Cubanos chegam e já diagnosticam a doença do Brasil

Eles desembarcaram há apenas quatro dias. Ainda nem começaram a trabalhar. Mas alguma coisa de essencial já foi diagnosticada entre nós, apenas com a sua presença.


Manifestantes ligados ao Sindicato dos Médicos do Ceará vaiam médico cubano na saída do grupo de 79 médicos estrangeiros de aula inaugural (Foto: Jarbas Oliveira/Folhapress)

Uma foto estampada na Folha de S. Paulo desta terça-feira (27) sintetiza a radiografia que essa visita adicionou ao diagnóstico da doença brasileira.

Um médico negro avança altivo pelo corredor polonês que espreme a sua passagem na chegada a Fortaleza, na segunda-feira (26).

O funil do constrangimento é formado por jovens de jaleco da mesma cor alva da pele.

Uivam, vaiam, ofendem o recém-chegado.

Recitam um texto inoculado diuturnamente em sua mente pelas cantanhêdes, os gasparis e assemelhados.

Centuriões de um conservadorismo rasteiro, mas incessante.

É força de justiça creditar a esse pelotão a paternidade da linhagem, capaz de cometer o que a foto cristalizou para a memória destes tempos.

“Escravo!” “Escravo!” “Escravo!”.

Ecoa a falange cevada no pastejo da semi-informação, do preconceito e das tardes em shopping center.

Foi programada para cumprir esse papel, entre outros, de consequências até mais letais para a democracia e a civilização entre nós. 

Um desembarque que em outros países seria motivo de festas, homenagens e bandas de música.

Aqui é emoldurado pelo espetáculo deprimente de uma classe média desprovida de discernimento sobre o país em que vive, o mundo que a cerca e as urgências da sociedade que lhe custeou o estudo.

Para que agora sabotasse a assistência cubana aos seus segmentos mais vulneráveis, aos quais ela se recusa a atender. 

Os alvos da fúria deixaram família, rotinas e camaradagem para morar e socorrer habitantes de localidades das quais nunca ouviram falar.

Mas que a maioria dos brasileiros também sequer desconfia que existam.

Com o agravante de que ali talvez jamais pousem seus pés. Coisa que os cubanos farão. Por três anos. 

E que graças a eles, agora saberemos que existem.

Se o governo for safo – espera-se que seja – fará do Mais Médico uma ponte de conexão de nós com nós mesmos. 

O futuro da democracia agradecerá.

Os pilares dessa ponte, de qualquer forma, são os que transitam agora altivos diante da recepção que indigna o Brasil aos olhos do mundo.

Perfis médicos ainda improváveis entre nós, apesar do Prouni e das cotas satanizadas pela mesma cepa mental adestrada em compor corredores e funis.

Nem sempre físicos, como agora.

Mas permanentemente intolerantes, na defesa da exclusão e do privilégio. 

Formados em uma ilha do Caribe desguarnecida de recursos, por uma escola de medicina que contorna a tecnologia cara, apurando a excelência do exame clínico – aquele em que o médico demora uma hora ou mais com o paciente, rastreando o seu metabolismo – eles passarão a cuidar da gente brasileira pobre e anônima. (Leia a excelente entrevista de Najla Passos com a doutora Ceramides Carbonell sobre a formação de um médico em Cuba).

Campos Alegres de Lourdes, Mansidão, Carinhanha, beira do São Francisco, Cocos, Sítio do Quinto, Souto Soares... Quem conhece esse Brasil? 

É para lá que eles vão. E para mais 3.500 outras localidades.

Um Brasil esquecido, em muitos casos, mantido na soleira da porta, do lado de fora do mercado e da cidadania.

Que sempre esteve aí. Mas que agora, pasmem, terá um sujeito interessado em ouvir o que sua agente tem a dizer, esforçando-se por entender pronúncias que até nós, os locais, muitas vezes teríamos dificuldade de discernir.

O ‘doutor de Cuba’ de fala estrangeira e jeito parecido com a gente vai examinar, apalpar dores, curar vermes, prescrever cuidados, encaminhar cirurgias, ouvir e confortar.

Com remédios, atenção e esperança.

Houve um tempo em que essas expedições a um Brasil distante do mar eram feitas por brasileiros, e de classe média.

Protagonistas de um relato épico, de nacionalismo não raro ingênuo. Mas que aproximava e treinava o olhar do país sobre ele mesmo.

Coisa que a hiper-conexão disponível agora poderia fazer até melhor.

Não fosse a determinação superior de afastar e dissimular, o que muitas vezes se alcança destacando o pitoresco.

Em detrimento do principal: as questões do nosso tempo, do nosso desenvolvimento, as escolhas que elas nos cobram. E os interesses que as bloqueiam.

Tivemos a Coluna Prestes, nos anos 20. 

Os irmãos Villas Boas, apoiados por malucos como Darcy Ribeiro e entusiastas como Antonio Calado, fizeram isso nos anos 1940-50 e início dos 60, quando foi criado o Parque Nacional do Xingu.

Trouxeram a boca do sertão para mais perto do olhar litorâneo e urbano.

Desbastavam distancias a facão. 

Na raça, traziam horizontes, aproximavam rios, tribos, desafios e, de alguma forma, semeavam um espírito de pertencimento a algo maior que a linha do mar e a calçada de Copacabana. 

A utopia geográfica, se por um lado borrava os conflitos de classe, ao mesmo tempo colidia com o país real que os esperava em cada socavão, de trincas sociais, fundiárias, étnicas e econômicas avessas à neblina da glamorização.

Paschoal Carlos Magno, a UNE e o CPC, o Centro Popular de Cultura, fariam o mesmo nos anos 1960, antes do golpe militar.

As famosas ‘Caravanas do CPC’ rasgaram o mapa do sertão, a exemplo do que fizeram as Caravanas da Cidadania, de Lula, nos anos 1980.

Desceriam o São Francisco nas gaiolas lendárias para garimpar e irradiar a cultura popular em lugares onde agora, possivelmente, um doutor cubano irá se instalar.

Caso de Carinhanha, um dos mais belos entardeceres do São Francisco.

Onde foi que a seta do tempo se quebrou? 

Por que já não seduz a grande aventura de nossa própria construção terceirizada, por décadas, aos mercados autoregulados?

Uma leitora da Carta Maior, Odette Carvalho de Lima Seabra, resume em comentário enviado ao site o núcleo duro do problema. 

“ A geração dos nossos jovens doutores”, escreve, “ jamais compreenderá de que se trata. Foram criados nos shopping centers. A escola secundária limitadíssima no seu alcance humanístico os fez também vítimas sem que o saibam que são. Uma revolução que durou vinte anos e cujo sentido era o de esvaziar de sentido a vida de todos nós deixou no seu rescaldo, esse bando de jovens, como são os nossos doutores, muito alienados. É tempo de aprender com os cubanos”, conclui Odette.

Colocado nos seus devidos termos, o impasse readquire a clareza histórica de que se ressente a busca de soluções.

Entre indignado e estupefato, o conservadorismo nega aos visitantes cubanos outra referência de exercício da medicina que não a dos valores argentários.

Ética médica, solidariedade, internacionalismo e humanismo formam uma constelação incompreensível a quem divide o mundo entre consumidores e escravos. 

À esquerda, no entanto, cabe também evitar simplificações.

Se quiser enxergar a real abrangência das tarefas em curso, é preciso admitir que não estamos diante de uma batalha entre anjos e demônios.

Os médicos do Caribe não nascem bonzinhos. Tampouco endemoninhados, os dos trópicos.

Eles são formados assim. Por instituições.

A escola, por certo, mas a mídia, sem dúvida, que a completa pelo resto da vida.

É vital que o governo, lideranças sociais e os intelectuais compreendam o fundamental em jogo.

Se quisermos colher frutos duradouros com o ‘Mais Médicos’, o passo seguinte do programa terá que ser a reforma universitária brasileira.

Que reaproxime universidade e a juventude das grandes tarefas coletivas do nosso tempo. 

As diferenças entre a formação do cubano hostilizado na chegada a Fortaleza, e aqueles que o ofendiam não são apenas de ordem técnica. 

Mas, sobretudo, de discernimento diante do mundo.

A ponto de um não achar estranho sair de seu país para ajudar um outro. 

Nem considerar despropositado que parte de seu ganho se transforme em fundo público de reinvestimento.

O oposto das convicções dos que o agraciavam com o corolário de sua própria servidão.

Esse talvez seja o aspecto mais chocante da visita que acaba de chegar.

E, sobretudo, o mais instrutivo.

Ela escancara a doença social que corrói o nosso metabolismo. E adverte para as limitações que irradia. 

Na sociedade que estamos construindo.

Na mentalidade que vai se sedimentando. No risco que ela incide sobre o todo.

Para que o ‘Mais Médicos’ um dia possa ser dispensável, o Brasil precisa se tornar ele próprio um grande ‘Mais Solidariedade’.

Como faz Cuba desde 1959, com todos os seus erros, acertos e percalços.

* Saul Leblon é jornalista

 
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