Como companheiro de lutas que fui de Carlos Lamarca na Vanguarda Popular Revolucionária, peço à Folha de S. Paulo que cumpra o dever jornalístico de me dar espaço para expressar o "outro lado" em suas páginas -- e não, apenas, no Folha On-Line, de repercussão enormemente inferior, atingindo parcela ínfima do público que leu as reportagens de ontem e o editorial de hoje.
"O editorial 'O Caso Lamarca' (15/06/2007) já começa errando ao afirmar que, por conta da uma 'decisão' da Comissão de Anistia, a viúva de Lamarca terá direito a pensão equivalente ao soldo de general. Na verdade, a decisão final cabe ao ministro da Justiça, que pode acatar ou não a sugestão da Comissão de Anistia (já houve casos em que não a seguiu).
Pior ainda foi a distinção que a Folha propôs, entre os militantes que foram torturados e/ou assassinados sob a custõdia do Estado e os demais, só reconhecendo aos primeiros o direito à reparação do Estado. De imediato, por não levar em conta que dezenas de militantes foram capturados, levados a centros clandestinos de tortura, supliciados e executados, sem terem sido colocados formalmente sob a custódia do Estado.
E, em termos gerais, tal distinção só caberia se o Brasil não estivesse, no momento dos acontecimentos, submetido à ditadura e ao terrorismo de estado por parte de um bando armado que usurpou o poder em 1964 e violou de todas as formas os direitos constitucionais dos cidadãos brasileiros: prendeu ao arrepio da Justiça, torturou, baniu, assassinou, deu sumiço em restos mortais, fechou o Congresso e assumiu suas funções, cassou mandatos legítimos, extinguiu entidades e partidos, cerceou a produção do conhecimento, censurou, permitiu a atuação impune de grupos paramilitares que atentavam contra pessoas e instituições, etc.
Os cidadãos brasileiros que ousaram confrontar esse regime totalitário, em condições de enorme desigualdade de forças, nada mais fizeram do que exercer o direito de resistência à tirania, que existe e é reconhecido há tanto tempo quanto a própria democracia, já que também remonta à Grécia antiga. Então, não cabe recriminá-los por assaltar bancos, seqüestrar embaixadores e matar agentes de segurança. Também durante a luta contra o nazi-fascismo foram descarrilados trens, explodidos quartéis, assaltados bancos e mortos policiais e traidores, sem que a ninguém ocorra hoje vituperar os mártires e heróis da Resistência.
Também não é verdade que todos os combatentes da resistência brasileira objetivassem a instalação de uma ditadura socialista no Brasil. Essa generalização provém dos saudosistas da ditadura, como Jarbas Passarinho e Carlos Alberto Brilhante Ustra, na vã tentativa de justificarem o injustificável.
Anda certo o Estado ao reconhecer como vítimas todos aqueles que sofreram danos físicos, psicológicos, morais e profissionais em decorrência da quebra da normalidade constitucional em 1964, da qual decorreram todas as atrocidades e horrores dos anos seguintes.
Finalmente, Lamarca, eu e os demais militantes da VPR jamais fizemos opção alguma pelo terrorismo. Não pretendíamos criar o caos e impedir a classe dominante de governar, como os narodniks que caçavam o czar e seus ministros por toda a Rússia, ou, mais recentemente, Bin Laden explodindo torres gêmeas. Nossas ações de propaganda armada visavam engajar a população na luta contra a ditadura. O uso incorreto e malicioso do termo 'terrorista' não passou de um ardil goebbeliano dos serviços de guerra psicológica das Forças Armadas para jogar a população contra os resistentes. Foi propaganda enganosa na época e continua sendo agora, quando é martelado dia e noite pelos porta-vozes da extrema-direita e seus sites obscurantistas."
Celso Lungaretti, 56, jornalista, escritor e ex-preso político anistiado pelo Ministério da Justiça