O tesouro cultural que Magé desconhece

No meio do caminho entre a Baixada Fluminense e a Região Serrana, tendo como pano de fundo a Baía de Guanabara, o município de Magé, hoje praticamente uma cidade-dormitório, abriga um tesouro cultural, desconhecido, inclusive, por boa parte de seus 250 mil habitantes. Bem próximo ao Centro, lá está encravado o Morro da Maria Conga. E quem foi Maria Conga? Boicotada e esquecida pela nossa história oficial, foi uma negra guerreira e carismática, líder dos Quilombos de Magé.

 

Resgatar a saga da comunidade negra na região, porém, não é tarefa das mais fáceis. Pelo contrário. Uma sucessão de administrações absolutamente desinteressadas em preservar este belo capítulo da história do povo brasileiro , impediu que a população local travasse contato com suas raízes. Felizmente, há exceções. Fala exaltada e veemente, Marcílio da Costa Faria, 68 anos, veterano militante da causa negra no Brasil, é uma delas. É assim como se fosse um patrimônio cultural ambulante de Magé.
"É bom deixar claro que o negro no Brasil sofre discriminação racial e não social. Ou melhor, a questão se tornou social por ter origens raciais, porque quando a mão-de-obra no Brasil teve que ser paga o negro foi alijado do mercado de trabalho, da lavoura, do artesanato. Quer dizer, os negros que, com sua mão-de-obra foram o sustentáculo da Coroa portuguesa, foram descartados quando seu trabalho teve que ser remunerado" , historia Marcílio para quem o clã dos Cozzolino, oligarquia no poder há doze anos no município, procurou destruir todas as referências da cultura negra na região.
Praça do Leilão - Em passeio com Marcílio pela cidade é possível conhecer preciosidades históricas como o Morro do Bonfim, rota de fuga dos negros em direção ao Quilombo de Maria Conga - que se transformava num campo de batalha quando os senhores dos escravos mandavam seus jagunços virem resgatá-los - e Piedade, tradicional bairro negro de Magé, onde os escravos montavam toda a sua estratégia de resistência. Neste bairro encontra-se a Praça do Leilão, antigo porto de desembarque escravo, onde ao chegar da África, os negros eram acorrentados no paredão.
Ainda na Piedade há uma capela inteiramente construída por negros, além de um túnel, escavado por eles, que dá acesso ao Quilombo de Maria Conga, que morreu aos 95 anos de idade. Em 5 de outubro deste ano, sua morte completou cem anos. "Morte não, imortalidade", rebate Marcílio, lembrando uma célebre frase de Maria Conga, ao cair nas mãos de um senhor de escravo: "O senhor prendeu meu corpo, destruiu meus sonhos, mas não conseguiu alienar minha consciência de mulher negra".
Segundo Marcílio, poeta, teatrólogo, fundador da Associação Cultural Negra de Nova Iguaçu e membro do Conselho das Entidades Negras do Interior, qualquer prefeito com o mínimo de visão cultural instalaria o Centro Administrativo de Magé em Piedade, verdadeiro berço do município. "Para se ter uma ideia da perversidade dos donos de escravos, antes de serem distribuídos pelas fazendas da região eles eram separados pelo critério da procedência religiosa e étnica. Para evitar articulações de resistência, separavam os Iorubás, os Gegi, os de Angola, ou seja, dois escravos de uma mesma nação não dividiam a mesma fazenda" , recorda.
Quando o assunto é o atual estágio da luta das comunidades negras do Brasil para enfrentar a discriminação racial, Marcílio não esconde seu pessimismo. "O problema é que destruíram nossa cultura, nossa religião. Hoje se você chama dois negros para integrar qualquer coletivo negro, eles já querem logo ter papel de destaque. Têm necessidade de mostrar para o branco que são bonzinhos, que são os mais inteligentes, os melhores. Então, são logo cooptados pelo branco. Também os negros que possuem projeção social e política pouco têm feito para organizar pra valer a nossa raça" .
Marrom-bombom - Traçando um paralelo entre as formas de racismo da África do Sul e do Brasil, Marcílio põe o dedo na ferida, denunciando que a diferença fundamental é que no país de Nelson Mandela os negros sabem quem são seus inimigos, que atuam à luz do dia, enquanto aqui muitas vezes tudo é feito de forma velada. "No Brasil eles atiram pelas costas e para agravar o quadro os negros brasileiros que poderiam estar na linha de frente da organização da raça, preferem ser bem recebidos e assimilados pela elite branca. São os marrom-bombons".
Mas, como resistir é preciso, mesmo enfrentando a avalanche da especulação imobiliária, os remanescentes do Quilombo de Maria Conga, descendentes de escravos guerreiros e libertários, estão presentes na paisagem do morro, peitando a Altair Imobiliária e construindo suas casas de alvenaria. Aliás, soa no mínimo esquisito o fato de uma empresa pública como a Telerj manter uma repetidora no alto de Maria Conga, quando a atual Constituição garante a titulação das terras dos remanescentes dos Quilombos de todo o Brasil.

 

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