O ESPECTRO DE UMA NOVA '5ª FEIRA NEGRA' NOS RONDA

Autoridades, políticos, jornalistas, sociólogos chutam em todas as direções, na tentativa de interpretar o novo fenômeno: um despretensioso protesto contra o aumento das tarifas do transporte coletivo em São Paulo inspirou manifestações semelhantes em outras 11 capitais, levou às ruas centenas de milhares de cidadãos e comprovou dramaticamente que o autoritarismo continua bem vivo nos aparatos de segurança pública, 28 anos depois de finda a ditadura militar. 

Desde o Fora Collor!, em 1992, não se via algo assim. E, como a bandeira dos manifestantes não é única –vai desde as maracutaias da Copa até o descaso com a Saúde e a Educação, passando por muitas outras mazelas de nossa democracia imperfeita--, também não vai ser uma única medida que fará cessar os protestos.

 

Eles começaram e não têm data para acabar; se os governantes não fizerem algumas concessões plausíveis (depois da orgia de gastos do Mundial, soam ridículas as dificuldades alegadas para não subsidiarem algumas tarifas...), talvez perdurem até a exaustão e sejam retomados tão logo um novo acontecimento marcante o justificar. Era assim em 1968.

Também naquele tempo os objetivos explícitos eram um tanto frouxos, como a recusa dos tecnicizantes acordos MEC-Usaid –realmente perniciosos, mas cujos efeitos ainda não se faziam sentir. Noves fora, o que irmanava estudantes de todo o País era a rejeição de um espantalho bem conhecido, e não apenas adivinhado: a própria ditadura e sua bestial repressão.

Tudo começou no final de março, quando a PM invadiu um restaurante universitário do Rio de Janeiro em que os estudantes faziam um tímido protesto contra o aumento do preço das refeições. O estúpido assassinato do secundarista Edson Luís de Lima Souto indignou o País, motivando manifestações de protesto em várias cidades. O movimento estudantil, que a ditadura sufocava desde 1964 e cuja primeira tentativa de voltar às rua (as  setembradas  de 1967) havia sido reprimida a ferro e fogo, renascia espetacularmente.

No restante do ano, até a assinatura do Ato Institucional nº 5, houve uma disputa acirrada pelos corações e mentes dos brasileiros: ora a violência policial gerava enorme repulsa e dava ensejo a momentos magníficos como a  passeata dos 100 mil, ora os excessos dos manifestantes (muitas vezes insuflados por provocadores de direita, como tudo leva a crer que esteja se repetindo na atualidade) forneciam munição valiosa para a imprensa desqualificar os protestos.

 PROVOCADORES A POSTOS

Agora, essa  gangorra  voltou com tudo: como a mídia satanizou as três primeiras manifestações do Movimento Passe Livre em São Paulo, a PM  sentiu firmeza  para atuar no centro da cidade com a mesma brutalidade a que submete habitualmente os moradores da periferia.

Já os manifestantes, ressabiados com a repercussão negativa de até então, esforçavam-se para conter a violência, com êxito. Aí, sem quê nem pra quê, uns 20 brutamontes da tropa de choque iniciaram os espancamentos e os disparos de balas de borracha a esmo, abrindo as portas do inferno.

As imagens da  5ª feira negra  inundaram as redes sociais e correram o mundo; de  tão chocantes,  obrigaram a grande imprensa a destacar o  outro lado  que até então vinha escamoteando. O que mais poderia fazer, depois de seus profissionais  também serem rudemente atingidos?

À selvageria fardada, em SP e no RJ, seguiu-se a omissão matreira dos policiais que, como se fossem crianças emburradas, simplesmente deixaram de cumprir sua missão legítima como retaliação aos que criticaram suas ações ilegítimas. 

Além, é claro, do mais do que provável incitamento de saques e depredações por parte de agentes infiltrados, com a também óbvia instrumentalização da ralé urbana que a polícia controla a bel-prazer.

Resta saber se as forças da  ordem –que até agora têm sido mais agentes da  desordem institucionalizada— encontrarão o equilíbrio, nem se omitindo nem barbarizando, ou vão simplesmente partir para a vingança.

O espectro de uma nova  5ª feira negra  nos ronda.

* jornalista, escritor e ex-preso político, é veterano do movimento estudantil de 1968 e da resistência armada à ditadura militar. htpp://naufrago-da-utopia.blogspot.com

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