A Massa Falida da Usina do Município de Catende, agora Cooperativa Harmonia, perpetua as desvantagens e mazelas já conhecidas há séculos no processo produtivo sucroalcooleiro, sob o manto de uma cooperativa articulada de maneira venal entre o governo e alguns privilegiados que compõem sua diretoria. A forma promíscua que se verifica nos atos da cooperativa, garante o seu sucesso em cima da fome e da desgraça do camponês, pseudo-cooperado.
Pode-se assegurar que a cooperativa, na acepção do
instituto jurídico, não existe. Conquanto, o termo "Harmonia" é risível
e contraditório, em face da realidade do pensamento divergente que
domina os associados insurgentes, que anseiam por melhores condições e
fazem da discordância o móvel para a reação.
No município
de Catende e adjacências são mais de 3 mil camponeses que não encontram
condições de sair do sistema, ainda que padecendo a opressão dos
dirigentes da Cooperativa. A urgência das necessidades diárias das
famílias faz com que sucumbam à precariedade das condições de trabalho
nos engenhos recebendo, quando recebem, um repasse financeiro
insignificante, pois na maioria das quinzenas o recebimento é por meio
de uma autorização no valor de R$ 105,00, para troca em suprimentos da
cestas básicas em mercados e armazéns da região.
São esses ínfimos recursos das cestas somados com os recursos dos
parcos rendimentos de aposentados e pensionistas do INSS, além do
clientelista bolsa esmola, que movimentam o comércio e a economia local.
A pobreza grassa naquele sertão nordestino, remetendo o observador ao
ciclo do açúcar do século XVII, que permanece vivo, enquanto os
políticos locais, a Federação dos Trabalhadores na Agrigultura do
Estado de Pernambuco-FETAPE, o MST, o PSB e administradores da
Cooperativa se beneficiam de altos salários equiparados aos de
executivos de grandes empresas de centros urbanos do Sudeste e do Sul
do país.
A necessidade dos camponeses se insurgirem contra a situação opressora
na qual se encontram, a fim de progredir em conquistas capazes de os
retirar do absoluto sofrimento, esbarram na criminalização dos
movimentos populares, ação coordenada e difundida pelo latifundiário.
Na versão das classes reacionárias, qualquer discordância ou movimento
popular dissonante, é antidemocrática e passível de penalização,
ameaças e intimidações autoritárias.
Cativeiro
Os movimentos populares contrários aos métodos do associativismo da
dita "cooperativa" são penalizados com a rescisão contratual e/ou a
exclusão do sistema cooperativo, cumuladas com o despejo e a expulsão
da residência que, no falido sistema, pertencem ao acervo da
Cooperativa.
Os trabalhadores estão perdendo o medo de
discordar e promovem ações destinadas à retomada da Cooperativa em suas
mãos para que eles, os camponeses, no caso os donos do meio de
produção, dirijam o próprio destino e assumam suas unidades de terras e
façam a destinação que melhor lhes convierem. A monocultura já está
exaurida, compromete todo o ecossistema, não transfere benefícios à
coletividade, os preços praticados pela Cooperativa Usineira não
atendem aos trabalhadores rurais contratados e são aviltantes para os
trabalhadores subalternos cooperados, o preço é manipulado à revelia do
mercado, para atendimento dos interesses pessoais da diretoria.
Nos meses de fevereiro e março de 2009 o pagamento aos trabalhadores
foi em cestas básicas fornecidas de R$ 105,00, ou seja, não houve
pagamento em dinheiro. A alegação da diretoria para pagamento em cestas
foi o fato de que nesses meses os valores dos vencimentos seriam
destinados ao pagamento dos financiamentos bancários, contraídos em
nome dos pseudos-cooperados, conforme deliberado por uma suposta
Assembléia.
A reclamação geral é que as decisões das assembléias são suspeitas
porque não contam com a participação dos trabalhadores cooperados e os
votos são manipulados pela diretoria.
A situação dos financiamentos é a seguinte: os trabalhadores são
pressionados pelos diretores, capitães, cabos, entre outros
representantes da Usina/Cooperativa, para assinarem um documento
denominado DAP (Declaração de Aptidão do Pronaf) para sacarem no Banco
do Brasil um valor de R$ 12.000,00, que são destinados aos cofres da
Cooperativa Harmonia, sob o compromisso de que as parcelas mensais
serão quitadas através dela, com o dinheiro do trabalhador cooperado.
É também inexplicável juridicamente a situação de liberação de créditos
de financiamentos de programas da reforma agrária. Pásmem! Os
empréstimos são retirados em nome do trabalhador pseudo-cooperado e
repassado quase na totalidade para a diretoria da Cooperativa com o
compromisso vazio de quitar as parcelas mensais com o fruto do trabalho
de todos. As dívidas contraídas em nome dos trabalhadores chegam à
cifra de R$ 60 milhões.
Semifeudalidade nua e crua
Os engenhos, como são conhecidos os módulos de plantações de cana, são dotados de algumas moradias para os trabalhadores, antes meeiros e agregados. Agora, depois do "assentamento" em face da desapropriação efetivada pelo INCRA, imaginava-se de propriedade dos trabalhadores assentados, o que é um ledo engano. Os camponeses permanecem sem a sua individualização e padecendo em barracões precários e, inclusive, sem latrina, ou seja, as necessidades fisiológicas são feitas literalmente no mato. Tal como no século XVII.
A nova face do latifúndio
A posse das terras permanece toda nas mãos da Cooperativa, que
mantém empregados e prepostos em todo e qualquer engenho que faça parte
da Usina. Os valores foram repassados para a Massa Falida da Usina
Catende, estão depositados no Juízo da Falência na Vara Cível do
Recife/PE, enquanto a legislação prevê assentamento em lotes ou glebas
para cada um dos trabalhadores assentados. Assim, não existe a
individualização dos módulos, como manda a lei. Os camponeses
"assentados" permanecem "sem terras". Em evidente esbulho, quem
efetivamente explora todos os engenhos é a Cooperativa com os seus
mandatários e prepostos, com pulso firme e tirania, sob intimidações e
ameaças de toda ordem, não admitem o plantio de qualquer cultura que
não seja a cana-de-açúcar.
Pergunta-se: se o assentamento é
legitimo e atende aos termos da lei, por que é negado o direito do
camponês ter seu corte e escolher a cultura que queira e lhe é imposto
apenas o plantio da cana?
E tem mais: Não é possível conseguir um financiamento pessoal agrícola
no Banco do Brasil S/A sem a anuência da Cooperativa Harmonia. A
denúncia dos trabalhadores é de que existe a exigência da aprovação dos
diretores da Usina/Cooperativa para a aquisição do empréstimo, através
de formulário fornecido pelo gerente do banco.
O modelo maquiavelicamente festejado pela propaganda, como de gestão
"socialista" implantado no município de Catende e região depois da
falência da Usina Catende, está fadado ao fracasso posto que mantém
suas balizas na urgência da fome das famílias e na disseminação da
injustiça e da pobreza.
Nesse cenário abrem-se diversas janelas para os oportunistas de plantão
com as políticas assistencialistas dos programas eleitoreiros das
gerências Federal e Estadual, cada um com maior voracidade que o outro
se arvora sobre as liberações de cestas básicas e de verbas dos "bolsas
esmola" para o enriquecimento próprio. Certo é que os políticos e
administradores da Usina desfilam na comunidade, em evidentes indícios
exteriores de riqueza, com carros, motos, casas com banheiros luxuosos
e roupas elegantes adquiridos com os repasses de toda ordem, enquanto
produz num território desolador da monocultura dos canaviais, pobreza,
desgraça, fome, miséria, doenças e infelicidade nos lares dos milhares
de camponeses pobres e suas famílias.
A segunda viagem
No mês de agosto de 2009, tivemos a grata satisfação de visitar
novamente o interior do estado de Pernambuco para participar,
juntamente com Osmir Venuto, Presidente do Sindicato dos Trabalhadores
na Indústria da Construção de Belo Horizonte, entre outras
personalidades, inclusive vários estudantes da região e da cidade de
Recife, no Seminário sobre a Criminalização dos Movimento Camponês, em
uma escola pública de Catende.
Na oportunidade, além da
participação no concorrido Seminário, tivemos o prazer de tomar parte
em várias reuniões, inclusive de avaliação, na sede da Liga dos
Camponeses Pobres do Nordeste, no município de Catende. Pudemos
testemunhar o alto nível de organização dos trabalhadores. Osmir
Venuto, durante a sua intervenção no encontro, fez a entrega aos
trabalhadores rurais da "Estação Total", popularmente chamada de
Teodolito, equipamento utilizado para medições de terra e levantamentos
topográficos.
O aparelho é uma verdadeira conquista do movimento camponês da região,
pois com ele pretende-se multiplicar os cortes populares e acelerar os
assentamentos.
Sempre com a presença dos comprometidos companheiros da Liga no
Nordeste e lideranças dos camponeses, visitamos, também, o Assentamento
José Ricardo, em Riachão, no município de Lagoa dos Gatos, onde
participamos de Assembléia Popular e observamos plantações de variadas
culturas, entre elas, milho, feijão, macaxeira, mandioca, banana,
hortaliças, frutas e legumes, entre outros cultivos, que indicam
fartura, em contraste com a monocultura da cana.
O envolvimento dos trabalhadores com a causa da conquista da terra para
quem nela trabalha está em constante evolução pelo que se pode
constatar, tanto pelas observações quanto pelas pesquisas entre
camponeses e seus familiares. A Escola Popular é um exemplo concreto de
conquista popular e da eficácia da mudança que se pretende.
O nível de satisfação com os resultados das ações da Liga pode ser
medido pela maior participação dos camponeses e pela simpatia e
aproximação de outras lideranças locais nos movimentos pela tomada da
terra e pelo crescente combate ao modelo pseudo-cooperativo da Usina
Catende e contra a exploração praticada nos vários engenhos.
A intensidade da luta tem transformado a região e incomodado, até,
outros movimentos não legítimos e descomprometidos com a revolução
agrária, apesar de se denominarem "organizações de luta pela terra". As
intervenções da Liga dos Camponeses Pobres do Nordeste são
intensificadas também no estado de Alagoas, onde o latifúndio com
plantações de cana-de-açúcar parece alcançar todo o território do
Estado.
Em Alagoas, passando pelo entorno de Maceió, avistando um imenso e
horroroso lixão a céu aberto, seguimos para reunião com lideranças de
trabalhadores e assembléia geral dos camponeses acampados à margem da
rodovia, em uma região suburbana de Maceió, na luta por terreno para a
construção de suas moradias.
Nesse acampamento da Liga, os trabalhadores travaram uma luta árdua
pela conquista da terra e resistiram à ordem judicial de desocupação.
Naquele dia os trabalhadores estavam de prontidão, aguardando o Oficial
de Justiça e a força policial para o cumprimento da ordem. A decisão da
assembléia foi a de resistir até quando tiverem forças, mostrando que
os trabalhadores e trabalhadoras estão firmes e determinados na defesa
de seus interesses.
De volta a Pernambuco, nos dirigimos ao município de Palmares e fizemos
visita formal no presídio estadual ao camponês militante Fábio Paraíso
da Luz, para avaliar as possibilidades jurídicas de requerer a
progressão de pena para a liberdade.
Das ações efetivas da Liga dos Camponeses Pobres, e vistas com
satisfação pelos nossos próprios olhos, pode-se contar que no Engenho
Riachão ocorreu o chamado "Corte Popular", com a individualização e
entrega das parcelas do antigo latifúndio para os agricultores e
agricultoras que já semearam as suas safras, aliás já existe a
comercialização da produção.
Existe o anseio de edificar uma vila urbanizada numa área da antiga
fazenda, com sessenta e oito moradias no regime de mutirão.
Para tanto, foi apresentada a experiência de mutirão para a construção
de moradias para trabalhadores de Belo Horizonte, Vespasiano e Nova
Lima, em Minas Gerais, em parceria com a COHAB/MG.
Nossa ação de solidariedade rendeu bons frutos e decisões importantes.
Da união entre o campo e a cidade deverão sair propostas que visem a
ampliar as conquistas para ambos.
A apresentação de um dossiê sobre todas as irregularidades – não só da
Usina como também das condições dos camponeses sem terra e dos
trabalhadores sem moradia – às autoridades e também encontrar uma forma
eficaz de fazer chegar à impressa nacional.
Concluindo, reafirmo a satisfação de encontrar firme a mobilização dos
camponeses do Nordeste através da coordenação dos valorosos
companheiros da Liga dos Camponeses Pobres, organizados para avançar e
conquistar terra para plantar, encerrando o ciclo do arcaico modelo
agrário brasileiro.
_______________________
*Dr. José Júlio é advogado do Sindicato dos Trabalhadores na Indústria da Construção de Belo Horizonte e Região.