Constituição Brasileira é clara: menores de 16 anos são proibidos de trabalhar, exceto como aprendizes e somente a partir dos 14. Mas não é o que se vê na TV. Por um lado, a exploração de meninos e meninas nas lavouras e carvoarias costuma ser condenada pela lei e pela opinião pública, em função das seqüelas que deixam em crianças e adolescentes; por outro, costuma-se aplaudir quando crianças - e até bebês - viram estrelas de novelas, programas e comerciais.
As conseqüências para os pequenos na programação comercial são diferentes do que para as crianças das lavouras, mas especialistas alertam que também há riscos para o desenvolvimento dos chamados astros-mirins. "As pessoas assistem com mais naturalidade quando o trabalho é artístico. Mas tanto em novelas quanto nas lavouras há trabalho infantil e ele é proibido", afirma o procurador Rafael Dias Marques, vice-presidente da Coordenação Nacional de Combate à Exploração do Trabalho de Crianças e Adolescentes do Ministério Público do Trabalho.
No Brasil, segundo o Ministério do Trabalho, não
existe regulamentação legal clara para atividades artísticas de meninos e
meninas. Costuma-se levar em consideração o Estatuto da Criança e do Adolescente
(ECA) e a Convenção 138 da Organização Internacional do Trabalho (OIT),
ratificada no Brasil, que permite à autoridade competente, no caso o Juizado de
Menores, conceder, por meio de permissões individuais, exceções à proibição da
lei.
As autorizações judiciais devem levar em conta o limite do número de
horas trabalhadas e as condições em que essa atividade deve ser realizada. Com a
falta de regulamentação legal, no entanto, cada juizado determina qual é a
regra. "Muitos alvarás estão sendo expedidos de forma não-correta: são amplos,
sem proteção dos direitos", garante o procurador.
O assunto traz muita
polêmica e divide especialistas sobre a exploração de crianças e adolescentes
nos meios de comunicação. Para Isa de Oliveira, secretária-executiva do Fórum
Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil (FNPETI), as
conseqüências são inevitáveis para os pequenos quando submetidos ao trabalho
precoce, como é o caso da apresentadora mirim Maisa, do SBT, no programa Sábado
Animado, que vai ao ar das 7h às 12h44. Com cinco anos, ela disputa audiência
com o programa da Xuxa, da Rede Globo. Maisa já virou alvo de deboches em
paródias veiculadas no YouTube, site de vídeos na internet.
"A criança
passa a ser celebridade. Não pode ir mais livremente ao parquinho para brincar.
Deixa de viver uma fase fundamental da vida", diz Isa. Renato Mendes,
coordenador nacional do Programa Internacional para a Eliminação do Trabalho
Infantil, da OIT, tem a mesma opinião: "A exploração infanto-juvenil pode levar
a uma adultização precoce. Muitos participam de cenas com conflitos familiares,
o que pode acarretar em transtornos para a criança."
O desembargador Siro
Darlan não considera atividade artística como trabalho infantil. "Vejo como o
desenvolvimento de uma arte. Se há vocação artística e se coloca um obstáculo,
pode gerar frustração ao desenvolvimento da criança", avalia. Em 2000, ainda
como juiz da 1ª Vara da Infância e da Juventude do Rio de Janeiro, Siro Darlan
ganhou projeção nacional ao proibir a atuação de atores mirins na novela "Laços
de Família", da TV Globo. Para o magistrado, o papel da Justiça é evitar abusos:
"Sou contra uma criança atuar em cenas de violência, com uso de drogas e armas e
ainda em desrespeito à família." Na época, Darlan baixou portaria em que previa
termos como o acompanhamento psicológico e a comprovação de freqüência em sala
de aula. "O ECA determina regras, mas a regulamentação é genérica. Por isso, fiz
a portaria para o Rio", afirma. Siro condena cenas de filmes, como o de Cidade
de Deus, em que crianças e adolescentes aparecem com armas e participam de cenas
de tiroteio.
Para Isa de Oliveira, as atividades artísticas devem ser
estimuladas, mas sem fins comerciais. As escolas, segundo ela, deveriam ser o
espaço de incentivo à cultura, "local adequado para talentos serem descobertos
na idade adequada". Especialistas lembram que os pais devem ter cuidado para não
transferir responsabilidades. "Os adultos querem realizar seu sonho de
enriquecer ou ficar famoso através dos filhos. Mas a criança e o adolescente têm
o direito ao lazer, ao descanso, ao pleno desenvolvimento físico", alerta
Isa.
Para a psicanalista Ana Olmos, o maior risco para os pequenos é eles
saírem da realidade. "Isso não quer dizer que eles não possam trabalhar em um
espetáculo. Mas a criança precisa ser preservada pela família. Quanto mais perto
da escola e do seu grupo etário maior será a garantia de se ter uma vacina
contra situações de exagero", avalia.
O debate sobre o tema está apenas
no início. Tramita no Senado projeto de lei sobre a participação de crianças e
adolescentes em atividades artísticas, que promete aumentar a polêmica. Pelo
texto, bastaria apenas autorização dos responsáveis para a participação de
garotos e garotas nas atividades artísticas. O Ministério Público do Trabalho
participará das discussões, em audiência pública na Casa. E apresentará um
documento, finalizado em agosto pela Coordenação Nacional de Combate à
Exploração do Trabalho de Crianças e Adolescentes do Ministério Público do
Trabalho, que serve de base sobre o tema para procuradores de todo o
País.
Procurado pelo Portal Pró-Menino, a Associação Brasileira das
Emissoras de Rádio e TV (Abert) informou que não poderia dar entrevista porque a
presidência e assessores participavam de um evento. A resposta foi dada após as
perguntas serem enviadas por e-mail, a pedido da assessoria de imprensa da
entidade. O SBT também foi procurado pela reportagem, mas não deu
retorno.
O QUE DIZ O MINISTÉRIO DA JUSTIÇA
-
PROIBIÇÃO: O trabalho artístico não é regulado por parâmetros
legais claros, havendo mesmo doutrinadores que afirmam não ser possível esse
tipo de trabalho no País, com base no art. 7º, XXXIII da Constituição Federal de
1988. A Lei nº 6.533, de 24 de maio de 1978, que regulamenta a profissão de
artista, não dispõe sobre esse assunto.
- EXCEÇÃO: A
Convenção 138 da OIT, ratificada pelo Brasil, permite, em seu art. 8º, 1 e 2,
que a autoridade competente conceda, por meio de permissões individuais,
exceções à proibição de admissão ao emprego ou trabalho com idade aquém da
mínima legal, para representações artísticas. Ressalva apenas que essas
permissões devem limitar o número de horas do emprego ou trabalho autorizadas e
prescrever as condições em que esse poderá ser realizado.
-
ECA: O Estatuto da Criança e do Adolescente admite a
participação de crianças e adolescentes em espetáculos públicos e seus ensaios
desde que a autoridade competente observe entre outros pontos, as peculiaridades
locais e o tipo de freqüência habitual ao local.
-
ESCOLA: "A CLT também impõe limites, pois estabelece em seu
art. 405, parágrafo único, que o trabalho infanto-juvenil 'não poderá ser
realizado em locais prejudiciais à sua formação, ao seu desenvolvimento físico,
psíquico, moral e social e em horários e locais que não permitam a freqüência à
escola'."
- TRABALHO INFANTIL: Questionado se a
utilização de crianças em apresentações artísticas, como novelas, comerciais e
programas de TV, constitui trabalho infantil, o Ministério do Trabalho
respondeu: "A princípio, configura-se, nesse caso, trabalho infantil e,
portanto, proibido. Deve-se obter, previamente, a autorização do Juiz da
Infância e da Juventude para que crianças atuem em apresentações
artísticas".
- HORÁRIO: "Tanto a CLT como o ECA
estabelecem que o horário de trabalho deve ser compatível com o horário escolar.
Além disso, a Convenção 138 da OIT estabelece que a autoridade competente (Juiz
da Infância e da Juventude) deve especificar o número de horas de
trabalho".
- BEBÊS: Sobre a participação de bebês em
atividades como novelas e comerciais, o Ministério do Trabalho informou que não
há regulamentação quanto a esse tipo de participação.
* Rachel
Vita foi diplomada pela Agência de Notícias dos Direitos da Infância
(ANDI) como Jornalista Amiga da Criança em 2001. Hoje trabalha no jornal O Dia,
como repórter de Economia.
(Envolverde/ANDI)