Na hora da mutação: fora aos espectadores?

“A procura crescente por automóveis elétricos  implica o recurso a centrais de carvão e a gás, como apoio às centrais nucleares, como fonte de energia”, declarou recentemente uma jornalista francesa. Por que não considerar a alimentação das baterias através de energia solar disponível nos pontos de carregamento das baterias? Ou a construção ou adaptação de garagens das habitações? “O carro elétrico, uma falsa boa ideia? Se parece uma das melhores soluções para reduzir as emissões de CO2 no mundo, as conclusões de um relatório destacam que a produção e utilização deste tipo de veículo não está isenta de consequências sobre o consumo de energia”. Assim se inicia um artigo datado de novembro, de uma jornalista francesa (que assina como S.O). Mais uma oportunidade perdida para a mídia, que poderia ser a primeira a remar contra a maré de soluções fáceis, na direção de uma mutação radical. E outra semente de influência poderosa desperdiçada por insistir na comunicação de soluções que não abandonam o mindset que nos arrastou para este cruzamento.
Considerando estimativas relativas à substituição total do parque automóvel por veículos elétricos, os fatos apontam para um aumento de consumo de eletricidade na União Européia, na ordem dos quinze por cento. O estudo da Eurelectric (Associação dos Produtores de Eletricidade da União Européia) realizou-se em 2009.  Até aqui, tudo bem. Se bem que há poucas dúvidas sobre o valor acrescentado de questionar especialistas sobre a viabilidade de uma planificação de um impacto neutro a nível de emissões de CO2 para a utilização de carros elétricos. E sobre as vantagens: ausência de ruído na cidade, possibilidade de abrir janelas e respirar ar puro, dando uma folga ao ar condicionado e à degradação dos monumentos e da nossa saúde... Se pretendemos fazer parte da “transformação” ou “mutação” anunciada, cabe, antes de mais nada, à perspectiva da mídia conter as sementes de outra mentalidade...

mídia: mesma fórmula = mesmo resultado
“Pode ser por muito pouco tempo, mas as chaves do futuro ainda nos pertencem,” declarou, recentemente, o escritor e jornalista francês Nicolas Hulot, na ocasião do lançamento do filme da sua autoria (em parceria com Jean-Albert Lièvre): “O síndrome do Titanic”. É certo que as transformações do planeta e a atividade humana não abrandam. Paralelamente, permanece filtrada a mensagem para convencer que “a mutação é incontornável e que temos tudo a ganhar se dirigirmos a orquestra em vez de nos submetermos à mesma”, como explica Nicolas Hulot. Como desejar que milhões de leitores, espectadores se “convertam”, passando a agir no sentido de “consumir sem consumir o mundo no qual vivemos” (Akatu) – assim como os Governos – quando a mídia insiste na promoção da “velha mentalidade” (mesmo que inconscientemente)?
Não seria tão grave caso o papel da mídia não fosse, em todas as suas formas, oferecer informações corretas e consolidadas sobre o que é a nova economia. E não fosse “importante informar e fundamental oferecer o conhecimento necessário para a transformação”, como sublinha Dal Marcondes, jornalista e editor da Envolverde (revista digital sobre meio ambiente e desenvolvimento sustentável).

De espectadores a atores
Atravessar o nevoeiro e por fim ao ruído da mensagem, que Nicolas Hulot designa tão brilhantemente como “excesso tóxico” -e que retrata no seu filme-, passa, inevitavelmente, por nos tornarmos atores: “abandonar “o culto do ‘sempre mais’, da ‘obsessão pela quantidade’, da ‘criação de necessidades que não existem’, da ‘ideologia da possessão para existir’ e ‘do capitalismo como modelo econômico dominante’”. É uma oportunidade para a humanidade se reencontrar, “devolvendo sentido ao progresso”, refere o homem que carrega nos ombros um combate, há mais de duas décadas. A comunicação, face aos ângulos mortos do público em geral, do Governo Francês, da mídia, tem sido a sua “espada”, numa luta incansável de promoção para nos entregarmos a este momento de mutação.

“Yes, we can”
Como? Veja-se o recente caso da visita de Obama à China: “não restam dúvidas de que o elevado endividamento dos EUA e a poupança excessiva da China contribuíram de forma decisiva para que se criassem as condições para a presente crise internacional”, como declara o jornalista português Sérgio Aníbal (consulta a 17.11.2009 - 15h35, do site do jornal Público). Nem mesmo o otimismo e a eleição do mais recente Presidente dos Estados Unidos – que contribuiu com um sinal inequivocamente positivo de confiança- poderia ser apontada como solução isolada. Todos nós, especialmente no mundo ocidental, temos sido cúmplices ao adotar o “american lifestyle”.
Eis a deixa da mídia e dos atores: o quarto poder poderia ser aliado onde são encontradas lacunas por parte dos Governos e quando os interesses econômicos falam mais alto: ao apontar alternativas sustentáveis aos consumidores: para quem tem opção, parar (ou diminuir) o consumo de produtos produzidos na China, enquanto as condições de trabalho, de segurança e de qualidade não se assemelharem às da União Européia, sobretudo quando se trata de marcas de prestígio (ainda é mais grave).
Procura-se reequilíbrio na economia mundial do pós-crise
Informar incansavelmente que grande parte do desemprego na Europa se deve à deslocalização de empresas e à importação de produtos com custos extremamente reduzidos, devido ao baixo preço de mão-de-obra na China (que frequentemente enfrentam condições de trabalho miseráveis) e pela generalização de desrespeito por normas impostas noutros países (nomeadamente, a nível de prejuízo para a saúde do utilizador);
informar que, em alguns casos, a perda de identidade está em causa: no Santuário de Fátima, em Portugal, por exemplo, todos as Santas são made in China.
O cenário repete-se em qualquer grande cidade (Nova Iorque, por exemplo) onde decidamos adquirir um souvenir; informar que ao adquirir produtos locais (não necessariamente do país de origem, mas próximo), o impacto ambiental é menor e gerará mais emprego se for nacional;
informar que basta abdicar de comer carne durante alguns dias por semana (e, idealmente, prolongar esse período), para ganhar em saúde e reduzir em impacto ambiental. A mesma fórmula aplica-se aos pacotes de cereais (que utilizam, à semelhança da carne, toneladas de água na sua produção) e a espécies em vias de extinção, como o atum e o bacalhau.
Trata-se, agora, de “ganhar consciência de que chegamos ao fim de um sistema e que devemos encontrar um que o substitua -baseado na partilha, em detrimento da competição”, como não se cansa de repetir Nicolas Hulot.
A mídia tem um enorme poder, assim como os consumidores. Resta informá-los de que basta "começarem a fazer o que é necessário, depois o que é possível para, de repente, fazerem o impossível." Até São Francisco de Assis o sabia no século XIII. Não será já tempo de voltar às origens e da mídia recuperar o seu papel de vanguarda?

* MSc Design for Sustainability (Cranfield, Reino Unido), especialista em pesquisa e comunicação das melhores práticas editoriais e de gestão nas áreas de sustentabilidade e autora do livro “sustentabilidade na mídia: o poder de (in)formar”

(Envolverde/Revista Idéia Socioambiental)

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