O petróleo é de quem?

O petróleo enriquece dezenas de cidades brasileiras, mas o dinheiro não vira qualidade de vida, como em Presidente Kennedy (foto). Por Roberto Rockmann

Novas jazidas de gás e petróleo trazem riqueza e esperança para dezenas de municípios, mas o dinheiro nem sempre será investido em qualidade de vida e redução da desigualdade social.

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Deles não é - Favela em São Francisco do Conde (BA), cidade que recebe royalties graças à Refinaria Landulpho Alves, ao fundo

Nunca se produziu tanto gás e petróleo no país. Os recordes não vão parar por aí. Nos próximos cinco anos, a Petrobras e empresas privadas devem investir mais de US$ 110 bilhões em poços terrestres e marítimos localizados ao longo da costa brasileira, criando mais de 1 milhão de empregos na área e respondendo por mais de 10% do PIB nacional. A maior parte desses investimentos – cerca de US$ 100 bilhões – será desembolsada pela estatal brasileira, cuja missão é assegurar a auto-suficiência da produção até 2015. Os recordes vão persistir: a descoberta do megacampo de Tupi, no litoral de São Paulo e Rio de Janeiro, deverá posicionar o Brasil entre os dez maiores países exportadores do produto (hoje está entre os 30).

No entanto, os pesados investimentos em exploração e produção trazem dilemas ambientais e sociais para dezenas de municípios. Não se sabe se vão se traduzir em maior distribuição de renda. Já se discute, por exemplo, como será feita a partilha dos recursos concedidos pelas produtoras de petróleo quando o megacampo de Tupi começar a jorrar óleo (o que pode levar dez anos) – se os recursos distribuídos em royalties chegam hoje a cerca de R$ 15 bilhões, com as novas descobertas poderão mais que dobrar.

“Em muitos casos, os municípios têm dificuldade de usar esses recursos para reverter em benefícios para a população”, afirma o professor da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) Roberto Simões. “As políticas públicas de redução de desigualdades têm velocidade inferior à dinâmica das empresas.” Os recursos dos royalties são finitos, uma vez que a produção de petróleo e gás não é eterna. O problema é que a maioria dos municípios não busca criar políticas para sustentar a renda de seus habitantes quando a torneira secar.

No coração da selva amazônica, Coari foi por longos anos negligenciada por pessoas de outras cidades e por políticos. Tem 100 mil habitantes – três vezes mais que dez anos atrás – e o segundo maior orçamento do Amazonas. As receitas de royalties superam R$ 40 milhões anuais e devem crescer quando o gasoduto Coari–Manaus estiver pronto, em 2008. Esses números criaram uma disputa política quase um ano antes da eleição municipal: os dez vereadores da cidade estão divididos entre a situação e a oposição à atual administração e as decisões, paralisadas. Cinco empresas que planejam investimentos na região esperam a paralisia terminar e a Câmara Municipal votar um pacote de incentivos para o setor produtivo.

Dinheiro fácil

“Estão todos de olho no orçamento. Os royalties tornaram o município um dos mais ricos”, afirma o cientista político Daniel Maciel, que tem um blog sobre a cidade. Padres e professores universitários também relatam experiências e denunciam problemas do município. Todos reforçam a importância de os recursos serem bem empregados.

O inchaço urbano de Coari trouxe problemas. Há disputas por terrenos, invasão de casas e congestionamento. Acidentes de trânsito deixaram de ser raros. “O dinheiro dos royalties é um dinheiro fácil, chega direto às contas das prefeituras e estados; o difícil é ele ser sinônimo de desenvolvimento para todos”, afirma o sócio do Centro Brasileiro de Infra-Estrutura (CBIE) Rafael Schechtman. “Reduzimos a pobreza, mas não conseguimos melhorar muito”, admite o secretário de Indústria de Coari, Afonso Ferreira Vieira. “Sem os recursos dos royalties a prefeitura pára”, analisa.

Um estudo feito pela advogada Rejane da Silva Viana, da Universidade do Estado do Amazonas (UEA), revela que o volume de recursos que recebe de royalties daria a Coari condição de se destacar dos demais municípios do estado, mas isso não ocorre. “O dinheiro não é bem investido em políticas públicas”, afirma. E o problema não está apenas nas prefeituras. Rejane concluiu que a questão está na legislação brasileira, que não “amarra” as finalidades dos recursos dos royalties.

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“Como a Lei do Petróleo, de agosto de 1997, não determina como investir os recursos, o poder público fica à vontade. Misturado aos recursos do orçamento municipal, o dinheiro é diluído sem que seja identificado seu destino”, explica a advogada. “Na maioria das vezes as prefeituras investem em obras que aparecem, mas será que essas prioridades definidas pelos governantes são as que a sociedade necessita?”, questiona.

Com a abertura do mercado de petróleo para empresas privadas em 1997, a legislação sobre os royalties foi alterada. A lei criada junto com a Petrobras, em 1953, estipulava que teriam de ser prioritariamente utilizados para as áreas de energia, pavimentação de rodovias, abastecimento de água, irrigação, proteção do meio ambiente e saneamento básico. Com a quebra do monopólio da estatal, em agosto de 1997, o panorama mudou.

A descoberta do megacampo de Tupi, que pode acrescentar 8 bilhões de barris às reservas brasileiras – aumento de 60% –, já enseja a revisão dos critérios de partilha dos royalties do petróleo. Hoje o setor paga cerca de R$ 15 bilhões anuais ao Tesouro Nacional, que redistribui 60% para estados e municípios. Segundo estimativas do governo, as novas reservas poderiam render um adicional de R$ 8 bilhões anuais aos cofres públicos quando o petróleo de Tupi começar a ser extraído, em seis ou sete anos.

Mantidas as atuais regras, o governo e as prefeituras do Rio de Janeiro poderão ficar com mais da metade desse dinheiro, fatia superior à da própria União. O Campo de Tupi fica na Bacia de Santos (SP), mas, pelos critérios da Agência Nacional de Petróleo (ANP), está mais concentrado no lado norte da linha imaginária que o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) construiu para separar o mar fluminense do paulista. É justamente a proximidade geográfica que serve de referência para definir o estado e município que vão receber os royalties. Essa regra foi aprovada no Congresso e regulamentada no governo José Sarney, quando o valor dos royalties não despertava cobiça. O cenário agora é outro. Estados, municípios e governo federal disputarão com vigor esses recursos.

Mais concentração

Localizada na Grande Rio, São Gonçalo, chamada em tempos áureos de Manchester fluminense em referência ao pólo industrial da Inglaterra, hoje é cidade-dormitório. Boa parte de seu 1 milhão de habitantes enfrenta mais de duas horas de transporte público e 30 quilômetros para trabalhar na capital, enquanto outra parcela menor vive do comércio, de pequenas indústrias e da pesca. Nos últimos meses, a calmaria que paira sobre a segunda cidade fluminense mais populosa vem sendo desfeita.

Em Guaxindiba, um dos bairros mais pobres do município, a Petrobras prevê instalar uma base de apoio ao Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro (Comperj), que deverá ser construído, em parceria com empresas privadas que atuam no setor, em Itaboraí. Bases de apoio e indústrias de transformação de plásticos devem ser instaladas em outras comunidades vizinhas. O empreendimento total deve receber mais de US$ 8 bilhões em investimentos e criar mais de 100 mil empregos.

Alguns bairros de Guaxindiba já dão sinais de especulação imobiliária. Terrenos antes vendidos a R$ 4 mil hoje custam R$ 20 mil. Moradores de outros estados começam a migrar para a região de olho nos futuros empregos. E surgem novas preocupações ambientais e com o destino dos royalties.

"Mananciais próximos podem ser afetados. Ao mesmo tempo, temos receio de que esses recursos aumentem ainda mais a pobreza e enriqueçam alguns poucos”, afirma Valdo Barros, da Associação Moradores e Amigos de São Gonçalo. “Os prefeitos acreditam que as empresas são responsáveis pelas melhorias, mas quem faz as melhorias são os administradores."

A preocupação de Barros encontra exemplos. Na divisa com o Rio de Janeiro, na Bacia de Campos, a cidade de Presidente Kennedy tem a quinta receita per capita do Espírito Santo, mas seu desempenho no Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) está no 74º lugar no estado, que tem 78 municípios. Entre 1991 e 2000 a concentração de renda aumentou 40%. Os mais ricos detêm o equivalente a 69% da renda total do município; os mais pobres, 2%.

O orçamento da prefeitura vem sendo reforçado por cerca de R$ 1 milhão mensais de royalties. Mesmo assim, enchentes e ruas sem alfalto nos bairros mais afastados do centro ainda são freqüentes. “A situação deveria estar melhor, poderiam ter sido feitos mais investimentos principalmente nos bairros mais distantes do centro”, afirma Creusa Leal, moradora da cidade. Em administrações passadas, recursos dos royalties foram empregados na contratação de trios elétricos. O caso não é isolado. Em outros municípios capixabas também há queixas de má distribuição dos recursos.

A situação despertou a atenção do Ministério Público Estadual, que criou em 2005 uma iniciativa para induzir as cidades a uma prestação de contas. Em visitas feitas pelo órgão aos municípios, são convidados representantes da prefeitura e da população para discutir a destinação das verbas. “Buscamos criar condições para que a população local tenha mais conhecimentos sobre o que são os royalties, podendo assim fiscalizar como são empregados”, afirma a procuradora-geral de Justiça do Estado, Catarina Cecin Gazele.

Democratizar o orçamento

Com maiores investimentos das empresas que operam no segmento, novas descobertas deverão ser feitas. Conseqüentemente, mais royalties serão distribuídos. “A população começa a ter mais atenção a esses recursos, mas será preciso tempo para que a fiscalização da sociedade seja maior”, afirma a procuradora. Nos encontros feitos nas cidades capixabas, o envolvimento da população tem crescido. “A questão envolve a percepção dos brasileiros em relação à democracia, e esse é um conceito ainda recente para a população”, afirma Amyra El Khalili, professora de Economia Socioambiental na Faculdade de Direito de Campos e fundadora do projeto Bolsa Brasileira de Commodities Ambientais (Bece, na sigla em inglês).

Na Bacia do Recôncavo, próxima à Região Metropolitana de Salvador, a exploração do petróleo não têm sido sinônimo de melhora das condições sociais dos municípios. Estudo de Andréa Reis, da Universidade de Salvador, analisou municípios baianos que receberam royalties e os que não receberam. O crescimento do orçamento das cidades não fez com que tivessem forte expansão no IDH. A maioria se manteve com um índice de 0,6 – considerado de desenvolvimento médio, indicador semelhante ao dos municípios que não receberam recursos.

A Universidade Cândido Mendes, de Campos (RJ), publica boletins gratuitos de acompanhamento dos recursos e de como eles são empregados, no site www.royaltiesdopetroleo.ucam-campos.br.

Um dos exemplos bem-sucedidos de uso dos royalties pode ser visto no pequeno município de Icapuí (CE). No final da década de 1980, moradores começaram a articular um movimento social para que a população tivesse voz e poder de decisão na prefeitura. Era o início de uma revolução que seria reconhecida internacionalmente, o orçamento participativo. Nas paredes da cidade, em vez de pichações, eram pintadas as prestações de contas do município.

Os royalties do petróleo, que na época chegavam a cerca de R$ 10 mil mensais, tinham como prioridade investimentos em saneamento básico e eletrificação rural – como previa a lei anterior à abertura do mercado de petróleo. A partir da aplicação desses recursos a cidade começou a mudar: se anteriormente havia apenas alguns poços de água e o sistema de abastecimento hídrico era precário, o abastecimento de água passou a abranger todo o município. Um sistema de coleta de lixo foi implementado. “Isso contribuiu muito para que Icapuí se tornasse referência de avanço social. A legislação anterior a 1997 facilitava ao gestor público decidir como usar o dinheiro”, afirma o hoje deputado federal José Airton, ex-prefeito de Icapuí (1986-1988 e 1993-1996).

O que é royaltie

Royalties são uma compensação financeira que empresas exploradoras e produtoras de bens não-renováveis, como petróleo e gás, pagam mensalmente ao Estado. O controle e a distribuição desses recursos estão sob responsabilidade da Agência Nacional do Petróleo (ANP), criada a partir da Lei n° 9.478, de 1997. Os royalties são calculados, normalmente, com dois meses de defasagem e distribuídos para os municípios localizados na bacia em que se exploram petróleo e gás. O valor desses recursos, fixados sob alíquota de 10% da produção, está sujeito a oscilações de acordo com o preço internacional do petróleo e a taxa do câmbio.


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Reflexão em: http://www.reforme.com.br/kitnet

Fonte: BECE-REBIA.

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