Campeões Invisíveis

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Campeões do mundo: Robson Martins (à esquerda), o técnico Pupo Fernandes (centro) e Douglas Batista. Foto: Giulia Afiune

Conheça a seleção das periferias brasileiras que, sem recursos nem aplausos, conquistou o título da Homeless World Cup de 2013.
Acostumado a ser Golias nos torneios de futebol internacional, o Brasil viveu seu dia de Davi. E não faz muito tempo não. No último dia 18, quatro jovens brasileiros conquistaram a Homeless World Cup, a Copa do Mundo dos Sem Teto, campeonato de futebol criado há dez anos para denunciar as precárias condições de moradia que afetam um grande número de pessoas no mundo. O primeiro torneio, em 2003, reuniu moradores de rua de diversos países na cidade de Graz, na Áustria. O mais recente, que deu a vitória aos brasileiros reuniu equipes de 50 países em Poznan, na Polônia.
Hoje o torneio engloba também pessoas que vivem em “situação de risco” por morarem em áreas violentas, em habitações precárias, em áreas sem acesso a infraestrutura básica, condição em que se encaixam boa parte dos moradores das periferias das grandes cidades brasileiras.
O jogo é dividido em dois tempos de sete minutos e as equipes se organizam como no futebol de rua: três jogadores na linha e um no gol. Vale até aquela clássica tabela com a parede, usada pra ajudar a driblar os adversários em campinhos e quadras no Brasil. Naquele dia 18 de agosto, estavam na linha Darlan Martins, morador do Cantagalo (Rio), Douglas Batista, do Jardim Ângela (São Paulo) e Robson Martins, do Campo Limpo (São Paulo); Vinícius Araújo, da Rocinha (Rio) estava no gol.
Por falta de recursos, o “país do futebol” mandou a menor delegação entre os 59 países participantes: além dos quatro atletas, viajou o técnico Flávio “Pupo” Fernandes, professor de Educação Física. Guilherme Araújo, da ONG Futebol Social, responsável pela montagem da equipe, explica: “A gente já vinha trabalhando com o mesmo patrocinador desde 2011, o patrocínio para esse ano era algo quase que automático. Como o patrocinador nos apoia mediante a Lei de Incentivo ao Esporte, o projeto foi submetido ao Ministério do Esporte, mas não foi aprovado a tempo”, conta.
O patrocinador em questão é a Eletrobras, empresa estatal de energia elétrica, e como era considerado certo, a ONG já se mexia para conseguir os aportes para o ano, quando veio a notícia de que a verba não viria. “A informação que a gente teve era de que faltava uma carta de intenção de patrocínio. Esse nosso patrocinador, uma estatal, não faz esse tipo de carta. E a empresa está passando por uma grande reestruturação, passando por sua maior crise da história, então era inviável”, resume.
Diversos patrocinados sofreram cortes com crise da Eletrobrás, que chegou a registrar a maior queda de suas ações em quinze anos – 15% – em novembro do ano passado. O aporte dado à Confederação Brasileira de Basquete (CBB), por exemplo, caiu 42%: passando de R$ 13 milhões em 2012 para R$ 7,5 milhões em 2013.
Já a delegação mexicana, que disputou a final com o Brasil, levou 45 pessoas à Polônia: além de 20 atletas, incluindo a comissão técnica, 25 pessoas foram como convidadas da Fundação Telmex, braço social da Telmex, gigante do ramo das telecomunicações que atua em países como a Argentina, o Chile, a Colômbia, os Estados Unidos, o Equador, a República Dominicana, e até mesmo no Brasil, como controladora da Claro, uma das quatro gigantes de telecomunicação brasileiras. O dono da Telmex, o bilionário mexicano Carlos Slim Helu, foi eleito o homem mais rico do mundo pelo quarto ano seguido no ranking da revista Forbes. Sua fortuna é estimada em nada menos do que R$ 73 bilhões, R$ 6 bilhões à frente do segundo colocado Bill Gates.
“O dinheiro com o qual eles mandaram essas 45 pessoas é o dinheiro que a gente consegue manter todo o nosso projeto durante um ano”, compara o técnico Pupo Fernandes.
Ainda assim, em uma final suada, os quatro atletas brasileiros venceram os mexicano.s Na disputa dos pênaltis que se seguiu ao empate de 3 a 3, o goleiro brasileiro defendeu a primeira bola e Darlan Martins, eleito o melhor jogador do torneio, marcou o gol que deu o título ao Brasil. Após disputar dez partidas consecutivas, sem banco de reservas, sem verba, sem apoio, o time voltou com o caneco, mostrando a raça das periferias brasileiras.

Muito além do gramado
A reportagem da Pública encontrou Douglas Batista e Robson Martins, os dois paulistas da equipe campeã do Homeless World Cup, na sede do Estrela Nova, clube comunitário do Campo Limpo que integra a rede de entidades parceiras da ONG Futebol Social, que utiliza o esporte como meio de formação de jovens líderes comunitários, de idades entre 16 e 20 anos.
Para fazer parte do time, não basta ser bom de bola, os avaliadores selecionam também pelos vínculos que mantêm com a comunidade, pelo engajamento social para transformar a comunidade e pela situação de risco em que se encontram.
Robson tem o perfil da vítima de violência nas periferias brasileiras. Ele é negro, tem 18 anos e está desempregado há seis meses. De acordo com dados do Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM), do Ministério da Saúde, no ano de 2011, 59.198 pessoas foram assassinadas no Brasil. Deste total, 35,2% (18.387) eram afrodescendentes de idades entre 15 e 29 anos.
Ele trabalha desde os 16 anos para ajudar a mãe, que sustenta a casa sozinha com o salário de metalúrgica. Antes de deixar o emprego em uma empresa de instalação de portões, ele trabalhava numa serralheria. Em nenhum momento, porém, pensou em largar o futebol. “É a minha vida, é o que eu mais gosto de fazer, quero ser jogador desde os meus cinco anos de idade”, conta, emocionado.
Morador do bairro Maria Virgínia, no coração do Campo Limpo, Robson é obcecado pelo sonho de jogar futebol profissionalmente desde que começou a assistir os jogos do Corinthians, seu time do coração. Na comunidade, não encontrava áreas de lazer para afiar seus dribles, chutes, passes e lançamentos, e até os 16 anos, frequentava escolinhas de futebol onde conheceu dezenas de garotos que, como ele, amavam a bola e depositavam ali suas esperanças de melhorar a própria vida e a dos familiares. O tempo foi passando, porém, sem que ele obtivesse a esperada vaga numa equipe de base de um clube profissional.
“Peneira eu já fiz muitas. Inclusive já passei, mas os caras só fazem promessas. Eu passei umas vezes, os caras falaram que iam me levar para um clube, mas nunca levaram”, diz.
A maior decepção com o futebol aconteceu perto da sua casa, no CDC (Clube da Comunidade) do Sapy, ali no Campo Limpo, ele conta. Ao saber que o Internacional, gigante colorado do Rio Grande do Sul, iria fazer uma peneira ali, Robson acordou cedo, e nas primeiras horas da manhã já estava esperando pelo ínicio da triagem.
“Naquele dia eu joguei bem”, conta, “eu tinha passado, já tava treinando entre os escolhidos, e aí chegou um menino não sei de onde, com pai e empresário e tudo. E tiraram eu pra colocar o menino. Aí, no final do treino me disseram que eu não precisava mais treinar, que estava dispensado”, conta.
No mundo do futebol, apesar de muito jovem, Robson já é um veterano. Neymar, por exemplo, entrou para as categorias de base do Santos aos 11 anos e estreou como profissional aos 17 anos. Ainda assim ele continua a treinar sozinho em suas tardes no CDC do Sapy, sem perder a esperança. “Eu corro, faço uns trotes, chuto a bola na parede. Estou sempre me preparando para quando aparecer a oportunidade. Com força, esperança e foco vai acontecer”, acredita.
Se nos próximos dois anos ele não conseguir uma colocação no futebol, porém, Robson sabe o que o aguarda: emprego, oito horas de trabalho por dia, marmita à tiracolo. O cronômetro está rolando.
“No país do futebol, com 5 Copas do Mundo, você vê milhões de reais sendo investidos em estádios, no time, na seleção e você não tem ninguém, nenhum empresário nem patrocinador para investir em nós”, reclama o outro campeão mundial, Douglas Martins, morador do Jardim Ângela, também na zona sul da capital paulista. Como Robson, ele sempre quis ser jogador de futebol. Apoiado pelo pai, marceneiro, e pela mãe, recepcionista de cabeleireiro, ele passou por oito clubes, na tentativa de entrar em uma equipe de base, entre eles o Brasil de Pelotas, o Paulista de Jundiaí e até o São Paulo.
A pior experiência para Douglas foi no Mogi das Cruzes, quando ele tinha 18 anos. “Eu comia só arroz e dormia no chão sujo, em um colchãozinho que quase não era colchão. Durante duas semanas foi tanto perrengue que eu pensava ‘será que é isso mesmo que eu quero da minha vida?’. Aí a sua mãe te liga, te pergunta como que tá e você tem que mentir, né? Porque se não ela ia querer me buscar. E como eu quero esse sonho, resisti até onde eu pude.”
Após ser dispensado do Brasil de Pelotas, com 19 anos, Douglas desistiu e foi trabalhar na marcenaria do pai, mas não se sentia feliz: queria voltar ao futebol, que continua sendo o seu principal projeto. “Meu plano B é estudar, fazer uma faculdade. O Ensino Médio eu já completei. E, se não der certo no futebol, tentar seguir outra vida”, diz.

Futebol Social X Copa do Mundo

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A Homeless World Cup é uma competição que visa chamar a atenção para a situação de moradia no planeta. Foto: Giulia Afiune

Impulsionar jovens a fazer carreira no futebol, porém, não é o objetivo central da ONG Futebol Social, responsável pela montagem da equipe brasileira para a Homeless World Cup, criada por Guilherme Araújo após uma experiência dele na revista Ocas, publicação vendida por pessoas em situação de rua como oportunidade para que voltem a exercer um trabalho remunerado.
“O projeto nasceu dentro da Ocas, cresceu dentro da Ocas e no fim de 2009 a gente fundou uma nova ONG”, conta Araújo. A Ocas havia sido convidada a representar o Brasil na “Homeless World Cup”, mandando um time de moradores de rua. “Eu treinei o time e tivemos dificuldades, porque muitos nunca tinham praticado um esporte, uma atividade física”, conta o técnico Pupo Fernandes.
Da experiência veio a ideia de usar o futebol como um agente de transformação social através de um projeto desenvolvido por uma rede de entidades parceiras como o Clube da Turma e o Estrela Nova, no extremo sul de São Paulo, e o Criança Esperança do Rio de Janeiro. A ONG Futebol Social também está presente em Minas Gerais, em Brasília e no Pará.
“Temos a meta de chegar a todas as regiões do Brasil, mas ainda estamos buscando recursos para isso”, conta Pupo Fernandes. “Nesse momento vemos que a mídia e os patrocinadores focam muito mais a Copa do Mundo do projetos como o nosso. Por exemplo, um patrocinador prefere pegar R$ 100 mil e fazer mil bolas associando-se à Copa do que destinar a um projeto como o nosso”, avalia.

* O blogCopa Pública é uma experiência de jornalismo cidadão que mostra como a população brasileira tem sido afetada pelos preparativos para a Copa de 2014 – e como está se organizando para não ficar de fora.
** Publicado originalmente no site Agência Pública.

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