Lacerda na Era da Insanidade

Lacerda, orador inflamado e frasista, inimigo que era de JK e da transferência, disse a seguinte frase que nesses tempos do destituído Arruda soa ainda mais intrigante: “Naquele isolamento do Cerrado, a vida pública brasileira vai virar um exercício de banditismo”. O livro de Guimarães Padilha tem, entre outros méritos, o de trazer à luz muita coisa inédita: textos, análises contemporâneas e reflexões que rolaram nos bastidores entre os anos de 1940 e 1970.

Fui a Niterói na tarde desta quinta-feira em que o Flamengo venceu no Chile, mas não trouxe a classificação. Fui à Editora Nitpress com o jornalista Guimarães Padilha pegar os primeiros exemplares do livro Lacerda na Era da Insanidade e confirmei o que já comentara a partir de leitura parcial, já que ajudei o velho colega a quem fui apresentado pelo amigo Nilo Dante, este sim, o verdadeiro colaborador na empreitada editorial: trata-se de um livro de referência para a história do Brasil entre a implantação do Estado Novo e o endurecimento do regime militar que editou o AI 5. Nunca havia lido nenhum livro específico sobre Lacerda, embora haja uns 20 títulos nas casas do ramo. Mas cheguei a esta conclusão a partir da riqueza de depoimentos e reproduções desta obra nova que trata de jornalismo e política.

Padilha, em entendimento com Luíz Augusto Erthal, dono da Nitpress, acertou a noite de autógrafos para o dia 14 de junho na sede da ABI. A propósito, o colega Maurício Azêdo acaba de ser re-eleito presidente desta entidade. Azêdo é um dos brilhantes jornalistas que participam do livro com um texto específico no qual destaca: “As ressalvas de caráter político e ideológico não impediram o reconhecimento, até mesmo por parte de seus adversários, de que Carlos Frederico Werneck de Lacerda foi um dos maiores jornalistas que o Brasil conheceu”.

Na orelha do livro, Zuenir Ventura escreveu:

“De todos os jornalistas que passaram pela Tribuna da Imprensa, meu velho companheiro de redação e amigo Guimarães Padilha foi um dos que conviveram com mais tempo com Carlos Lacerda. Desde os passos iniciais da profissão como repórter até o topo da jornada como chefe de redação e diretor responsável, no epicentro da ditadura militar que se lançou contra o jornal, baniu Lacerda da vida política e varreu de cena os melhores valores da democracia brasileira”.

Prossegue Zuenir:

“Ainda beirando o foca, Padilha foi quem Lacerda escolheu para uma cobertura internacional histórica que o levaria à Havana de Fulgencio Batista e à Sierra Maestra de Fidel Castro”.

Além da excelência em si do conteúdo, cerca este livro de Padilha um conjunto de circunstâncias que alimentam o potencial de interesse pela obra, que é mais um conjunto de memórias e reflexões sobre política e jornalismo do que propriamente uma biografia de Lacerda. O fato de o livro sair em 2010 é positivo porque estamos numa democracia e este ano marca meio século da transferência da capital para Brasília e meio século da primeira eleição de um governador pelo voto popular no Rio de Janeiro.

Aliás, sobre Brasília, Lacerda, orador inflamado e frasista, inimigo que era de JK e da transferência, disse a seguinte frase que nesses tempos do destituído Arruda soa ainda mais intrigante: “Naquele isolamento do Cerrado, a vida pública brasileira vai virar um exercício de banditismo”. O livro de Guimarães Padilha tem, entre outros méritos, o de trazer à luz muita coisa inédita: textos, análises contemporâneas e reflexões que rolaram nos bastidores entre os anos de 1940 e 1970.

Lacerda na Era da Insanidade aparece num momento oportuno por causa da sucessão de Lula com o embate entre Dilma Rousseff, José Serra e Marina Silva, num processo eleitoral que tem como pano de fundo as alianças na diversidade política de um país continental e desigual. Assim como Lacerda chamou os inimigos JK e Jango para a Frente Ampla em 1968 - naquela última tentativa de conter o golpismo que endurecia impondo a censura à imprensa que colaborara com o golpe de 1964 -, Lula chamou para a sua base de apoio no Congresso adversários históricos como Sarney e Collor.

Discute-se hoje, num lance meio moralista, essa aliança, como se fosse espúria pela voracidade de velhas raposas do coronelato nordestino, mas no fundo, é possível compreender essas articulações parlamentares como imposição da realidade política e social brasileira. Neste sentido, o livro é um campo aberto para enriquecer a discussão. Ou seja, quem se interessa pelas campanhas eleitorais em curso vai curtir a leitura de livro de Padilha, que chefiou a Tribuna da Imprensa, o jornal fundado por Lacerda em 1949 e “extinto” há um ano e meio.

Outro aspecto que me faz antever uma trajetória alvissareira para o livro é o seu caráter didático. Ele pode ganhar um nicho de interesse nos meios acadêmicos, notadamente entre estudantes de História e Comunicações. Num momento em que o Brasil passa a conviver com o fim da obrigatoriedade do diploma para exercer o jornalismo, vê-se que o Supremo acertou ao proibir a exigência. O livro de Padilha conta com uma plêiade de belos jornalistas sem diploma, mas todos diplomados pelo talento. No livro de 360 páginas, contribuíram com um capítulo cada os seguintes jornalistas em ordem alfabética: Alberto Dines, Ayrton Baffa, Cícero Sandroni, Edilson Ribeiro, Ely Azeredo, Hélio Fernandes (esse com dois textos), Maurício Azêdo, Milton Coelho da Graça, Murilo Melo Filho, Nelson Lemos e Nilo Dante.

A proximidade profissional do autor com o editor e proprietário da Tribuna da Imprensa transforma o livro numa biografia emocionada não apenas de Lacerda, mas um pouco a biografia do próprio Padilha. A exuberância dos nomes que o colega convidou para enriquecer a obra propicia reflexões sobre lutas políticas, gerenciamento e administração da coisa pública.

A intensidade das emoções com que Lacerda agredia seus adversários é bem exposta na obra. Lacerda atacou todas as personalidades poderosas ou que tiveram ambições de alcançar a Presidência da Brasil. Lacerda agrediu ou apunhalou com a sua oratória fantástica nomes como Chateubriand, JK, Jango, Jânio. Por causa da verve da Lacerda e as manchetes de jornal, Getúlio se matou com um tiro no peito. Por causa da retórica de Lacerda, oficiais da Aeronáutica pegaram em armas contra Juscelino. Lacerda no fim se apunhalou pela arma roxa da depressão. Foi vitimado pela perda de esperança no Brasil. Morreu de enfarto em 1977, aos 73 anos. Mais do que crise cardíaca, Lacerda parece ter morrido de desesperança em si próprio. Este enfarto por falta de esperança, ou por tédio, se reveste de tons dramáticos na parte final de sua vida, quando entram em cena os sentimentos de perdão e arrependimento. Lacerda se desculpa, intimamente, por ter atacado de forma tão cruel pessoas e instituições, aproxima-se generosamente de dois inimigos, JK e Jango, suplica perdão na tentativa de se aproximar, sem sucesso, do velho amigo do peito, que era Samuel Wainer, de quem se tornara inimigo figadal por causa da rivalidade de jornais: o dele, e a Última Hora que nascera com apoio de grana do governo de Getúlio. Lacerda deu bandeiras de que estava num doloroso processo de adeus, reconhecendo com resignação a morte iminente do homem enquanto político.

Padilha nos mostra um poema inédito que Lacerda escreveu a bordo de um avião sobre os céus do Irã, versos densos com o perfume do adeus. (Até já, morte preferida, espere por mim que já vou indo, levemente debruçado sobre a tua paisagem, tuas árvores silenciosas, teu céu deslumbrado). E mesmo este adeus já havia sido criticado alguns anos antes pelo amigo com quem Lacerda dividira cela na ditadura depois do AI 5. Hélio Fernandes suplicou que não desistisse. E Hélio comenta que entre os vários Lacerdas de uma personalidade tão dinâmica e contraditória, não tivesse ele morrido em 1977, talvez emergisse um novo líder dois anos depois, quando da aurora da anistia, que propiciou por exemplo a volta de dois inimigos que não aceitaram seu gesto de união na Frente Ampla: Brizola e Arraes.

Nesses tempos digitais, a juventude não sabe nada sobre Lacerda, que em poucos anos fez o seguinte: construiu o Aterro do Flamengo, os túneis Rebouças e Santa Bárbara, Guandu, a maior estação de tratamento de água do Continente, o MIS e ainda uma revolução pedagógica, melhorado as escolas públicas para as crianças no Rio de Janeiro.

Os mais velhos costumam se dividir no Rio entre fãs e inimigos. Mas o livro de Padilha não toma partido, apenas expõe a visão de jornalistas sobre o talento de Lacerda para fazer jornal e política num tempo da Guerra Fria que dividia o mundo entre esferas de influência de Washington e Moscou.

Eu, pessoalmente, no passeio a Niterói, me comprometi a ajudar Padilha nas transas pós-lançamento do livro. O autor se encontra aberto para agendar entrevistas e mesmo pequenas palestras em torno das questões suscitadas pelo livro. Talvez alguns dos colegas que lhe enviaram textos também queiram participar de eventuais encontros para analisar questões do poder do jornalismo e o poder da política. Por isso, franqueio meu email para primeiros contatos: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo..

Alfredo Herkenhoff é jornalista, foi editor da agência UPI no Brasil, redator, secretário e colunista do Jornal do Brasil. Atualmente é produtor cultural e edita o Correio da Lapa.
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