante do New York Cosmos e voltou ao futebol, não dando a mínima para os torcedores que haviam pagado ingresso nas suas partidas de despedida.
Alguns passaram a encará-lo como mercenário. Então, a posteriori, ele saiu pela tangente, dando como motivo secreto de sua decisão a indignação com a ditadura. Eis como ele conta a história atualmente:
"Pediram para eu voltar para seleção, eu não voltei. Eu já tinha me despedido do Santos, mas eu estava bem demais. Mas o [ditador de plantão] Geisel, a filha dele, veio falar comigo, para eu voltar e jogar a Copa de 74. Por um único motivo não aceitei: estava infeliz com a situação da ditadura no país. Estava preocupado com o momento. Em apoio ao país, eu recusei, pois estava muito bem (físico e técnico) e poderia jogar em alto nível".
Mas, por que a ditadura não lhe causara horror no auge do terrorismo de estado (1970) e o incomodava tanto quando as matanças e a tortura brava já tinham diminuído (1974)? Como esta contradição foi percebida por muitos críticos de suas declarações, ele agora tem uma explicação na ponta da língua, só que ela não explica nada:
"A ditadura estava exigindo demais do povo.. Em 1970 era diferente, a seleção era comandada pelo Zagallo, mas o [Carlos Alberto] Parreira e o [Cláudio] Coutinho eram do exército, e a situação era melhor".
Se alguém entendeu, me explique como a situação poderia ser melhor graças à presença de dois capitães do Exército como preparador físico e supervisor, afora o major-brigadeiro que comandou a delegação e o major do Exército que foi seu principal assistente...
GRANDE ESPORTISTA ELE FOI.
GRANDE HOMEM, JAMAIS SERÁ!
O pior eu deixei para o fim. Trata-se da coluna O dia em que Pelé não ajudou presos políticos e se disse contra o comunismo (leia a íntegra aqui ), do competente Ricardo Perrone. Eis o principal:
"...oito presos políticos trancafiados em Santos assinaram um dramático apelo por sua liberdade escrito em 60 linhas. Foi caprichosamente feito para ser entregue a Edson Arantes do Nascimento. O grupo solicitava que o Rei do Futebol usasse seu prestígio para pedir que Médici concedesse a eles indulto presidencial a fim de que não precisassem cumprir o restante da pena. Eles tinham sido condenados em 1969.
Pelé não atendeu ao pedido, e a carta ainda foi parar nas mãos da polícia da ditadura. Está preservada no Arquivo Público do Estado de São Paulo, que guarda os documentos do Dops e do Deops...
O episódio rendeu uma conversa tête-à-tête entre policiais que serviam à ditadura e Pelé... [o qual], ao dissociar sua imagem dos presos, afirmou ser contra o comunismo e alheio à convulsão política vivida pelo país naquela época.
'Esclareceu ainda o esportista que, durante jogos que realizou no México, Colômbia e Bogotá foi assediado por comunistas para assinar manifestos contra o nosso governo, com o que não concordou por ser contrário ao comunismo', diz trecho do informe, datado de 21 de outubro de 1970..."
Da vez em que o Pelé deveria falar, apelando ao ditador Médici pela libertação daqueles oito pobres coitados (sindicalistas de Cubatão que nem de longe poderiam ser considerados perigosos subversivos...), ele calou, vergonhosamente. E a paúra transparece nas respostas dadas aos agentes da repressão, aparentemente ignorando que seu prestígio mundial o colocava a salvo de quaisquer maus tratos, intimidações e retaliações.
Certa vez, indagado sobre a omissão do Pelé em questões ligadas ao racismo, a lenda viva Muhammad Ali deu uma resposta sutil: alguém ser um grande esportista já é mais do que suficiente; se, além disto, trava as lutas do seu povo, é também um grande homem.
Pele foi somente um grande esportista.
Por Celso Lungaretti, no seu blogue.