Cinismo e sustentabilidade

As corporações líderes em sustentabilidade, quase todo mundo conhece. Sobre as esforçadas, esta coluna apresentou, na semana passada, um breve roteiro de critérios para distingui-las no meio da multidão. A maioria dos leitores parece mesmo mais interessada em identificar as empresas cínicas, de longe a categoria mais visada e controversa.  Em relação a elas, demonstram uma preocupação comum: não serem presas fáceis de um discurso bem engendrado que venda publicamente práticas sustentáveis que a empresa nunca teve nem tem intenção de adotar.

De acordo com o dicionário Aurélio, cínico é o sujeito sem escrúpulos, hipócrita e oportunista. Segundo a classificação aqui adotada, empresas cínicas são as que se dizem sustentáveis sem fazer o mínimo esforço para tanto. Não raro, sequer sabem o que significa o conceito, menos ainda os desafios de mudança que ele sugere. Também não parecem muito dispostas a saber, até porque, escravas de um modelo mental focado no bottom line, andam ocupadas demais em rezar a cartilha do lucro de curto prazo para acionistas nervosos. Ainda não pararam para pensar em seus papéis socioambientais. Partilham da doutrina de que, a despeito de gerarem externalidades, não cabe aos negócios assumir o que é responsabilidade dos governos e da sociedade civil.
Para elas, sustentabilidade consiste em assunto aleatório, uma filosofia incompatível com negócios e, pior, um custo adicional que vai resultar em queda de rentabilidade. Capitaneadas por líderes pragmáticos, com o couro endurecido pelas batalhas de mercado e orgulhosos de seus feitos financeiros, elas acreditam no falso dilema de que não se pode ser ao mesmo tempo sustentável e rentável. Mesmo diante das evidências produzidas pelo próprio mercado de que o tema constitui ativo intangível em alta e valor crescente para os negócios.

Da porta para dentro, ironizam a importância conferida ao tema e os líderes que o defendem, alegando que, em vez de salvar o mundo, eles fariam melhor se dedicassem o seu tempo a cuidar exclusivamente de seus negócios. Da porta para fora, ainda que sem entusiasmo, adotam um discurso de apoio sob o argumento de que representa uma condição imprescindível para pensar e fazer negócios no mundo de hoje. O que as move é, a rigor, a conveniência de incorporar ao discurso o que valorizam os consumidores, investidores e mercados. Como, no entanto, sustentabilidade é, para elas, apenas um elemento retórico, são sustentáveis até o capítulo um.

Como então não confundi-las com as empresas esforçadas? Basta observar, nas entrelinhas, alguns sinais característicos. Embora utilizem a palavra sustentabilidade, com razoável desenvoltura, não chegaram ainda nem ao estágio das práticas de responsabilidade social empresarial (RSE). Eventualmente, possuem uma outra prática. Na maioria dos casos, encontram-se, no máximo, no estágio da cidadania corporativa. Satisfazem-se em ter um ou dois projetos sociais, quase sempre simplórios, pouco transformadores e baratos, de preferência custeados com recursos de leis de incentivo fiscal. Como não dispõem de nenhuma outra ação de RSE, concentram-se apenas em divulgar os seus projetos. Mas, ao contrário do que possa sugerir, normalmente não o comunicam de forma ostensiva, preferindo as ações voltadas para formadores de opinião às de propaganda de massa. Além da questão custo, pesa também na comunicação mais segmentada a idéia de não se expor tanto: uma superexposição pode gerar resultados contrários de imagem a partir de um questionamento público sobre outros compromissos socioambientais que elas não têm nem querem ter.

Porque adotam apenas algumas práticas, essas empresas não possuem políticas claras, não se pautam por diretrizes e indicadores objetivos, não têm planos de ação e raramente publicam relatórios. As que os elaboram, limitam-se a produzir meros relatos vazios do que consideram ser seus compromissos socioambientais. Descuidadas, nunca atualizam o link Responsabilidade Social de seus sites, por absoluta escassez de fatos. Cínicas, muitas vezes divulgam como atos de altruísmo aquilo que são obrigadas por lei a fazer, como a contratação de pessoas com deficiência ou a adoção de mecanismos de redução de impacto ambiental. Pouco transparentes, dialogam mal com os seus stakeholders. Não avaliam os impactos de suas atividades em suas vidas. A atenção é exclusivamente dirigida aos acionistas.

Já que o tema não decorre de crença e convicção, mas da apropriação de um discurso beatificado pelo mercado, os líderes não sabem falar sobre sustentabilidade. Discursam o suficiente para convencer que o conhecem. E quando o fazem, são superficiais, abusam das frases feitas, de erudição de almanaque, de idéias extraídas de orelhas de livro ou de cenas do filme Verdade Inconveniente, de Al Gore. Espremendo-se o seu texto, extrai-se nada.

Não há modo mais eficaz de identificar uma empresa cínica, no entanto, do que conversar com um de seus funcionários ou parceiros. Como convivem no dia-a-dia com as corporações, ninguém melhor do que eles para identificar as contradições e incoerências entre discurso e prática. 

* Ricardo Voltolini é publisher da revista Idéia Socioambiental e diretor da consultoria Idéia Sustentável. ricardo@ideiasustentável.com.br


(Envolverde/Idéia Socioambiental)
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