A ENTREVISTA COM CHICO XAVIER

Chico, Emmanuel, Anchieta, Kardec

Foi uma visita muito prazerosa que durou uma tarde inteira e boa parte da noite. Havia solicitado esse encontro nos meados deste ano, e fui surpreendido pelo chamamento, aproveitando a oportunidade de um raro momento de folga de nosso querido medianeiro.

Quando cheguei, após rápido passeio por jardins majestáticos do caminho, pude, logo à entrada, perceber que era ali que ele ficava. O equilíbrio harmonioso e a forma simples de tudo o que estava em volta retratavam um pouco do ser extraordinário que conheci na bucólica Pedro Leopoldo, há mais de setenta anos.

Ao pé de verdejante encosta, cercada por flores multicoloridas que dançavam ao embalo de leve brisa, uma casinha simples, de paredes brancas e duas janelas azuis, com pequenos nichos de folhagens, a pender graciosamente, compondo um belo modelo de paisagem. Na entrada uma varanda receptiva, com o chão brilhando em verde perolado, e alguns bancos, confortáveis, dispostos em meio círculo, convidavam ao descanso.

Percebi logo que aquela era a chamada entrada comum, pois apesar da aparência contida, na casa havia muitos cômodos, e notava-se movimentação acentuada em seu interior. Ao me aproximar da soleira, surgiu a simpática figura de Dinorah, que me recebeu carinhosamente, anunciando que ele viria logo, e que eu deveria me assentar.

Ainda resfolegava na emoção, quando ouvi seus passos. Era Chico Xavier, nosso querido Anjo Amor, que com aquele sorriso amigo e paternal, nos estendia um longo e generoso abraço.
Depois que ele retornara ao mundo espiritual, há sete anos, era a segunda vez que nos encontrávamos, sendo que a anterior foi um contato muito rápido devido à multiquilométrica fila de recepção. Nesse ínterim, porém, tivemos alguns encontros indiretos, através de relatos e notícias de amigos.

O iluminado espírito demonstrava boa disposição, vivacidade, com uma calça de linho cinza-azulado, camisa branca com gola aberta, de onde pendiam do bolso, dois lápis. Trazia a expressão serena, e o sorriso de simpatia conhecido por todos.

Como dois colegiais na volta de férias, no início da conversa misturamos perguntas e respostas simultâneas, de coisas e pessoas do trivial. Entusiasmado, o coração de ouro de tantos consolos e ensinamentos exultava com fartos adjetivos, à possibilidade em estar escrevendo para os povos orientais.

- Meu irmão, - dizia ele, - tenho experimentado enorme emoção, ao penetrar cada vez mais em semelhanças e pontos convergentes entre grandes sábios das culturas orientais, antigos e contemporâneos, com os ensinamentos contidos nos sagrados Evangelhos de Jesus. A magnanimidade do Criador soube distribuir a Verdade, em sua inteireza, a todos os filhos, em todos os cantos e em todas as culturas, facultando a cada um, por mais distante ou separado que esteja dos centros desenvolvidos, a possibilidade de se aperceber do rumo, do norte de seu processo evolutivo. Através de emissários abnegados Deus envia, em cada rincão, para cada pontinho mais inexpressivo, a centelha que pode incendiar a luz do Amor e da Bondade em cada coração. - aduzia feliz.

Durante alguns minutos ele falou dessas experiências, relatando visitas de evoluídos seres, que o assessoravam nestas novas caminhadas.

- Mas, Chico, da última vez que me chegaram notícias suas, através do prof. Romanelli, as informações eram sobre os povos africanos...

- Ah sim, foi no início deste ano, e ainda continuamos esse empenho, mas o que tem me ocupado mais o tempo agora é esse trabalho ligado, sobretudo aos islamitas e aos chineses. São culturas de uma profundidade e sabedoria formidáveis, que em muitos pontos parecem até ter dado origem aos ensinamentos de Jesus, pela beleza. Temos encontrado campo fértil em corações bondosos, e estamos lá empreendendo atividades mediúnicas de uma forma híbrida, aproveitando as bases da fé reinante, mas consoante aos padrões da Doutrina Espírita, e alguns resultados já se apresentam. Claro, como em toda atividade que quebra ou altera estruturas, acontecem as reações, algumas até radicais, violentas....(suspira)... tem havido até mesmo algumas execuções, mas isso também é parte do processo...

- É... - interrompi- nós temos notícias da violência, da discriminação, do sectarismo que cercam muitos seguidores e líderes fanáticos destas crenças...

Antes que eu completasse minha opinião fui interrompido pelo interlocutor, com um carinhoso, mas eficaz, nocaute verbal:

- E onde é que isso não existe, meu irmão? O ser humano ainda não se liberou de seu atavismo, de sua sede de posse territorial, e infelizmente a grande maioria ainda se pôe à porta, com a maça nas mãos, nas pré-históricas cavernas do sentimento, da fraternidade, da compreensão. Vou te contar um caso, dos quais colhi detalhes há poucos dias: um dos maiores repositórios de revolta que os muçulmanos têm se refere ao martírio cruel, ao assassinato coletivo de jovens, mulheres, crianças, cometidos nas Cruzadas Cristãs! Remontam aos martirizados nos terríveis episódios acontecidos por volta do Século XI. Já pensou que tragédia?! Crimes horrorosos cometidos com a espada nas mãos e a cruz de Cristo na outra! Para muitos, milhares, sobretudo fora da carne, a figura de uma cruz ainda simboliza o golpe da espada a fazer rolar, sanguinariamente, as cabeças de gente de seu povo... Deplorável!-

Depois de retomar o fôlego, prossegue:
- O sentimento de amor, sabemos, é uma energia extremamente poderosa, benfazeja, que precisa ser controlada, conduzida, pois temos ciência onde deságuam os curtos-circuitos das paixões e as conseqüências da sobrecarga que atende pelo pseudônimo de fanatismo. Infelizmente, meu amigo, creio que ainda falta muita estrada para caminhar até que alcancemos um patamar de reinado pleno, para a fraternidade pura. E isso não é coisa de Idade Média, não. Acontece hoje, aqui e na crosta, onde as convicções pessoais de grupos, de congregações tentam se impor aos outros, a qualquer custo, com as mais “santificadas” explicações! E nós como espíritas detentores de um legado enorme de responsabilidade pelo esclarecimento da Humanidade, não podemos nos perder nessa trajetória, nem permitir que se troque a conquista de almas através do Evangelho Consolador pelas desarvoradas e até mesmo renhidas disputas de espaço e ocupação. Lembro a citação de Emmanuel, “Compreensão não se exige, se pratica”... -

A entrada de uma simpática senhora, trazendo-nos um cheiroso café, foi o hiato oportuno para que eu pudesse recobrar-me daquela avalanche de informações que recebera, embalada em lição de caridade, ditadas pelo elevado anfitrião.


O CENTENÁRIO

Meus pensamentos fervilhavam na absorção daquilo que ouvia, quando me aventurei a uma questão:

- E aí Chico... E o nosso Emmanuel...?

- Trabalhando... Trabalhando... - respondeu, com sinais de preocupação- tem se empenhado muito com nossos irmãos de Doutrina, exatamente para que abdiquem de algumas posturas diríamos, reacionárias, engessantes, porque isso o torna muito insatisfeito consigo mesmo...

-Ué? Com ele próprio?

-Sim... Porque dá a sensação de não ter cumprido bem a sua missão, ou que não conseguiu transmitir de modo a ser entendido, os ensinamentos que lhe passaram os responsáveis pela codificação...

-Isso como Kardec?*

-Sim, mas também como em sua performance recente como Emmanuel, o grande condutor da estrutura do espiritismo nascente, na qual também tenho sido usado. A Doutrina Codificada é um processo que tem suas fases continuadas. Não é uma tarefa de empreitada onde selamos uma etiqueta de “finalizada, revista e corrigida”. Desdobra-se, e vai continuar assim, subindo degraus, dinamicamente, apesar de que alguns estão preferindo se assentar ou andar na horizontal, insistindo em não alçar planos mais altos...

- Fale-me sobre isso, Caro Chico...

- Não é nada muito novo, nem misterioso, e temos observado ao longo dos milênios essa resistência quanto ao partilhar coisas, conhecimentos, sentimentos. E aí é que está a principal questão: Quem conhece a Doutrina Espírita precisa praticar o novo, ser diferente, e na verdade, nada é novo, pois tem apenas (?) que imitar ou caminhar conforme Jesus caminhou!.... Entende? Imagine que determinado benfeitor coloca para certa região um caminhão de toras, fortes, vigorosas, para que se erija naquela beira de rio uma ponte, em favor da travessia de todos. No entanto quando retorna percebe que, ao invés da ponte, construíram com o material uma grande cerca, uma fortaleza, isolando, separando... É mais ou menos nesse rumo. Alguns companheiros, movimentados por ligações de recrudescidos egoísmos pretéritos, que imaginávamos superados, estão nessa linha. Quem está fazendo isso tem a consciência do que está fazendo, e de que age contrário às leis de fraternidade e de amor cristãos, que são a essência, os fundamentos do espiritismo....

-Entendi o que foi colocado... o raciocínio...

-E nosso Emmanuel é muito suscetível a isso, e se cobra, o que o entristece. Outro dia ele estava comentando acerca de uma afirmação que está circulando em seu nome, e que nunca ele a faria. É sobre uma alteração de uma de suas frases, onde cometem a impropriedade de situar a Doutrina espírita como uma mendicante, carente, necessitada de ajuda. É aquela frase infantil... “ a maior caridade que fazem à doutrina... é a sua divulgação...” Ora, ora... Fazem uma grande caridade aos seres quando se lhes ensina a prática dos caminhos que o Cristianismo Redivivo trouxe, não essa veleidade que propagam. O pior é que tem muita gente “graúda” que sai repetindo isso, sem pensar na infantilidade que cometem...

- É... a gente entende isso... É mais ou menos como aquela receita para emagrecer, feita em seu nome...

-Sim... É mais ou menos (ri aliviadamente)... Só que você não sabe, mas tenho recebido orações de agradecimento, sinceras e fervorosas, de pessoas que, ingenuamente fizeram aquilo como se fosse eu o autor da “receita”, que efetivamente perderam bons quilos, e por isso me agradecem... Tenho feito sempre as orações para que os que fizerem a dieta possam realmente emagrecer... (rindo de novo), e melhorar não só o corpo, mas também o coração. Até aí tudo bem, mas dizer que a Doutrina precisa de caridade... É como pedir nas orações que Deus tenha mais força... Mais ou menos por aí...

-Chico... Aproximam-se as festividades do centenário... E aí?

-Pois é... Existem alguns aspectos que devem ser considerados. O que o professor Romanelli disse e que você meu irmão ratificou naquela carta**, é uma verdade inexpungível. Ninguém, em sã consciência poderia concordar com os abusos anunciados, com o desperdício, com o desvio, principalmente numa época onde há miséria e sofrimento também material. Por efeito daquelas advertências tive notícias de que muitos planos foram revistos e reconduzidos. Claro que outros preferem manter o exagero, mas que as próprias consciências os julguem, não nós. De outro lado, há uma gigantesca manifestação de apreço, de carinho, de amor verdadeiro e de imerecido reconhecimento a mim, aos quais não posso ficar insensível, e ao contrário, muito me tocam, me emocionam, me alegram, mesmo tendo a convicção de que não fiz o que apregoam que eu tenha feito, e que sei não dignificar tão elevadas homenagens. E todos conhecem minhas reações diante destas situações, que me constrangem, e não me permitem compartilhar dessa euforia que meus bondosos amigos desfrutam. Entretanto podemos extrair disto muitos proveitos para a Doutrina, para as comunidades, para o despertar de interesse diante de obras maravilhosas das quais eu tive a incomensurável primazia em ser o burrico de carga, o agente de transporte. Tenho rogado muito a Deus que nos auxilie nessa difícil prova, visto que não pretendemos ser instrumento de abuso, de desperdício, de exploração, de agressão à economia pública, portanto, bem comum, de todos. Mas também que isto não seja motivo de desagregação, de contendas, de desarmonia entre ninguém, predominantemente no nosso meio espírita, já tão assoberbado por tantas agressões externas. Peço a Jesus sempre, que inspire e oriente nossos irmãos que dirigem esses acontecimentos, para que tenham discernimento, moderação e, sobremaneira, caridade para com os que sofrem. - completou.
O APÓSTOLO DO BRASIL

Percebi uma entonação de diferente teor nas palavras de Chico Xavier. Mas, este assunto, apesar de claramente incômodo, concernia, pois era um dos que me moveram até nosso querido amigo, visto a repercussão da “Lágrima do Chico”*. Pelas explicações nos sentimos satisfeitos, porém o sábio farol de Pedro Leopoldo/Uberaba prosseguiu:

-Já tive, ainda recente, uma experiência semelhante a esta que estaremos enfrentando, e creio que os calos adquiridos nesta ocasião, me permitirão calçar melhor essa botina apertada...
- Com as homenagens?

- Sim...foi no ano de 1954, por ocasião das celebrações dos 400 anos do Centenário da cidade de São Paulo.... Coincidentemente estava na capital paulista, em trabalho editorial, no dia em que inauguraram a grande estátua de bronze, na Praça da Sé, para Anchieta. Uma homenagem linda, de uma obra gigantesca, creio que de uns 8, 9 metros, feita por um extraordinário artista italiano radicado no Brasil, Heytor Usai. Um monumento maravilhoso, porém, no meu modo de entender, grande e desproporcional empenho de dinheiro público, já que ao pé da obra diversos irmãozinhos imploravam a esmola dos transeuntes...

- Chico... Ali você sentia como José de Anchieta, então...

- Sim, claro... Mas creio que foi uma prévia do que a gente vai enfrentar neste próximo ano... (espero que não)... como também rogo pela caridade do comedimento, a parcimônia e o controle por parte dos companheiros que organizarem, conduzirem e participarem.- afirmou.
ZÉFIRO...

Meu raciocínio, de pronto, deduziu: Se Chico era Anchieta, Emmanuel por sua vez, tinha sido Manuel de Nóbrega e Kardec**, onde estaria então nosso iluminado amigo ao tempo da Codificação?

Como a adivinhar-me os pensamentos, - o que, aliás, muito fez e faz- Chico pontificou:

-Ao tempo da Codificação estava entre os espíritos que facilitavam à chegada dos que se manifestaram para a elaboração das obras básicas, tanto os luminares, os grandes filósofos e pensadores, como a dos mais simples e sofredores. Durante um tempo, depois de passar pelos Estados Unidos, entre 1846/47, estivemos no acompanhamento das manifesteações em Hydesville, com as irmãs Fox. Depois passamos pela Escócia, e nos detivemos por mais tempo naIlha da Reunião, - uma possessão Francesa na Costa africana, banhada pelo Índico, na cidade de Saint Denis. Um de nossos amigos gostava de dizer que se havia necessidadede ser firme, aquela ilha era a ideal, pois era uma rocha que submergira do mar. Ali se desenhava todo o projeto que iria culminar com a Codificação.

- Como foi o encontro com a família das meninas Baudin?

- A família Baudin encontrei morando num bonito chalet na área onde está a Rue de Paris, quase esquina com Leclerc, em cujos fundos havia um grande galpão de depósito para sacas de café. Lembro-me um detalhe interessante... é que o número das casas era escrito em algarismos romanos, e por isso ocupava grande espaço na fachada. O da casa das meninas era CXLIV .

- Que memória ...(brinquei)

- Mas essa “peripécia mnemônica” (risos) tem uma razão. Numa revisita que fiz à casa, pelo registro da regressão, observei o detalhe das iniciais que ainda me são muito caras....( e prosseguiu) - Ali, nos meados de 1854 começamos os contatos com as meninas Baudin.
- Como foram esses primeiros contatos?

- Bem. Os fenômenos de Hydesvillle, com as irmãs Fox, dos quais nosso grupo também participou em 1846/47 eram a grande sensação em todo o mundo. As famílias enxergavam isso como um divertimento, e faziam encontros para receber as mensagens por diversas formas, como tiptologia, pancadas, e também pelas cestas de vime com uma pedra na ponta. Naquela região onde moravam os Baudin, os povos malgaches – muito comuns na ilha, pois a maioria dos trabalhadores do porto eramda continental ilha em frente, tinham certos rituais com cera quente pingada na água, e faziam à sua maneira, a interpretação dos contatos com os espíritos. As irmãs Julie e Caroline eram muito interessadas nisso. A casa em que moravam ficava a oito quadras da praia de Bacharois, em direção Oeste e elas iam sempre lá, pegar pedrinhas e algumas conchas. Perto da casa passava um canal onde havia pedras de ardósia, que serviam para escrever, como nosso atual giz. Lembra aquela pedra de costureira, semelhante a uma meia lua azul?... Pela intuição fizemos com que Carol e Juliette começassem a usar as pedras de ardósia, que facilitavam e davam rapidez às respostas. O recado foi dado com setas de folhas de palmeira na praia, que se moviam sob os pedidos das infantes, quando elas perguntaram onde estariam as melhores ferramentas...

- Era você e mais quantos, neste trabalho de preparação?

- Bom, inicialmente eram muitos, mais de cem, mas, à medida que foram se afunilando as ações reduziu-se a turma para mais ou menos trinta indivíduos, que se revezavam em diversas funções, tanto no atendimento às perguntas, quanto na estruturação e vigilância do ambiente, já que as investidas contra essa propagação sempre foram muito vigorosas. Na medida em que fomos dando certas respostas, o interesse de Clementine, primeiro, e depois de Emílio, - pais das meninas -, foi aumentando, porque passaram a perceber certos benefícios e profundidade naquelas conversas.

- Quais eram esses benefícios?

- Nada de muito especial. Eram pequenos avisos. Naquela região constantemente acontecem tempestades, ventanias, tufões, e às vezes avisávamos isto, com um ou dois dias de antecedência. O pai era negociante de grãos vindos da África e da Europa. E ficava sabendo por nós, antecipadamente, quais os carregamentos estavam para chegar ao porto. Coisas assim, sem muita importância, mas de grande acerto e que de por isso impressionavam, criando um vínculo de credibilidade, o princípio da Fé.

-Existe algum detalhe, alguma situação que ficou marcada... nesse tempo?

-Bem... Não posso me esquecer da ajuda de uma senhora, uma moçambicana, professora avulsa, que havia morado em Antananarivo, em Madagascar, e que depois de viúva atravessou o canal, indo para Saint Denis. Chamava-se Marie Lourence. Morava na Rue La Bourdennais, não muito longe da casa dos Baudin, e sempre dava aulas de reforço para as meninas, sobretudo para a mais velha, Caroline e passeava com a pequena no parque do rei, um aprazível lugar de Saint Denis. Foi-nos de grande utilidade, porque tinha consciência sobre sua capacidade de se comunicar com o mundo espiritual e um coração muito generoso. Era seguidora de uma seita induísta. Foi ela, por freqüentar a casa dos Baudin, quem introduziu a meditação antes dos encontros e reuniões para falar com as “rocs” como as meninas costumavam chamar as pedras de giz. Isso deu origem, em essência, à assinatura religiosa das reuniões, o que prosseguiu também em Paris, pois se percebia que os resultados eram muito melhores quando era adotado esse tratamento, da prece inicial. Ali começou uma conotação Divina às manifestações, e foi importante essa atitude, que purificava de modo formidável o ambiente.

- Mas isso ainda era lá em Ille Reunion, perto das Ilhas Maurício...

-Sim. Mas, o programa estava sendo executado conforme o previsto. Numa noite, em agosto de 1854, numa reunião, após um vendaval violento que deixou grandes estragos, fomos perguntados por Emílio se seria bom que eles se mudassem para Paris, tanto pelas tempestades, como principalmente pela educação e estudos das meninas. Pela primeira vez ali, usamos a psicofonia, servindo-se de Me’ Lor (Marie Lourence) como intermediária. Informei a Emílio que o tempo era adequado, e que na semana seguinte chegaria um navio da Holanda, na qual poderiam embarcar, e que, não se preocupasse, pois estaríamos de nosso modo, ajudando a essa transferência. Foram recebidas com naturalidade, tanto a notícia quanto a forma de comunicação, pela família. Na semana seguinte, o navio nederlando Overwinning zarpou do pequeno porto com destino à Europa. Assim se deu a chegada a Paris, marcada por curiosos e interessantes episódios, que ratificavam a nós também, o amparo pela Espiritualidade Superior, o que muito nos fortalecia. Já em Paris, a família, sobretudo as meninas, continuavam com boa vontade no contato com os espíritos. As reuniões prosseguiam, já assumindo ares de organização e métodos, com certa disciplina. Naquela altura já tinham entendido a importância e a seriedade do trabalho que viria a ser, em breve, encetado pelo professor Rivail, e deram uma grande contribuição, de bom grado e com abnegação, o que possibilitou o bom termo da empreitada. Posso afiançar que eram virtuosas, de índole amável, tementes a Deus e excelentes médiuns. Não se pode esquecer que estávamos lidando com uma família católica, que permitia esse contato dos espíritos com suas filhas, que tinham em 1856, Caroline, 18 e Julie, 15 anos de idade!

- E você então era um dos que participaram? Era você o Zéfiro apresentado a Kardec como o protetor?

- Sim, o era, mas de certa forma. Porque em verdade, nessa altura éramos uma equipe de oito espíritos na atuação direta destes trabalhos. E existiam “zéfiros”, que se destinavam às áreas específicas, como ciência, filosofia, religião, ou mesmo conhecimentos direcionados, da área médica, neurológica, glandular, astronomia, filosofia, enfim.... Eu cuidava mais da parte de coordenação, e dos contatos com os religiosos, e isso me conferia uma espécie de comando... por isso era chamado de “Zéphyr Verité” ou o “da Verdade”.

-Há alguma explicação para a adoção desse nome?

-Bem, você sabe de mitologia como ninguém... Zéfiro é o nome do ser que simboliza o vento oeste, ou uma benéfica brisa suave... Éramos os espíritos, e o espírito, como o vento, sopra onde quer. O clima entre nós geralmente era muito alegre, descontraído, diria, de essência pura, quase infantil, porque existia em cada um uma natural satisfação, por podermos revelar ao mundo as maravilhosas “novas boas novas”.... E não faltavam muitas brincadeiras. Por isso a denominação. Participamos assim de toda a preparação e elaboração das Obras da Codificação. É bom salientar que no início o “Livro dos Espíritos” iria se chamar “A Religião dos Espíritos” e por sugestão de São Luiz passou a ter o nome definitivo, a fim de não provocar desnecessários choques com o padrão religioso vigente,com a Igreja.

- Há pouco tempo o Dr. Waldo Vieira também se auto proclamou o Zéfiro. Como é isso?

- E é verdade. A informação é correta. Ele era um dos que participavam do grupo desde o início. Como a inclinação e afinidades dele eram (e continuam sendo) o aspecto científico, a parte mais experimental, era o que conduzia e se entendia com os mensageiros ligados a essa parte na Revelação Espírita. Assim, Pascal, Mesmer, Lavater, Newton, e muitos outros eram direcionados por ele, aliás, grande amigo, por quem nutro grande simpatia e admiração, pela capacidade e generosidade. Quando nos reencontramos, no triângulo, houve uma identificação recíproca, simultânea. Os outros companheiros também vieram para o Brasil, onde reencarnaram, com exceção de um que preferiu migrar para terras belgas. Cada um tinha sua área definida de atuação. E claro, contávamos com uma estrutura espiritual, moral, de uma fortaleza, no anteparo, da envergadura daquele a quem chamaríamos Allan Kardec.

- Conte um pouco desse encontro em Paris com seu antigo companheiro e superior jesuíta, Manoel da Nóbrega. Como foi?

- Bem, as reuniões em Paris aconteciam regularmente e começaram a aparecer nas reuniões gente importante. Certa noite na casa da família Baudin, em 55, o professor compareceu com Mme. Rivail, a doce Gaby. Fiquei muito... muito feliz, e até cheguei a exagerar em meu entusiasmo. Saudei-o brincando, como fazia enquanto na Companhia de Jesus, no Brasil. Fui, até de certo modo, irreverente.... Mas estava de verdade emocionado por esse recontato direto...

- Como foi?

- Eu o cumprimentei mais ou menos assim... - Ora Vivas.. Seja bem vindo, meu nobre Pontífice... Salve, salve, salve... E o pessoal que estava na assistência, em sala cheia, explodiu em risadas...

- E ele?

- Todos sabiam de seu temperamento grave, sistemático e houve aquela apreensão. Mas, ao contrário, a reação dele foi surpreendente a todos. Creio que intimamente identificou o chamamento, e respondeu também brincando, como se me abençoasse, com gestos e palavras, clericalmente, o que também produziu muitos risos. E a partir dali nosso entendimento e amizade foram como nos velhos tempos. Sempre marcado pelo respeito e pela colaboração espontânea. Já disse e reitero: minha ligação com nosso Emmanuel se perde na poeira dos sóis... E sempre agradeço ao Pai por isso...

- Houve algum perigo do Prof. Rivail não levar a cabo a missão a que estava destinado? E se ele tivesse se sucumbido e não conseguisse atender ao programa?

- Sim. Havia o risco. Não era uma tarefa pronta, tinha que ser edificada. Como em toda postulação humana é preciso superar obstáculos, barreiras, medos e fraquezas. Mas todos nós confiávamos na capacidade daquele espírito já tão experimentado e com tantas conquistas. Mas, creia, foi um trabalho que exigiu dele muito empenho, superação, determinação e, sobretudo Fé. Essa Fé foi alimentada pelo altruísmo, pela entrega total, pela autêntica vitória, que é a do indivíduo sobre si mesmo, encetada por nosso querido Codificador. Ele, cuja meta sempre foi o Roteiro de Luz traçado pelo Divino Mestre, certamente superou todas as expectativas e cobriu todas as necessidades para trazer a lume o Cristianismo Revivescido, O Paráclito Consolador. Os desafios foram gigantescos, mas nós sabíamos que ele conseguiria romper do outro lado. Se por quaisquer desventuras ele não tivesse conseguido levar a cabo essa missão que foi delegada por Jesus, não sei quem seria o substituto, e nem cogitei dessa hipótese, pois, tínhamos plena convicção de que ele o conseguiria. Certamente a Providência Superior teria as maneiras de continuar o processo, que está acima, sempre, das falibilidades ou limitações dos indivíduos ou de grupos. Mas alimentamos a confiança em Deus e hoje vemos que o caminho trilhado só nos enche de alegria e felicidade, porque ele tem sabido desbravar, com sabedoria, e principalmente com Caridade, os revoltosos, íngremes e intrincados desfiladeiros da ignorância. Graças a Deus.
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