Publicado originalmente no jornal A Nova Democracia
Na noite do último Natal, no centro do Recife, centenas de pessoas com
andrajos faziam filas quilométricas para receber “cestas básicas”
distribuídas pelos governos federal e estadual, igrejas, centros
comunitários, clubes de mães... A cena repetia, de modo concentrado, o
que acontece diariamente pelas ruas centrais e adjacentes desta cidade
“tomada ao mar”. A secular miséria aumenta ano após ano, decorrente da
mesma prática política que Josué Apolônio de Castro denunciava há mais
de 40 anos.
Foto do livro A Geopolítica da Fome, de Josué de Castro |
Nanismo alimentar. Duas crianças da mesma idade, uma faminta |
Médico, geógrafo, professor catedrático e autor do livro Geografia da fome,
obra traduzida em 25 idiomas, o pernambucano nascido no Recife, Josué
de Castro foi um dos mais importantes brasileiros do século XX, cuja
vida foi dedicada a desvendar e denunciar as condições em que subsistem
milhões de seres humanos, condenados a morrer de fome, vítimas da
exploração de um sistema moribundo e de suas relações sociais.
Utilizando-se de instrumentais teóricos marxistas, a obra de Josué de
Castro se notabilizou pelo estudo e pela denúncia das condições que
produzem o flagelo da fome. Ela analisa o imperialismo e o seu
desenvolvimento nos países semicolonizados ao criticar as classes
dominantes e enfocar o papel da economia e a necessidade de erradicar o
latifúndio e o semifeudalismo, fonte primeira das condições de vida
subumanas encontradas a cada esquina do nosso país e demais nações sob
o jugo colonial.
A sua denúncia do “flagelo fabricado pelos homens contra outros homens”, como diz em Geografia da fome, sintetiza o seu vigoroso trabalho, referência mundial obrigatória quando o tema é fome como consequência da ação política.
Segundo sua filha, Anna Maria de Castro, “a publicação da primeira edição da Geografia da fome,
em 1946, marca o início das denúncias que pretendeu levar , aos
brasileiros e ao mundo, sobre esse grave flagelo”. Anna diz que “a vida
de Josué de Castro foi uma grande lição de engajamento em sua própria
realidade, sua própria cultura. Ele procurou desenvolver uma ciência a
partir de um fenômeno que é a manifestação do baixo padrão de vida em
sua mais dura expressão: a fome, e tentou criar uma teoria explicativa
para a triste realidade da negligência, da pobreza, da miséria,
buscando modificar a história de seu país. É este homem que o Brasil de
hoje precisa deixar de ignorar.”
Hoje, principalmente, quando os governantes do FMI/PT baseiam sua política no assistencialismo das tais comunidade solidária, bolsa-escola, cartão alimentação (cópia do food stamp distribuído pelos ianques na década de 40), bolsa família, fome zero, restaurantes a R$ 1,00,
nada mais estabelecem que um grande engodo eleitoreiro para mantê-los
no poder, sem nenhuma melhora nas condições de vida do povo. Trata-se
de uma política social de amansamento, de domesticação que agride a
dignidade humana, porque é voltada para aprofundar a submissão, a
ignorância e a idiotização. Com essas esmolas as autoridades acreditam
que essa imensa massa humana não cobrará delas nada mais que uma cesta
básica. Situação idêntica inspirou o poeta Zé Dantas e a Luiz Gonzaga,
o rei do baião que cantou em Vozes da seca: “Uma esmola a um homem que é são ou lhe mata de vergonha ou vicia o cidadão.”
O pensamento brasileiro
É a esse processo de dominação que Josué de Castro se opunha ao
afirmar, por exemplo, que “os interesses econômicos das minorias
dominantes trabalham para escamotear o fenômeno da fome do panorama
espiritual moderno. É que ao imperialismo econômico e ao comércio
internacional a serviço do mesmo interessa que a produção, a
distribuição e o consumo dos produtos alimentares continuem a se
processar indefinidamente como fenômenos exclusivamente econômicos —
dirigidos e estimulados dentro de seus interesses econômicos — e não
como fatos intimamente ligados aos interesses da saúde pública. E a
dura verdade é que, as mais das vezes, tais interesses são antagônicos.”
Esse pernambucano de Recife, filho de sertanejo fugido da seca, nasceu
em 1908 e faleceu em Paris, no exílio, em 1973, com apenas 65 anos.
Durante sua vida profissional Josué de Castro foi uma das mais notáveis
personalidades e contribui para erigir o pensamento brasileiro dos dias
atuais. Com 21 anos formou-se em medicina, no Rio de Janeiro, e voltou
ao Recife para exercer a profissão. Josué de Castro graduou-se em 1929,
pela então Faculdade Nacional de Medicina da Universidade do Brasil.
Foi livre-docente de Fisiologia da Faculdade de Medicina do Recife,
1932; Professor Catedrático de Geografia Humana da Faculdade de
Filosofia e Ciências Sociais do Recife, 1933 a 1935; Professor
Catedrático de Antropologia da Universidade do Distrito Federal, 1935 a
1938; Professor Catedrático de Geografia Humana da Faculdade Nacional
de Filosofia da Universidade do Brasil, 1940 a 1964.
Em 1933, Josué de Castro foi chefe da Comissão que realizou o inquérito
sobre as “Condições de Vida das Classes Operárias do Recife” — o
primeiro desta natureza no país. Três anos mais tarde, foi membro da
“Comissão de Inquérito para Estudo da Alimentação do Povo Brasileiro”,
realizado pelo Departamento Nacional de Saúde. A partir de então,
passou a receber convites de governos de vários países para falar sobre
a questão da alimentação e nutrição.
Entre 1939 e 1941, esse grande mestre foi idealizador, organizador e
diretor do Serviço Central de Alimentação, depois transformado no
Serviço de Alimentação da Previdência Social (SAPS), cargo que deixou
para assumir o posto de presidente da Sociedade Brasileira de
Alimentação (1942-1944). Em agosto de 1947, foi nomeado delegado do
Brasil para a Conferência de Alimentação e Agricultura das Nações
Unidas, convocada ela FAO (Organização para Alimentação e Agricultura
das Nações Unidas). No mesmo ano, assumiu o posto de membro do Comitê
Consultivo Permanente de Nutrição da instituição.
O reconhecimento de sua destacada atuação veio em 1952, quando assumiu
a presidência do Conselho da FAO, posto que ocupou por quatro anos.
Castro foi, ainda, presidente da Associação Mundial de Luta contra a
Fome e presidente eleito do Comitê Governamental da Campanha de Luta
Contra a Fome, da ONU, em 1960.
Veio o golpe
Em 1954, Castro
elegeu-se deputado federal por Pernambuco. Ao concluir seu mandato,
quatro anos mais tarde, foi indicado embaixador do Brasil na ONU, em
Genebra. O golpe militar, que alçou ao poder em 1964 a
contra-revolução, mudou totalmente o rumo da sua vida. O Professor
demitiu-se e, em abril do mesmo ano, teve seus direitos políticos
cassados por meio do Ato Institucional nº 1. A partir daí os fascistas
e os oportunistas mantêm no ostracismo, inclusive nas universidades,
suas obras, a pretexto de estarem “superadas”.
As corporações estrangeiras (destacando-se seus laboratórios), a
oligarquia latifundiária e seus representantes nas políticas oficiais
de saúde, desde então se sentem mais felizes. As campanhas de combate
às doenças entre o povo, reduzidas aos mecanismos de publicidade, podem
fazer circular impunemente suas drogas e tagarelice, suas falsas juras
de que combatem todas as moléstias. Mas a fome, a principal delas, é
intocável, tanto quanto o sistema que a produz.
Exilado na França, ainda integrou diversas associações e academias internacionais, até sua morte, em 24 de setembro de 1973.
Ao longo de sua carreira, Josué acumulou uma série de prêmios e
títulos, nacionais e internacionais. Entre eles, destacam-se: Prêmio Pandiá Calógeras, 1937; Prêmio José Veríssimo da Academia Brasileira de Letras,
1946; Professor Honoris-Causa da Universidade de Santo Domingo,
República Dominicana, 1945; da Universidade de San Marcos, Lima, 1950;
da Universidade de Engenharia, Lirna, 1965; Prêmio Roosevelt da Academia de Ciências Políticas dos EUA, 1952; “Grande Medalha da Cidade de Paris”, 1953; Prêmio Internacional da Paz,
1954; “Grande Cruz do Mérito Médico”, Brasil; “Oficial da Legião de
Honra”, França, 1955; e Detentor da “Ordem de Andrés Bello” do Governo
da Venezuela, 1968.
Ciclo do caranguejo
No prefácio de sua obra mais famosa, ele diz:
“A lama dos mangues do Recife é povoada de seres humanos feitos de carne de caranguejo, pensando e sentindo como caranguejos. Seres anfíbios — habitantes da terra e da água —, meio homens e meio bichos, alimentados desde a infância com caldo de caranguejo, este leite de lama. Seres humanos que se faziam assim irmãos de leite dos caranguejos. Que aprendiam a engatinhar e a andar com os caranguejos da lama e que depois de terem bebido na infância este leite de lama, de se terem enlambuzado com o caldo grosso da lama dos mangues, de se terem impregnado do seu cheiro de terra podre e de maresia, nunca mais se podiam libertar desta crosta de lama que os tornava tão parecidos com os caranguejos, seus irmãos, com as suas duras carapaças também enlambuzadas de lama.
Cedo me dei conta deste estranho mimetismo: os homens se assemelhando, em tudo, aos caranguejos, arrastando-se, agachando-se como os caranguejos para poderem sobreviver. Parados como os caranguejos na beira d’água ou caminhando para trás como caminham os caranguejos. É, por isso, que os habitantes dos mangues, depois de terem um dia saltado para dentro da vida, nesta lama pegajosa dos mangues, dificilmente conseguiram sair do ciclo do caranguejo, a não ser saltando para a morte e, assim, se afundando para sempre dentro da lama.”
Outro combate veemente de Josué de Castro se deu contra a proposta do controle de natalidade, dizendo que “os neomalthusianos, ao afirmarem que o mundo vive faminto e está condenado a perecer numa epidemia total de fome porque os homens não controlam de maneira adequada os nascimentos de novos seres humanos, não fazem mais do que atribuir a culpa da fome aos próprios famintos.”
Responsável pela mudança de enfoque em relação à fome no Brasil e no
mundo, ele insistia que “A fome é a expressão biológica de males
sociológicos. Está intimamente ligada com as distorções econômicas.”
Mas não foi apenas no mangue, no litoral pernambucano que o geógrafo
encontrou homens famintos e vítimas do sistema imperialista.
Após analisar as condições de vida dos camponeses, (“a parte que lhe cabe deste latifúndio”
nos versos de João Cabral de Melo Neto), Josué de Castro escreveu que
“Os mangues apenas atraíram os homens famintos do Nordeste: os da zona
da seca e os da zona da cana. Todos atraídos por esta terra de
promissão, vindo se aninhar naquele ninho de lama, construído pelos
dois e onde brota o ciclo do caranguejo.”
Certamente,
se lhe fosse possível analisar as condições vigentes no país sob o
governo neocolonial do FMI/PT, Josué de Castro teria razões ainda
maiores para se indignar. Se soubesse a que ponto chegou hoje a
exploração colonial imposta ao nosso povo, se soubesse o quanto
aumentam agora as vítimas do latifúndio, do número infinitamente maior
de grandes massas de trabalhadores sem um único meio de produção, ou
dos homens tornados servos da engrenagem feudal que se alastra pelo
país, certamente faria valer sua indignação diante da miséria que se
espalha como um praga, para manter oligarquias e as novas classes neste
poder em que eles buscam se eternizar.
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