Tribunal Especial da ONU para o Líbano: mais sectarismo e nenhum esclarecimento


Hicham Safieddine

O Tribunal Especial da ONU para o Líbano [ing. UN Special Tribunal on Lebanon (STL)] conta com o apoio internacional, mas não tem competência para implantar suas decisões e é visto por muitos libaneses como instrumento de forças estrangeiras.

A acusação formalizada pelo Procurador do Tribunal Especial da ONU para o Líbano Saeed Merza é o mais recente desenvolvimento dessa operação da justiça internacional, tão divulgado quanto controverso.

O parecer do Procurador da ONU, que acusa formalmente quatro membros do partido Hezbollah libanês pelo assassinato, em 2005, do ex-primeiro ministro do Líbano Rafik Hariri, gerará nova fase de confrontação entre o Hezbollah, por um lado; e todos os seus inimigos locais, regionais e internacionais, por outro.


O Tribunal Especial da ONU sobre o Líbano(STL sigla em inglês)) tem apoio internacional, mas não tem poder para implantar suas decisões e é visto como joguete de potências estrangeira pela quase totalidade dos libaneses

No plano interno, as tensões subirão dramaticamente. As forças pró-Hariri do Movimento 14 de Março receberam a acusação formal com festas e bravatas políticas. Ninguém duvida que o Hezbollah responderá. Há discurso já anunciado do secretário-geral do Hezbollah Hasan Nasrallah sobre o tema, que será transmitido por televisão no sábado 2/7.

Mas a acusação formal não levará à prisão de nenhum acusado nem alterará nem o  equilíbrio de poder interno, nem o isolamento do país no quadro dos desenvolvimentos regionais. Desde a criação, como comissão de investigação, logo depois do assassinato de Hariri dia 14/2/2005, o déficit de credibilidade do Tribunal só aumentou, sob acusações de interferências políticas e especulação desenfreada pelos jornais. O Tribunal sempre recebeu irrestrito apoio das potências ocidentais e o selo da autoridade formal da lei internacional, mas jamais teve nem as competências necessárias para executar suas decisões nem a indispensável isenção moral.

Na opinião de muitos libaneses, o Tribunal da ONU para o Líbano atua como mais um agente de violência.

O impacto da mais recente decisão do Tribunal pode ser mais bem avaliado no contexto do que fez no passado e no quadro legal do estado libanês – com a recente ascensão do Hezbollah e seus aliados ao governo; e se se consideram as profundas transformações pelas quais passa todo o Oriente Médio com as Revoltas Árabes, com especial atenção aos conflitos na Síria, cuja influência política no Líbano não pode ser subestimada.

Um conflito de narrativas

O Tribunal Especial da ONU para o Líbano é palco no qual muitos culpados têm voz e ninguém tem poder para decidir. A cobertura jornalística no ocidente nada faz além de papagaiar a narrativa oficial do próprio Tribunal, ou ‘vazada’ deliberadamente pelos juízes e magistrados, ou repetida pelas partes.

Mas quem se dedique a analisar a mídia local no Líbano percebe que a narrativa dominante no cenário internacional pouco tem a ver – e muitas vezes conflita abertamente – com o que se diz no front doméstico. São narrativas em que se digladiam ‘em rede’ as mais diversas fontes e cenários, nunca esclarecidos.

No plano internacional, as duas principais investigações feitas por jornalistas sobre o caso são a publicada pela revista alemã Der Spiegel, em maio de 2009, e a publicada pela rede CBC do Canadá em novembro de 2010. As duas matérias sugerem fortemente que o Hezbollah estaria por trás do assassinato de Hariri.

Segundo fontes do Tribunal da ONU citadas nas duas matérias, a investigação feita em 2007 por unidade especial das forças de segurança do Líbano teria descoberto uma rede de telefones celulares que teria sido ativada, operada e desmontada em sincronia com a cronologia e os locais do assassinato.

Nenhuma das duas matérias, contudo, faz qualquer referência ao fato de que a credibilidade dessas provas é extremamente fraca, dadas as muitas evidências de que a rede de telecomunicações comercial no Líbano sempre foi infiltrada por espiões israelenses.

Em julho do ano passado, a mídia libanesa informou que Charbil Qazzi e Tarek al-Rabaa, dois altos funcionários da cúpula da principal rede de telecomunicações comerciais que opera no Líbano, Alpha, foram presos e acusados de crime de espionagem a favor de Israel. O Movimento 8 de Março, liderado pelo Hezbollah, imediatamente argumentou que a prisão dos dois comprovaria que toda a rede de telecomunicações comerciais no Líbano estaria sendo controlada por Israel.

Em agosto, Nasrallah falou – manifestação que foi como um depoimento público – e acusou diretamente Israel pelo assassinato de Hariri. Além de expor a infiltração da rede de telefonia comercial, Nasrallah citou mais um suposto espião israelense e ex-oficial do exército libanês, de nome Ghassan al-Jidd, e provou que ele estivera na cena do crime pouco antes da explosão que matou Hariri. Nasrallah também exibiu um vídeo, que apresentou como material filmado pelo serviço de vigilância aérea de Israel, no qual se via um comboio no qual Hariri viajava, anos antes. Nasrallah solicitou formalmente que o Tribunal incorporasse aquelas provas circunstancias ao inquérito – o que o Tribunal, pelo que se sabe, não fez.

A contraofensiva comandada por Nasrallah não foi a primeira vez que o Tribunal enfrentou grave crise de credibilidade. Se agora a sentença foi proferida baseada em provas do serviço libanês de telecomunicações comerciais, antes de o Tribunal ser constituído, quando ainda era comissão de inquérito, a comissão trabalhou com testemunhos presenciais e provas oculares. Mas, daquela vez, o alvo da comissão era um aliado do Hezbollah: a Síria.

Testemunhas que implicaram oficiais de segurança da Síria e do Líbano levaram à prisão, por três anos, quatro generais dos serviços de segurança do Líbano. Várias testemunhas, depois, desmentiram os próprios depoimentos. Gravações de reuniões entre aquelas testemunhas chaves e Saad Hariri, filho de Hafik Hariri, que vazaram, acabaram por destruir o vestígio de credibilidade que ainda tivessem aquelas investigações e respectivas sentenças. O escândalo “das falsas testemunhas” não acabou sequer quando, pouco depois, os quatro generais libaneses foram libertados. Um desses generais está processando todos os que o acusaram e condenaram e encarceraram.

Jamil Sayyid, ex-suspeito e chefe das forças de segurança nacionais do Líbano também não tem dado descanso à Procuradora Danielle Bellemare, do Tribunal Especial da ONU, exigindo que lhes sejam entregues todos os arquivos que Bellamare usou como fonte da acusação que construiu contra ele, Sayyid, e que o levou à prisão depois revogada.

Esse emaranhado de procedimentos legais, em que o Tribunal da ONU sempre aparece como suspeito de má conduta, só tem feito minar cada dia mais a credibilidade do próprio Tribunal e oferecido munição para os que, agora, enfrentam nova acusação, pelo mesmo Tribunal e, dessa vez, baseada e provas ainda mais controvertidas que antes.

Documento vazado por Wikileaks e publicado pelo jornal libanês al-Akhbar lançou ainda mais suspeitas sobre a integridade de Bellemare e sobre sua posição não isenta.

Até agora, ainda não há sentença. O que há é acusação afinal formalizada, que o Tribunal da ONU ainda terá de julgar. Mas seja como for, ainda que o Tribunal consiga safar-se de todas as ações judiciais impetradas contra ele, e livre-se das acusações por erros judiciários, nem assim conseguirá superar as dificuldades da falta de meios para aplicar suas sentenças.

Tribunal “sem dentes” e arma política

Criado sob as regras do Capítulo 7 da Carta da ONU, e regido por um Memorando assinado pelo governo do Líbano, o Tribunal da ONU tem autoridade legal muito mais ampla que o próprio governo libanês. Mas não tem braço executivo para fazer cumprir decisões e depende integralmente de autoridades libanesas para a execução de suas sentenças. As autoridades libanesas, por sua vez, estão, elas mesmas, divididas entre lealdades conflitantes.

As forças internas de segurança, que descobriram a alegada rede de telefones celulares, são patrocinadas pelo Movimento 14 de Março de Hariri Filho, adversário do Hezbollah. E os serviços de inteligência do exército líbio, que descobriram a alegada rede de espiões israelenses, por seu lado, são intimamente associadas ao Hezbollah e seus aliados.

O Tribunal, portanto, se condenar os membros do Hezbollah agora já formalmente acusados, passará as sentenças para o Procurador Merza, que terá um prazo de 30 dias para prender os condenados. O Procurador ficará responsável também pela segurança e transporte do acusado, a partir do momento em que seja preso. Mas se, esgotado o prazo de 30 dias para que a sentença seja executada, os condenados não forem presos, a única medida que o Tribunal poderá tomar será divulgar o nome dos condenados, declará-los condenados revéis (ou fugitivos) e convertê-los em párias internacionais.

Do ponto de vista do Hezbollah, que já está classificado como “organização terrorista” por uma “comunidade internacional” muito mais poderosa que a ONU (Israel e os EUA), a ameaça de ter membros condenados por assassinato pouco altera a situação vigente. Em outras palavras: o principal acusado, hoje, pelo assassinato de Hariri, no Tribunal da ONU, é Mustafa Badr al-Din, que se acredita que seja o principal comandante militar do Hezbollah, posto que ocuparia em substituição a seu cunhado, Imad Mughnieh, assassinado em Damasco, na Síria, em 2008. Badr al-Din já é (e assim continuará, mesmo que venha a ser absolvido pelo Tribunal da ONU) um dos homens mais procurados em todo o mundo e vive sob a mais restrita clandestinidade.

A vulnerabilidade do Hezbollah ante essa nova acusação formal não é essa, é outra. O Hezbollah, que é movimento de resistência armada, pouco se incomoda com o que diga a lei internacional ou a ONU ou a ‘comunidade internacional’. Mas precisa muito, isso sim, de legitimidade interna, no quadro político libanês. Os líderes do Hezbollah consideram a lei libanesa sua principal frente de defesa contra os esforços de Israel e EUA, sempre empenhados em declará-los terroristas e párias, na comunidade mundial.  Por isso, em maio de 2008, o partido lançou campanha militar contra as forças de Saad Hariri, quando esse, então primeiro-ministro, fez aprovar lei que tornava ilegal toda a rede subterrânea de telecomunicações do Hezbollah1.

Em janeiro de 2011, a colaboração entre o governo de Hariri Filho e o Tribunal levou à queda do governo de Hariri – importante vitória política do Hezbollah.

A constituição, dia 13/6/2011, de um novo gabinete de coalizão, em que se reúnem o Hezbollah, os partidos seus aliados e Najib Miqati, visa, precisamente, a impedir que o governo do Líbano influencie decisões do Tribunal da ONU para o Líbano, como a acusação que acaba de ser formalizada. Ainda não se sabe exatamente como isso será feito, sem agredir os compromissos que o governo libanês assumiu com o Tribunal da ONU.

No discurso de amanhã, o mais provável é que Nasrallah reafirme as suspeitas do Hezbollah quanto à integridade do Tribunal; que defenda os membros do Hezbollah acusados e que rejeite a acusação, como acusação geral a todo o partido. Muito provavelmente, alertará contra os riscos de o estado libanês acatar as decisões do Tribunal. Com seus aliados no poder, o Hezbollah está a salvo de qualquer ação imediata do estado contra ele.

Mas as potências ocidentais e seus aliados locais não deixarão de condicionar o reconhecimento do novo governo à exigência de que obedeça e faça cumprir as decisões do Tribunal da ONU2 . Continuarão a trabalhar para que o isolamento que impõem ao Hezbollah estenda-se a todo o novo governo. Continuarão a incitar ao divisionismo sectário, continuando a apresentar o Hezbollah, que é partido de xiitas, como inimigo da comunidade libanesa sunita.

A retórica do Hezbollah, de apoio ao governo sírio, apesar da dura repressão contra manifestações populares, também tem contribuído para isolar o movimento entre o público árabe mais amplo.

Todos esses fatores contribuem para converter uma decisão inócua de um Tribunal sem dentes, em decisão que pode ter importante efeito político – usada como arma para aumentar o sectarismo e a polarização sectária no Líbano, que podem levar a confronto militar, no instante em que os conflitos se tornem mais agudos.

Enquanto isso, a verdade por trás do assassinato de Rafik Hariri continua tão inalcançável quanto antes de o Tribunal Especial da ONU para o Líbano ser criado, como se supunha, para desvendá-la.


Hicham Safieddine é jornalista em Beirute, especialista em questões do Oriente Médio.
Escreve regularmente para os jornaisToronto Star (Canadá), al-Ahram Weekly(Egito) e al-Akhbar (Líbano).
1/7/2011, 
Lebanon tribunal brings strife, not answers
Traduzido pelo Coletivo de tradutores da Vila Vudu

Notas de tradução

[1] Em 7/5/2008, depois de crise política que se arrastava há mais de um ano, o governo Hariri Filho tentou neutralizar toda a rede de telecomunicações do Hezbollah e demitiu o chefe da segurança do aeroporto de Beirute, Wafic Shkeir, acusado de ligações com o Hezbollah. O líder do Hezbollah Hassan Nasrallah disse que a decisão do governo era “declaração de guerra” e exigiu que o governo revogasse a lei. Militantes armados do Hezbollah ocuparam toda a área do aeroporto e de subúrbios de Beirute e houve combates com milícias que apoiavam Hariri, que deixaram 11 mortos e 30 feridos. Os militantes do Hezbollah entregaram o controle das áreas ocupadas ao Exército do Líbano, que forçou o governo Hariri a voltar atrás, a devolver o controle do aeroporto ao chefe demitido e a devolver ao Hezbollah o controle de sua rede de telecomunicações (com informações em: 2008 conflict in Lebanon).

[2] Já está acontecendo. Ver, por exemplo, notícia do jornal Haaretz de Israel, sobre o novo governo: “Mikati anunciou a formação do novo governo e disse que continuarão a trabalhar para “libertar as terras que continuam sob ocupação do inimigo israelense” (com informação da imprensa, em Haaretz, 13/6/2011, em: Labanon PM: New government to liberate land under occupation of “israeli enemy”)

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