Coube a Dilma Rousseff a oração fúnebre da Nova República. Com seu “Só temo a morte da democracia”, termina mais de 30 anos de uma redemocratização falha e bloqueada. Ela terminou em meio a um processo farsesco, que seguiu todos os ritos jurídicos apenas para tentar esconder que não tinha sustância alguma.
Ao final, Dilma foi afastada por um crime que nunca fora visto como crime, mas como uma prática normal utilizada por todos os presidentes da república e por 17 governadores em exercício sem maiores consequências.
Mesmo o Ministério Público acabou por reconhecer não haver crime de responsabilidade, mas isto já não fazia a menor diferença.
Veio então a tese do julgamento pelo “conjunto da obra”. Bem, em um país onde Alckmin, Pezão, Beto Richa, Marconi Perillo e José Sartori governam sem serem incomodados, afastar alguém pelo “conjunto da obra” só pode ser piada.
Não é por acaso que um processo como esse só poderia ser levado a cabo por uma advogada afeita a discursos evangélico-fascistas e um advogado filho de um integralista.
Na verdade, Dilma caiu porque a Nova República já não existia de fato. Dilma e seu partido nunca entenderam que o sistema de conciliações e de “governabilidade” paralisante da Nova República ruíra desde 2013.
Eles nunca entenderam que o país precisava livrar-se de uma era histórica baseada na inércia resultante da obrigação de sempre compor com o atraso, sempre respeitar os interesses das oligarquias, até o ponto em que todos os que ocupassem o poder se desfigurassem, tornando-se irreconhecíveis.
Até o último momento, foi questão de negociar o que não se negocia com quem vê a política só como um negócio. Por isso, aqueles que falavam das conquistas democráticas da “estabilidade política” nacional que acordem para a realidade. Vocês foram enganados.
Não poderia haver estabilidade real sustentada por políticos saídos da ditadura militar e por um partido, como o PMDB, que era, afinal, uma oposição criada pela própria ditadura para acomodar oligarquias descontentes e políticos tradicionais confiáveis.
O Brasil achou que poderia virar uma democracia sem se confrontar com seu passado autoritário recente, sem expurgar seus representantes e seus filhos.
Ele acorda agora com um “governo” que é apenas uma associação de corruptos contumazes tentando desesperadamente se salvar, liderados por um “presidente” citado três vezes na Operação Lava Jato como beneficiário direto de corrupção e condenado pelo TRE-SP por doações ilegais.
Uma figura especializada em conspirações, acostumada aos bastidores escuros do poder, liderando uma casta política disposta a usar de toda violência estatal necessária para compensar sua falta absoluta de legitimidade e seu medo atávico de eleições.
Não por acaso, no dia do golpe (mais um 31, agora 31 de agosto) não vimos massas nas ruas a comemorar a queda do governo, mas o prenúncio de um Estado policial: manifestantes sendo presos e espancados por uma PM cujo comportamento é digno de uma manada de porcos.
Por isso, não se enganem mais uma vez. Este é apenas o primeiro golpe. Quem fez o que fez não está contando voltar para casa depois de dois anos.
O verdadeiro projeto é acabar com as eleições presidenciais. Isso será feito tirando de cena candidatos indesejáveis ou empurrando pela goela do país um regime parlamentarista que seria a coroação final de um Congresso de oligarcas e corruptos que conseguem sobreviver utilizando-se dos mais impressionantes casuísmos e dos meandros da partidocracia.
Um Congresso incapaz de afastar indivíduos como Eduardo Cunha quer agora governar o país de forma imperial. Mas enquanto Michel mudava de casa, as ruas do Brasil foram ocupadas por aqueles que podem enfim lutar a verdadeira luta e abandonar as ilusões que nos venderam.
Os escombros da primeira experiência de longa duração da esquerda brasileira mostrará como os últimos 13 anos foram apenas um ensaio geral. No entanto, será necessário que a esquerda faça aquilo que ela teima ridiculamente em não fazer, a saber, uma profunda e dura autocrítica. Uma autocrítica em relação à vergonhosa marcha de corrupção que afogou seus governos.
Autocrítica em relação à crença nessa política que teme em implementar processos de democracia direta e transferência de poder, preferindo se chafurdar nas negociações com coalizações à venda.
Por fim, autocrítica em relação a si mesma, a suas estruturas organizacionais arcaicas dignas dos anos 1950.
Nunca na história brasileira foi tão importante o exercício da imaginação, da autoanálise, da insubmissão e do destemor. Que estejamos então à altura do momento e mostremos que o Brasil é maior do que Temer e seus comparsas.
VLADIMIR SAFATLE é filósofo e professor da USP, colunista do jornalFolha de S. Paulo. Texto publicado originalmente na Folha de S. Paulo, 02 de setembro de 2016.