AS NOSSAS CIDADES

A primeira realidade de cada um de nós, a cada manhã e ao longo de cada dia, está sendo depredada na orgia do que chamam progresso e constitui-se apenas privilégio das elites.

As ruas entupidas de automóveis e caminhões, as pessoas caminhando como zumbis por sobre faixas de aqui pode, aqui não pode, assim deve, assim não deve e o espetáculo sombrio e cinzento de cada dia no antidepressivo de cada noite.

Para acreditar que existe vida em todo o sangue que escorre em forma de suor, às vezes até imperceptível, ou mascarado por desodorantes que garantem 24 horas de proteção.

E quem nos protege contra a desordem urbana, o caos no trânsito, os transportes coletivos caros e inadequados, as políticas ambientais podres e que chamam de sustentáveis, as praças abandonadas e imundas, todo esse complexo que nos coloca em caixas de fósforos imensas, das quais só enxergamos as antenas e nos omitem as dores.

Na cidade de Itaguaçu, no Espírito Santo, estradas vicinais (que têm o importante sentido de permitir que se escoe a produção rural) custam 120 mil reais o quilômetro no projeto CAMINHOS DO CAMPO. Isso, em 2006. Hoje estradas custam de 2,3 milhões de reais a 4 milhões de reais. É impressionante como os custos oficiais superam inflação e tudo aquilo que possa representar aumento/propina. Batem no céu da propina e dos interesses de grupos privados.

MINHA CASA MINHA VIDA, em Juiz de Fora, MG, caixas na periferia e próximas a áreas consideradas de perigo, custam 70 mil cada e o prefeito estufa o peito para dizer que construiu mais de duas mil unidades. É necessário que alguém saia, para que o outro possa entrar. E mais que isso, como em Itaguaçu, uma baita auditoria para mostrar o tamanho da goela dos responsáveis pelo “progresso”.

E jorra por todos os municípios brasileiros essa monstruosidade chamada progresso.

À noite, antes do antidepressivo, a televisão coloca tudo em ordem, transformando esse tipo de indigência, na onírica visão hipnotizante do sonho repleto de pesadelos.

Centenas de tubarões isolam um cardume de sardinhas num raso qualquer de um oceano qualquer e as presas ficam à mercê dos predadores. São milhares, centenas de milhares de sardinhas, em algumas cidades milhões de sardinhas.

O dilema é se Bruno matou ou não a namorada e se a pena aplicada a criminosos/celebridades foi justa ou não.

E se o cara cismar de pular do alto de um prédio desses que tocam o céu?

Quinze minutos de glória e fama. Um corpo estatelado sobre a marquise, ou a calçada. Se salvo em tempo pelos bombeiros é vítima das vaias da multidão que esperava a tragédia como intervalo entre uma novela e outra, ou o início do Big Brother Brasil.
Quem quer que abra a sua janela pela manhã vai encontrar a cidade, nada além de um pedaço da cidade. Num desses filmes que mostra o mundo pós apocalipse nuclear – as guerras insensatas dos donos – mostram também o culto a um pequeno pé de tomate, uma espécie de esperança de um possível futuro.

E um monte de profetas profetizando a ira divina

A descoberta da vida começa na cidade. A perspectiva de vida está na cidade.

A escolha do que quer que seja está na cidade.

O sistema sob o qual vivemos transforma cidades em menores ou maiores labirintos sob o tacão de governos corruptos, de câmaras municipais desnecessárias, de especuladores imobiliários ávidos de horrendas construções cercadas de um falso verde por todos os lados e imensas grades protegendo a cidade da cidade.

E há sempre uma piscina para que se possa desfrutar do lazer confinado.

A agricultura familiar some na devastação do agronegócio.

A educação é quimera, a saúde é segundo os ditames da ordem instituída em imensos livros e segredos aos quais as pessoas não têm acesso.

Sobre a saúde Debord afirma o seguinte – “é fácil perceber que hoje a medicina já não tem o direito de defender a saúde da população contra o ambiente patógeno, porque isso significa opor-se ao Estado, ou apenas à indústria farmacêutica” (A SOCIEDADE DO ESPETÁCULO, DEBORD, Guy, Ed. CONTRAPONTO, Rio de Janeiro).

“A ciência da justificação mentirosa”, segundo o mesmo autor.

Ou, “a imbecilidade acha que tudo está claro quando a televisão mostra uma imagem bonita, comentada com uma mentira atrevida. A semi-elite contenta-se em saber que quase tudo é obscuro, ambivalente, montado em função de códigos desconhecidos. Uma elite mais fechada quereria saber a verdade, difícil de distinguir com clareza em cada caso particular, apesar de todos os dados reservados e de todas as confidências de que ela dispõe. Eis por que ela gostaria de conhecer o método da verdade, embora para ela esse gosto se revele, em geral, azedo”. O mesmo Debord.

O lazer do supermercado e das gôndolas cheias de atrativos, boa parte deles desnecessários, mas vitais para os armários guardarem a vida transformada em um petisco.

O resgate dos pássaros e das rosas, das flores que não conhecemos espalhadas pelos cantos, passa pela percepção que a vida em si só tem sentido e essência se livre dos passos apressados nos horários marcados, dessas figuras excelsas que “monstruam” a existência escoradas na repetição mentirosa em cada cidade, qualquer que seja o seu tamanho.

Em Istambul, anos atrás, num seminário sobre cidades e urbanismo chegou-se a conclusão que cidades como Rio, São Paulo, México, Pequim, são inviáveis, por não existir solução para os muitos problemas sempre crescentes que enfrentam. Toda aquela multidão à espera do sinal verdade é só uma solidão.

A faca e um corpo estendido canta Gilberto Gil.

E uma roda gigante.

Um moinho que esmaga pessoas.

O resgate das cidades é o início do processo de virar as mesas e reorganizá-las segundo o comum das pessoas. Jogando fora todo o apetite do capitalismo.

E antes, bem antes, que nos transforme, por completo, em bestas/feras silenciosas e desconfiadas.

É na cidade que se começa a revolução. Na soma das cidades que será possível construir um outro mundo.

Luta de sobrevivência.

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