Por sexo e poder, segundo a pesquisa “Meninos do Rio: jovens, violência armada e polícia nas favelas cariocas”, promovida pelo Unicef e coordenada pela cientista social Silvia Ramos, do Centro de Estudos de Criminalidade e Cidadania (Cesec), da Universidade Candido Mendes. O estudo visa a atualizar e a aprofundar o conhecimento sobre as dinâmicas de atração, manutenção e saída de jovens da violência armada e fazer recomendações ao escritório do Unicef no Rio de Janeiro para subsidiar ações contra a violência.
Lançada na segunda-feira (21), a pesquisa encontra nas chamadas "marias fuzil" uma forte explicação para o fascínio que os grupos ilegais e as armas exercem sobre crianças, adolescentes e jovens. Questionados por que entram para o tráfico, os jovens alegaram "sensação de poder e mulher".
“Um rapaz disse que a arma chama atenção e que a mulherada gosta. Outro explicou que a questão é o poder que ela representa”, afirma Silvia no relatório. As meninas, por sua vez, também disseram que se relacionar com traficantes dá "sensação de poder".
A pesquisa foi realizada entre maio e novembro de 2008 com jovens moradores e moradoras de favelas da cidade do Rio de Janeiro – estudantes universitários, ex-traficantes, traficantes, milicianos –, mães de jovens envolvidos com a criminalidade, lideranças comunitárias e culturais e técnicos de organizações da sociedade civil.
Ao todo, 104 pessoas participaram formalmente da pesquisa qualitativa, o que resultou em aproximadamente 400 páginas de transcrições e diários de campo. Sete grupos focais reuniram 87 jovens, técnicos e mães. Dezesseis lideranças e personagens foram entrevistadas e consultadas. Adicionalmente, uma pesquisa quantitativa foi realizada com a participação de 14 jovens que entrevistaram 241 rapazes e moças de 14 a 29 anos na Zona Oeste da cidade.
Crise no varejo
O estudo identificou que, entre as principais mudanças ocorridas na dinâmica do tráfico de drogas nos últimos anos, está a redução dos rendimentos obtidos pela venda das drogas. Um ex-traficante, atualmente em uma cadeira de rodas, resumiu a situação econômica do tráfico: “Com certeza, eu trabalhando no sinal, ganho mais dinheiro do que vagabundo que trabalha no morro. Não só os novinhos não, tô falando de gerente.”
A crise do mercado de varejo deve-se, em parte, ao fato de que compradores de classe média deixaram de ir às favelas por causa da violência dos próprios traficantes e da polícia. Outra razão seria o ingresso no mercado de drogas sintéticas, especialmente o ecstasy, que seriam importadas e chegariam aos consumidores sem passar pelas favelas.
Já a cocaína, segundo a pesquisa, droga altamente rentável para o mercado ilegal e consumida pela classe média, teria encerrado seu império, prejudicada pela intervenção da polícia, seja em operações de confronto, seja em extorsões. Mais um aspecto é a chegada às favelas cariocas do crack, que seria mais compatível com o pequeno poder aquisitivo dos consumidores da própria localidade, porém menos rentável para quem vende.
Com a crise, afirma o estudo, as bocas de fumo passaram a ser pontos de referência não só para a venda de drogas, mas também para outras atividades criminosas que dependem das armas, como roubos no asfalto. "Quando o tráfico já não dá mais dinheiro, ou dá muito pouco, é difícil aceitar que a perspectiva financeira seja a mais forte para explicar sua – ainda – enorme capacidade de atração sobre alguns", afirma Silvia Ramos.
Marias fuzil
E onde entra o sexo na história? Segundo a pesquisadora, o tema da sexualidade se impôs à pesquisa, mesmo não estando no roteiro prévio. "A informação mais repetida, confirmada, explicada e reassegurada – e ainda assim surpreendente e obscura – é a supremacia das armas para atrair mulheres, meninas bonitas, da favela, de fora e até de outra classe social. As chamadas 'marias fuzil' estariam sempre presentes na vida da boca de fumo, especialmente durantes os bailes funk, e muitas vezes foram definidas como a maior razão para explicar o fascínio que os grupos ilegais e as armas exercem sobre crianças, adolescentes e jovens", explica.
O relatório explica que o baile funk é um momento em que jovens que moram na favela e não têm envolvimento com os grupos do tráfico podem conviver com aqueles que estão no tráfico, compartilhando um pouco da cultura do tráfico, cantando as mesmas músicas – os "proibidões" do funk - e assistindo ao desfile das armas.
O depoimento da mãe de um adolescente cumprindo medida complementa: “O menino não tem nada, onde cair morto, mas sabe quantas mulheres ele tem? Quantas ele quiser. Dependendo da arma, mais mulher tem.”
O fenômeno é confirmado por um técnico de projeto em favela: "não tem mais essa remuneração, eles conseguem assim comprar um tênis, mas não arrumam mais do que isso. O que eles conseguem hoje é a atenção dessas meninas. Elas ficam loucas com arma e cordão de ouro."
Disputas interpessoais
No relatório, Silvia observa que nenhum estudo indicou ainda quais são exatamente as principais dinâmicas geradoras de violência letal entre jovens pobres e negros moradores das favelas e dos bairros pobres da Região Metropolitana do Rio de Janeiro. Mas o uso frequente de armas de fogo é forte indicação de que as mortes se associam, direta ou indiretamente, aos grupos armados ilegais que dominam áreas da cidade e que se opõem a outros grupos armados e/ou à polícia.
Entretanto, não se conhece a proporção de mortes que atingem os participantes diretos desses grupos (“traficantes”, “milicianos”, “policiais”), nem os indiretos (amigos, familiares, cônjuges, usuários de drogas etc) ou os contingentes (colegas, vizinhos, moradores de bairros próximos, pessoas presentes em um assalto em ônibus, passantes em uma via da cidade durante um tiroteio, envolvidos em uma briga de festa etc). Segundo Silvia, não se conhece as dinâmicas geradoras de letalidade nem mesmo dentro do recorte “mortes no tráfico”.
“O impacto de um tiroteio numa guerra de facções ou num confronto com a polícia tende a nos levar a esquecer as incontáveis mortes efetuadas dentro dos grupos armados por acertos de contas ou diversas razões de trabalho, e também por disputas amorosas e familiares, por rixas e conflitos banais que encontram desfecho letal na onipresença das armas e de uma cultura masculina agressiva e explosiva”, observa.
A pesquisadora frisa que a divisão clássica entre violência interpessoal de um lado (entre pessoas que se conhecem, sem fins lucrativos) e violência coletiva (ou crime organizado) de outro não se sustenta. “Na prática, o que observamos é que parte importante da violência letal ocorrida no contexto do chamado tráfico de drogas é resultante de conflitos e disputas interpessoais. As fronteiras entre naturezas criminais, no contexto de alta letalidade de jovens de favelas, se encontram indefinidas”, diz.
Uns saem, outros...
Os pesquisadores perguntaram em todos os grupos focais e entrevistas por que alguns jovens entram para os grupos armados ilegais que dominam as favelas e outros não. Após considerações genéricas sobre as razões que contribuem para adolescentes buscarem o caminho do crime, imediatamente se seguiam histórias que contradiziam essas razões.
"É claro que em muitos casos adolescentes vão para o tráfico ou as milícias em busca de dinheiro, alternativa profissional, para fugir de famílias violentas, para escapar de pais ou mães alcoolizados e degradados, ou por outros motivos socioeconômicos clássicos. Mas é importante perceber que em muitos casos as trajetórias de vida não correspondem a essas razões mais óbvias ou frequentes”, observa Silvia.
Segundo ela, é importante ter em mente que o apelo monetário que o crime pode exercer não é o motivo mais decisivo ou pelo menos não é mais tão decisivo quanto na época das grandes remunerações, o que obriga a reconhecer o limite dos projetos para jovens de favelas que baseiam sua existência na oferta de ajuda financeira (bolsas).
Vários técnicos mencionaram que precisam negociar dia a dia a manutenção de certos garotos em projetos que oferecem algum dinheiro, mas não oferecem algo que alguns talvez busquem ao entrar para o tráfico. Procurando fazer uma lista de situações e condições que mais levam os jovens a entrarem para o crime, além da necessidade financeira e do desejo de visibilidade, as razões mais frequentes surgidas nos grupos focais e entrevistas foram: ter vivido uma situação de injustiça (por parte da polícia, na escola, dos amigos ou de outros jovens); ter alguém da família envolvido no tráfico; família desestruturada, ausente; e não ter perspectiva de futuro.
A pesquisadora pondera, entretanto, que cada uma dessas razões deveria ser vista com bastante cautela. Realmente, a família parece ser um ponto-chave nas histórias de entrada, mas também - e principalmente - nas histórias de saída de jovens dos grupos armados ilegais. "Ouvimos muitas histórias em que, exatamente por vir de uma família em que um pai ou um irmão tinha ido para o tráfico, tudo tinha sido feito para que aquele jovem não entrasse. Ou seja, o que parecia ser o veneno revelou-se o antídoto", explica.
Milícias também seduzem
A pesquisa verificou que os grupos de milicianos também podem ser atrativas fontes de renda e emprego para os jovens, o que contraria a ideia de que milícias não empregam jovens e que são formadas apenas por pessoas mais velhas, profissionais de polícia. De acordo com a pesquisa, a crise do tráfico e a consequente redução dos ganhos ilegais, fizeram com que alguns policiais resolvessem obter lucros controlando diretamente territórios e não mais indiretamente, extorquindo traficantes que controlavam territórios.
Os depoimentos mostraram que, mesmo após a conclusão da CPI das Milícias, que identificou chefes, locais e modos de operar desses grupos, eles não só continuam fortes como parecem estar mais estruturados do que antes.
"As milícias hoje passam a ter estrutura e autonomia suficientes para sobreviver e prosperar mesmo com importantes lideranças na cadeia. Todas as políticas de redução da violência letal e as políticas voltadas para jovens de favelas e bairros populares terão de levar em conta que os grupos de milícias não só são uma realidade presente, geradora de letalidade em graus que ainda não se pode mensurar, como provavelmente persistirão pelos próximos anos", atesta o relatório.
A parcela da polícia
Em relação às histórias de injustiças que deflagraram a decisão de jovens de se associarem a grupos armados locais, diversas são ligadas a uma ação arbitrária da polícia que envolveu humilhação. Nos sete meses de estudo, os pesquisadores ouviram inúmeros casos de atuação vergonhosa de policiais.
"Não se trata apenas dos mais de mil mortos pelas forças policiais ano após ano, das evidências de corrupção generalizada em muitas áreas e da proliferação das milícias sob os olhos complacentes de comandantes e chefes de polícia. Trata-se de uma cultura policial arraigada que naturaliza o desrespeito a todos os moradores das áreas pobres da cidade, banaliza a brutalidade e de certa forma justifica a cada dia o próprio fracasso através da lógica da guerra contra o crime", afirma Silvia.
Para ela, a polícia é pelo menos parcialmente responsável por essa tragédia, mas isto não impede de compreender que ela também seja parte absolutamente fundamental da solução, já que se faz necessária para a desocupação dos territórios dominados por traficantes e milicianos e para a diminuição da presença de armas e munições nesses locais. Essa desocupação, segundo Silvia, só será bem sucedida se for realizada por policiais honestos e respeitosos em relação aos moradores das favelas. Ela também destaca a importância da retomada do debate sobre o desarmamento.
"Não se trata de operação policial, mas do estabelecimento de policiamento comunitário permanente, em quantidade suficiente, supervisionado por oficiais superiores que devem se encontrar nas favelas (e não dentro dos batalhões) e controlado pela mídia, por organizações locais e pelos moradores", recomenda.
Outras ações necessárias para reduzir a letalidade provocada pelo envolvimento de adolescentes em grupos armados são a melhoria das escolas, a criação de empregos, a ampliação de alternativas profissionais, programas de bolsas e iniciativas culturais para fortalecer a imagem do jovem de favela. Mas Silvia enfatiza o papel da polícia:
"Ações sociais, culturais e pressão política sobre governantes, por si sós, não são capazes de eliminar as armas e reduzir a violência letal. Em nenhum lugar e menos ainda no Rio de Janeiro. É na polícia, portanto, que parte de nossas energias tem que ser concentrada nos próximos anos."
O estudo é dedicado à memória da pesquisadora Ana Carolina Rodrigues da Silva Dreyfus, do Viva Rio, que trabalhou na pesquisa e faleceu aos 28 anos de idade no desastre do vôo AF 447, da Air France, em 31 de maio de 2009.
(Envolverde/Comunidade Segura)