A sociedade não apóia a conservação
Crianças no Instituto Rã-bugio, perdendo o
preconceito e aprendendo sobre os anfíbios.
(Foto: Germano Woehl Jr.)
Lembro-me de certa vez, em janeiro de 2001, quando estava fotografando anfíbios na zona rural de Itaiópolis (SC), num projeto patrocinado pela Fundação O Boticário de Proteção à Natureza, e fiz um teste com um agricultor, se tinha algum sentimento pelos animais que morreram num desmatamento recente feito por ele.
Eu havia encontrado anfíbios de matas bem preservadas se reproduzindo numa área alagada no meio da plantação de soja deste agricultor. Nunca foi tão fácil encontrar aquelas espécies de anfíbios para fotografar. Geralmente ficam bem escondidos enquanto coaxam, mas no meio da soja eram obrigados a ficarem expostos. Isso me chamou a atenção. Achei muito estranho aquelas espécies estarem ali. Então, descobri que aquela área tinha sido desmatada e destocada havia 3 anos. E que ali era um banhado de uma nascente que foi aterrado. Estava cheio de girinos nas poças entre os pés de soja já amarelados devido à água que jorrava.
Mostrei a ele os girinos e falei de maneira simples sobre as questões éticas, do direito à vida de outros organismos, enfim, das conseqüências daquele desmatamento, que não poupou nem as nascentes. Meio sem jeito ele achou uma saída dando a seguinte resposta: "Os bichos se mudam prá lá". E me apontou uma direção onde a plantação de soja se perdia no horizonte. Ou seja, este lugar que ele apontou não existia mais. O lugar onde estávamos foi o último a ser destruído e era o fim da linha para aquelas criaturas sobreviventes e outras que já não compartilham mais o planeta conosco.
Desmatamento nas cabeceiras do Rio Itajaí,
na localidade Serrinha do Itajaí, em Itaiópolis (SC).
(Foto: Germano Woehl Jr.)
Não desisti. Cheguei a convencê-lo a não aterrar e drenar uma parte do banhado que ele havia usado para o bota-fora dos cepos das árvores da destoca, que já estavam decompostos. Pois ele havia revelado seus planos de aproveitar também aquela área nos próximos dias, passando o trator por cima de tudo. Então, comprometeu-se a poupar aquele pedacinho do terreno. Por cinco anos consecutivos, verifiquei que ele estava cumprindo a promessa. Porém, no ano passado, o banhado foi detonado e realizada várias obras para melhorar a drenagem daquele ponto do terreno, ou seja, para secar definitivamente as nascentes.
Eu nunca tive a ilusão de que a missão de defender a natureza seria fácil. Mas fui pego de surpresa ao encontrar tão poucas pessoas que valorizam a conservação da natureza, se orgulham e têm paixão pela extraordinária biodiversidade brasileira e se preocupam com o futuro das nossas matas preservadas. Dificilmente estas matas vão escapar da devastação se não mudarmos o rumo da história da humanidade, que há milhares de anos destrói tudo por onde passa.
Minha geração pegou o bonde andando com um movimento ambientalista que parecia estar já bem maduro aqui no Brasil. Então, eu achava que boa parte do caminho já havia sido feito e já tínhamos uma massa crítica na sociedade brasileira para salvarmos o que sobrou da Mata Atlântica e a Floresta Amazônica. Foi aí que me enganei. Achei que o jogo estava ganho. Eu havia entrado só para bater uma bola e ampliar o marcador, se possível, para consolidar a conquista. Mas que nada. Em que fria eu fui me meter! Entrei na cova dos leões achando se tratar de uma loja de bichinhos de pelúcia.
Não imaginava que fosse tão perigoso defender a natureza, ou seja, combater desmatamento e a sociedade reagisse tão friamente a esta verdadeira tragédia da humanidade, que é a aniquilação de ecossistemas inteiros, repletos de formas de vida. É frustrante constatar que estamos ainda na estaca zero em termos de conscientização da sociedade. Tem sido um grande erro ignorar o óbvio: só a sociedade pode decidir se quer ou não salvar o que resta de nossas matas.
As últimas áreas da Mata Atlântica ou a Floresta Amazônia são atacadas sem piedade em qualquer cenário econômico. Com ou sem crise, sempre há uma boa justificativa para aniquilar com o que resta de nossas matas. Em época de prosperidade, há demanda e recursos para investimentos na expansão agrícola, pecuária, silvicultura, infra-estrutura (estradas, hidrelétricas, residências etc.) e as matas preservadas sempre estão no meio do caminho. Em época de crise, as matas são atacadas para gerar renda e sustentar uma população que cresce com uma taxa explosiva. Então, nossas matas com toda a riqueza de biodiversidade e que protegem os recursos hídricos transformam-se em carvão, lenha, madeira e pastagem.
Atividades de interpretação de trilhas na RPPN Santuário Rã-bugio
com estudantes da Escola Municipal Dr. Abdon Baptista, de Joinville (SC).
(Foto: Germano Woehl Jr.)
E ai se um fiscal do Ibama ou da Polícia Ambiental punir o infrator. Todo mundo cai de pau em cima, porque estão ferrando um pobre coitado que cometeu o crime ambiental por necessidade para dar o que comer a sua pequena família, de 12 filhos. Que se lasquem com as enchentes e a falta de água potável as milhares de pessoas, muitas mais miseráveis do que este infrator, que vivem nas metrópoles. Nestes casos dá para pôr a culpa na própria natureza, que ninguém vai chiar. A sociedade aceita porque não tem valores para compreender a gravidade que é destruir um ecossistema. Não se dá conta que a perda é para sempre.
Criar estes valores na sociedade é a missão do Instituto Rã-bugio para Conservação da Biodiversidade, organização não-governamental que minha mulher e eu fundamos após vários anos atuando como voluntários em escolas, para ensinar e sensibilizar as crianças e adolescentes sobre a rica biodiversidade da Mata Atlântica e as ameaças de tudo isso desaparecer para sempre. Se alguém ainda tem dúvida da necessidade do projeto que realizamos nas escolas, não deverá ter mais, com a história que conto a seguir.
Muitos jovens e adolescentes que participaram de nossos projetos nos últimos dez anos costumam nos visitar, mandar e-mails ou telefonar. Na semana passada, recebemos a visita em nossa sede de uma adolescente de Jaraguá do Sul (SC), que era criança quando participou das atividades de interpretação de trilha na Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN) Santuário Rã-bugio. Contou-me, indignada, que há poucos dias apareceu, nas proximidades de sua casa, num bairro de Jaraguá do Sul, um sapo empalado com um palito de picolé. O animal ainda estava vivo, mas agonizava.
Não há limites para a crueldade dos seres humanos. Isso nos deixa aterrorizados e envergonhados. Por outro lado, é animador, dá muita motivação e esperança saber que estamos no caminho certo, pois algumas pessoas já começam a se indignar ao encontrarem sapos empalados com palitos de picolé. Quando estas pessoas começarem a se indignar também com os milhares de animais que são mortos todos os dias, queimados ou de fome, na destruição de nossas matas, acho que vamos conseguir salvar alguma coisa.
Fonte: O Eco.