Getúlio Vargas e Juscelino Kubitschek

Há, no Brasil, grande carência de economistas que tenham pesquisado a fundo as práticas das empresas transnacionais. Não só as restritivas à concorrência, mas também, e principalmente, os mecanismos usados por essas empresas para transferir lucros ao exterior, oficialmente, e sobre tudo disfarçadamente, por meio da fixação dos preços na importação e na exportação (transfer pricing) e fazendo despesas superfaturadas e até por serviços fictícios, em favor de suas matrizes.

Quem se quiser aprofundar nesse assunto, de imensas conseqüências, não terá dificuldade em encontrar ferramentas metodológicas na literatura estrangeira. A omissão - também de ícones da "esquerda", como Celso Furtado - facilita a propagação do mentiroso lugar-comum segundo o qual os investimentos diretos estrangeiros trazem benefícios ao país hospedeiro.

Na veia que se pretende desenvolvimentista e crítica ao liberalismo, o Prof. Luiz Gonzaga Beluzzo escreveu artigo (Valor Econômico, de 03.04.07), acerca de enquete da Folha de São Paulo, sobre a escolha, por ilustres e ilustrados, de Getúlio Vargas, Juscelino Kubitschek e Machado de Assis como os três brasileiros mais importantes de todos os tempos. Beluzzo alude à ação de Vargas para libertar a economia brasileira das estruturas coloniais:

"Deposto em 1945, o ditador Vargas foi reconduzido à Presidência pela vontade popular nas eleições de 1950. Getúlio, depois do hiato liberal de Eurico Gaspar Dutra, retomou o projeto desenvolvimentista. Lançou em 1951 o Plano de Eletrificação, criou o BNDE em 1952, a Petrobrás em 1953. Havia, ademais, a convicção de que avanço da industrialização só poderia ocorrer com a modernização dos setores já existentes e constituição dos departamentos industriais que produzem equipamentos, componentes, insumos 'universais' e bens duráveis. Juscelino ganhou as batalhas que Getúlio concebeu."

Há vários reparos. Primeiro, a presidência de Dutra não foi liberal, a não ser no comércio exterior e por menos de um ano, no qual se dilapidaram as divisas acumuladas pelo "ditador" Vargas (só dão esse epíteto a quem defende a Nação). Tal foi a perda de divisas em 1946/47, que tiveram de ser instituídas licenças de importação e controle de câmbio. Entre outras coisas, Dutra comprou dos britânicos ferrovias de 1850, cuja concessão estava prestes a caducar, tal como, anos mais tarde, Geisel pagou US$ 400 milhões pela Light, privatizada de graça por FHC, depois de a União ter investido muito mais nela.

Na realidade, as políticas de JK levaram à destruição da obra de Vargas. Primeiro, mantendo os regulamentos favorecedores do capital estrangeiro em detrimento das empresas nacionais, instituídos poucos dias após a derrubada de Vargas, em 1954, por meio de uma conspiração conduzida pelos serviços secretos das potências hegemônicas.

Além disso, JK criou mais subsídios e incentivos em favor das transnacionais, que se apropriaram dos mercados nacional e externo, através da produção local. O Brasil foi sendo transformado em plataforma de transferência de recursos naturais e financeiros para o exterior. É isso que está na raiz da realidade atual: a de um país com 30 milhões de desempregados reais e 90% de sua população na pobreza.

Ademais das transferências que hoje superam 50% do PIB, entrou em cena, a partir do fim dos anos 70, a sangria do serviço da dívida. Esta se originou dos desequilíbrios nas transações com o exterior, decorrentes do modelo dependente, pois os investimentos públicos e privados, mesmo os nacionais, vinculavam-se a importações de bens de capital e de suposta tecnologia, sem falar no crescente controle da economia por empresas transnacionais.

Retomando Beluzzo: "O 'desenvolvimentismo', projeto de um capitalismo nacional, cumpriu o seu destino através do Plano de Metas. Muito ao contrário do que pregam os caipiras-cosmopolitas - aquela malta que circula pelo mundo, sem entender nada do que acontece - o projeto juscelinista integrou a economia brasileira ao vigoroso movimento de internacionalização produtiva impulsionado, no pós-guerra, pelo investimento direto da grande empresa capitalista. Por isso, os ultra-nacionalistas achavam que Juscelino perdeu as batalhas que Getúlio teria imaginado ganhar."
Não são ultra-nacionalistas que dizem isso. É qualquer um que estude seriamente a realidade. Se for para colocar rótulos ideológicos, eu diria que há:

1) os abertamente entreguistas, que defendem a alienação do controle nacional sobre áreas estratégicas, como ter tecnologia industrial própria, marcas próprias, etc. e sobretudo a gestão, o controle das atividades produtivas; são os que, contra as provas dos fatos, proclamam ou subentendem que os brasileiros não têm capacidade para se autogerir;

2) os que se poderiam denominar acomodatícios; esses defendem a mesma coisa, revestindo-a de eufemismos, como o acima grifado ("integração da economia brasileira ao movimento de internacionalização produtiva").

Outra expressão associada pelo Prof. Beluzzo à política de JK é "desenvolvimentismo, projeto de capitalismo nacional". Ora, o que há de nacional na discriminação prejudicial às empresas nacionais? Como descrevo no livro "Globalização versus Desenvolvimento", os países que se desenvolveram, o fizeram usando todos os meios para fortalecer as empresas nacionais, e não, as de capital estrangeiro.

De novo, Beluzzo: "O Plano de Metas concebeu um bloco integrado de investimentos na infra-estrutura, no setor de bens de capital e de bens de consumo duráveis. As inovações institucionais consubstanciadas nos Grupos Executivos conferiram plasticidade ao aparelho econômico do Estado. Juscelino tomou posse em 1956 e atravessou o mandato sob as ameaças do golpismo antinacional. Frustrado pelo suicídio de Getúlio em 1954, o movimento oligárquico-americano conseguiu submeter o país na quartelada de 1964."

Os Grupos Executivos foram o instrumento criado por JK para coordenar a concessão dos subsídios às indústrias estrangeiras, com destaque para a automotora e a naval. Isso inviabilizou no nascedouro as montadoras locais que já produziam automóveis e caminhões, apoiadas em autopeças produzidas por empresas de capital nacional, capazes de fornecer já então cerca de 70% dos componentes dos veículos.

Para concluir o serviço de eliminar o empresariado nacional de peso, Castello Branco, em 1964, chamou, para czar da economia, Roberto Campos, indicado por seus mentores norte-americanos. A política econômica de Campos era talhada para destruir empresas nacionais:

1) políticas fiscal e monetária restritivas, acarretando a retração do consumo: as nacionais são menos capitalizadas e sem a base mundial de recursos, para suportar longos períodos recessivos;
2) crédito proibitivo, com altas taxas de juros reais e a instituição da correção monetária: as transnacionais têm acesso a crédito externo barato, além de se capitalizarem no próprio mercado brasileiro, tais as vantagens com que contam, como usar aqui capital e tecnologia já amortizados em numerosos mercados no exterior de grande porte.

Essa mesma política é repetida a cada vez que o modelo dependente causa uma nova crise. É a fórmula para o genocídio das empresas de capital nacional, repetida por Simonsen e Delfim, sob governos militares, e por n outros indivíduos na Nova República, nascida sob a égide da mentira e do serviço da dívida, decorrente do modelo econômico que também se pode definir com a frase de Beluzzo: "integração no movimento mundial de internacionalização produtiva".

Não é de esquecer que Castello Branco obteve sua eleição indireta à Presidência, em parte graças aos votos comandados por JK no Senado. Mais Beluzzo: "Os resultados do período desenvolvimentista, ainda que desiguais, não foram ruins. Comparada a qualquer outro período do capitalismo, anterior ou posterior a era desenvolvimentista e keynesiana, apresentou desempenho muito superior em termos de taxas de crescimento do PIB, de criação de empregos, de aumentos dos salários reais e de ampliação dos direitos sociais e econômicos."

Muita gente incensa o "progressista" Keynes, serviçal do que há de mais oligárquico no Mundo. Parecem ignorar que a intervenção estatal não existe só em favor do Bem Comum, com melhora da prosperidade para todas as classes. A intervenção está cada vez mais presente, mas só para favorecer os concentradores. Os liberais e monetaristas choram de barriga cheia, e ainda mais cheia, porque as políticas em voga conseguem ser ainda piores que as deles.

Quanto às taxas elevadas de crescimento durante alguns anos, elas nada implicam em termos de desenvolvimento verdadeiro. Houve taxas altas sob JK, e de Costa e Silva a Geisel. Nesses períodos, erroneamente descritos como de milagres econômicos, houve significativos investimentos públicos (ainda não se havia concluído a falência do País), mas agravaram-se sérios problemas estruturais associados à dependência tecnológica, financeira e até cultural.

Isso desembocou, a partir de 1979, na interminável crise do modelo, que não só persiste, mas se agrava sem cessar. De resto, promete mais, pois, além de tudo, o modelo se radicaliza desde os anos 90, marcados pelas privatizações e demais esbórnias antinacionais.

* - Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.. Doutor em Economia. Autor de "Globalização versus Desenvolvimento". Editora Escrituras: www.escrituras.com.br

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