Carta aberta: Por que os jornalões franceses odeiam Chomsky

Caro Noam,

Foi imenso prazer tantas vezes adiado, para seus muitos amigos e admiradores, vê-lo em Paris. Sei que foi cansativo, mas não pense que consumiu sua voz, para nada. Temo que lhe fique uma má impressão de certa mídia, que parece que “nada aprendeu e nada esqueceu”[1]. Mas parece-me que o tratamento estúpido que você recebeu, notadamente, de Le Monde, ap enas chama a atenção para a importância de sua visita e o profundo significado geopolítico que Chomsky tem na França.

Releve que eu deixe de fora seu campo primário de estudos, a linguística, nesses comentários. Mas tendo a crer que a animosidade que você despertou em alguns círculos franceses tenha menos a ver com linguística e mais com seu papel de proeminente crítico norte-americano da política externa dos EUA. Sim, sabemos que há outros críticos, mas Chomsky é, de longe, o mais conhecido em todo o mundo. Minha opinião pessoal é que esse papel – de símbolo virtual de crítica moral sistemática da política externa dos EUA – é a causa fundamental da campanha contra Chomsky na Europa, iniciada há mais de 30 anos.

Parece-me que os discursos eloquentes sobre o Cambodia e, depois, a defesa do direito do Professor Robert Faurisson[2] a expressar livremente seu pensamento[3], foram o início da campanha para desacreditar, na França, o principal crítico do imperialismo norte-americano. É argumento que tenho de por em contexto.

O final da II Guerra Mundial dividiu a Europa em dois blocos de países satélites das duas principais potências vitoriosas. Os métodos políticos da URSS tornaram óbvio para todos o status de satélite da Europa Oriental, sobretudo para os próprios cidadãos daqueles países, que viam bem a coerção que os mantinha unidos no bloco comunista.

No Ocidente, a riqueza dos EUA, a pronta cumplicidade das classes reinantes nativas e os métodos infinitamente mais sofisticados de persuasão política, dramatizando uma “ameaça soviética” em larga medida fantasiada, conseguiram convencer os países satélites de que todos seriam aliados voluntários dos EUA.
Deu certo e funcionou quase sempre, com poucas e temporárias exceções. A Suécia, que jamais foi nem ocupada nem libertada, teve momentos de genuína independência, sobretudo sob o governo de Olof Palme (cujo assassinato arrastou a Suécia gradualmente para os braços da OTAN). Nos anos 1960s, Charles de Gaulle deu importantes passos para readquirir, para a França, a independência política, sobretudo ao criticar a guerra dos EUA na Indochina e ao tentar estreitar relações com países do Terceiro Mundo. Mas foi movimento abortado pelos eventos de maio de 1968; e, depois da queda de Gaulle, implantou-se rapidamente um processo de normalização, para estabelecer e reforçar a hegemonia dos EUA na França, de uma vez por todas.

Claro que, precisamente porque a França foi cenário dos mais poderosos impulsos de independência, o processo de normalização teve de ser mais vigoroso.

Na vanguarda desse processo esteve a operação midiática em torno dos chamados “novos filósofos”, lançada em meados dos anos 1970s. Eu vivia em Paris, naqueles anos e vi o que aconteceu. Ataques a Chomsky foram parte crucial daquela campanha, construída para desacreditar o grande movimento internacional contra a guerra dos EUA no Vietnã (que seria campanha “ingênua” ou “dos apologistas do Gulag” etc.). Foi campanha política ampla e multifacetada, conduzida pela mídia, para afastar o público, sobretudo os mais jovens dos movimentos de esquerda, para longe do Partido Comunista, do Gaullismo social (Chaban-Delmas), da solidariedade com o Terceiro Mundo, em direção a pressupostos “direitos humanos” – que só seriam “direitos humanos” para os dissidentes nos países que se opunham aos EUA.

Os intelectuais do poder

O papel de intelectuais franceses naquele processo foi variado e sofisticado.
Para começar, a natureza e o papel dos “intelectuais do poder” é muito diferente, muitas vezes oposto, nos EUA e na França.

Nos EUA, os intelectuais do poder (os “novos mandarins”), e são numerosos, trabalham diretamente para o governo, nos think-tanks ou como conselheiros e editorialistas nas empresas jornalísticas. O “pensamento”, nesses casos, visa a reforçar o poder dos EUA no mundo.

Na França, a situação é praticamente oposta a essa, porque o real “poder” pelo qual trabalham os intelectuais do poder, não é a França, mas os EUA, considerados com o protetor indispensável para todo “o Ocidente”, Israel incluída.

Na França, os intelectuais que trabalham para o governo vêm tradicionalmente das melhores escolas e não raras vezes preocupam-se com interesses nacionais franceses. No plano privado, muitas vezes manifestam-se incomodados com a subserviência da França às políticas norte-americanas. Mas essas manifestações de incômodo raramente são visíveis para o grande público e o aconselhamento desses intelectuais tende a ser soterrado pelos interesses dos partidos e dos políticos.

De fato, na França, os verdadeiros “intelectuais do poder” são estrelas midiáticas, as quais, de um modo ou de outro, justificam a subserviência da França aos EUA. Para o velho “novo filósofo” Bernard-Henri Lévy, fascista é a “ideologia francesa”; e o povo e o governo franceses não merecem qualquer confiança. Assim, o principal objetivo político dos intelectuais do poder na França é tornar a França impotente, inserindo o país bem firmemente na Aliança Atlântica, na OTAN e na União Europeia.

Ao tempo em que os intelectuais do poder nos EUA tendem a ser nacionalistas pró-EUA, na França são essencialmente anti-França. Em histórias em quadrinhos e filmes, a classe trabalhadora francesa é pintada como monstros racistas. Desde o filme de 1969 “Le Chagrin et la Pitié”[4], o pêndulo afastou-se cada vez mais da celebração da Resistência francesa, para um discurso de autoflagelação por crimes contra judeus cometidos durante a ocupação pelos nazistas. Até a existência de Jean-Marie Le Pen e sua “Frente Nacional” contribui, já há 30 anos, para reforçar a atitude de oposição antinacionalista. Crítica justificada contra a União Europeia por fragilizar o tecido institucional do bem-estar social a favor do capital da finança globalizada é estigmatizada como nacionalismo francês inaceitável. O centro-esquerda dominante abandonou as questões econômicas e o antimilitarismo em favor de uma ideologia de direitos humanos mais afinada com o Dalai Lama (em relação à qual a França nada pode fazer) do que com a desindustrialização da França. A esquerda dos direitos humanos abandonou completamente a discussão da economia política, deixando-a entregue à União Europeia e à política militar da OTAN e ao comandante de ambas, os EUA.

De vários modos, os intelectuais do poder “humanitário” estão exemplificados no trabalho de Bernard Kouchner para promover a divisão da humanidade em três “Vs”: Vilãos, Vítimas e Vitoriosos Salvadores. Esse específico fatídico triângulo acomoda, como leito de Procusto, todos os grandes eventos mundiais, a começar, claro, pela II Guerra Mundial, como é hoje ensinada em quase todas as escolas: o drama de um Vilão (Hitler), das Vítimas (os judeus) e o Vitorioso Salvador (o exército dos EUA). (Cada vez mais se deixam esquecidos o Tratado de Versailles, a depressão econômica, o antibolchevismo de Hitler, a batalha de Stalingrado e inúmeros outros detalhes sempre significativos.)

Forçada no mesmo molde, com talvez ainda maior distorção da realidade, a crise da Ioguslávia serviu para reforçar o modelo básico. Os intelectuais franceses do poder estiveram presentes em todas as linhas de frente – e manchetes – dessa guerra midiática, operando para fortalecer a imagem dos povos e das gentes como meras vítimas passavas de “ditadores genocidas”, cuja única esperança de salvação estaria em serem salvos pela OTAN.

O grupo de Euston[5] na Grã-Bretanha exerce a mesma função, com menos energia. Em toda parte, o que interessa é manter coesa a Aliança Ocidental contra o resto do mundo.

Filósofos franceses

Claro, alguns ensaístas franceses contemporâneos criticam os EUA. “Le Monde des livres” listou alguns – Pierre Bourdieu, Alain Badiou, Antonio Negri, Slavoj Zizek et alia – como prova de que os franceses têm grandes intelectuais e não precisam ouvir o que Chomsky tenha a dizer.

Claro que todos são evidentemente muito diferentes uns dos outros, mas algumas diferenças entre os filósofos franceses contemporâneos e Chomsky merecem ser mencionadas.

Em primeiro lugar e mais importante, a questão dos fatos. A crítica de Chomsky é carregada de fatos, substância que parece entediar mortalmente os pensadores franceses contemporâneos. Por maior que seja a importância do ensaio no sistema educacional francês, o ensaismo educou e treinou um mundo de “filósofos” cuja única habilidade para manipular ideias sem qualquer fundamentação do mundo dos fatos passou a ser garantia de carreiras acadêmicas bem-sucedidas. Louis Althusser confessou, em sua autobiografia, admitindo que só conhecia pouquíssimos fatos e, ainda mais, que também conhecia poucas obras de filosofia – mas que aprendera a construir sínteses. Assim se cria a questão de saber que utilidade social teria tal filosofia.

Se o objeto social está aí para ser entretido e distraído, então a escola francesa alcançou seu objetivo – a mistificação gera melhor entertainement que descrições atentas, acuradas e bem documentadas da realidade. Por outro lado, se o objetivo é auxiliar o leitor a construir sua compreensão pessoal da realidade, sobretudo da realidade política, então a primeira necessidade é que o leitor conheça fatos relevantes, que poucos têm tempo ou meios para pesquisar.

Portanto, Chomsky é muito útil aos cidadãos, também porque oferece quantidades imensas de fatos brutos a partir dos quais cada um pode desenvolver o próprio pensamento, de um modo que os divulgadores de ideias feitas, com muito fraco pé na realidade, não conhecem.
Duas outras diferenças têm a ver com ética e clareza de pensamento.

O foco ético de Chomsky orienta-se contra o abuso do poder na sociedade em que cada um viva, portanto na sua própria sociedade. Isso não implica rejeitar essa sociedade e, sob vários critérios, Chomsky é muito pró-EUA. Mas a atitude básica é que todos temos ao mesmo tempo a possibilidade e o dever de combater o abuso do poder na sociedade na qual vivemos, ao mesmo tempo em que é difícil analisar sociedades distantes, estrangeiras e, sobretudo, sociedade antagonistas.

Nas décadas mais recentes, os intelectuais franceses, por sua vez, têm tendido a adotar uma ética dualista, e a assumir posições intermediárias entre “campos”. Depois do colapso da URSS e do “campo socialista”, esse dualismo aplicou-se ao Ocidente, “lar dos direitos humanos”, versus o resto do mundo pressuposto atrasado. Isso levou a completa confusão sobre o trabalho de Chomsky, cuja crítica dos EUA nada tem a ver com optar por algum “campo” oposto.

Quanto à clareza da exposição, a ênfase na complexidade estilística do sistema acadêmico e escolar da elite francesa levou à noção de que discursos claros e ideias claramente expostas não seriam “profundas”. Alguma obscuridade é sempre desejável, porque sugeriria “profundidade” (Pierre Bourdieu fez uso deliberado desse preconceito, ao usar longas sentenças para pensamentos simples. Uma vez, disse a John Searle, filósofo norte-americano, que, para ser levado a sério na França, era preciso que pelo menos 20% do que se escrevesse fosse absolutamente incompreensível.)

Em parte por causa dessas diferenças, há natural antagonismo entre Chomsky e seus contemporâneos franceses. Dificuldade que se complicou ainda mais ante a controvérsia política. Primeiro, no caso do Cambodia, a preocupação de Chomsky com oferecer fatos claramente expostos e sem exageros, foi mal interpretada como manifestação de apoio ao Khmer Rouge. Foi clara colisão entre alguém para quem não pode haver opinião séria sem fatos bem investigados, e outros que prestigiam, sobretudo, a própria opinião, sem dar grande importância aos fatos.

Além disso, no caso Faurisson2, consideravelmente mais explosivo, o simples fato de defender o princípio da liberdade de expressão, foi interpretado como apoio às teses de Robert Faurisson, apesar de Chomsky ter insistido que as duas coisas eram separadas. Nesse caso, é impossível determinar o momento em que as diferenças filosóficas saem de cena, e cedem lutar à manipulação e à exploração dos discursos, com vistas a desacreditar a crítica anti-imperialista que Chomsky construía.

A “Lei Gayssot” e o Holocausto como Religião Oficial


Nos anos 1980s, ninguém saberia prever até onde o “affair Faurisson” nos levaria. A discussão sobre o professor de literatura que assumiu o desafio de contestar um fato histórico aceito (que se usaram câmaras de gás para exterminar judeus nos campos de concentração nazistas) foi usada como fato chave num processo que levou à sacralização do Holocausto de judeus (Shoah, em hebraico, termo religioso hoje já usado correntemente na França) como uma espécie de religião de lembrança e arrependimento, e dogma oficial.

Em vez de ouvir a argumentação de Chomsky, de que as coisas se decidiriam mediante livre debate, com todas as posições expostas e discutidas, a Assembleia Nacional Francesa, em julho de 1990, aprovou uma emenda a lei de 1881 sobre liberdade de imprensa, conhecida como “Lei Gayssot” (nome do deputado comunista que a apresentara). Essa específica emenda exige punição para todos quantos publicamente “contestem” (questionem ou ponham em dúvida) “a existência de um ou vários dos crimes contra a humanidade” nos termos em que estão definidos pelo Estatuto do Tribunal de Nuremberg de 1945 e que tenham sido cometidos “por membros de organização declarada criminosa” [pelo Estatuto de 1945] ou “por pessoa condenada por tais crimes por tribunal francês ou jurisdição internacional”.

Os crimes que Nuremberg definiu como crimes contra a humanidade são “assassinato, extermínio, escravização, deportação e todos os demais atos desumanos cometidos contra populações civis” além de “perseguições por motivação política, racial ou religiosa”.

Em geral, a Lei Gayssot tem sido usada para processar ou calar pessoas que, de fato, nem contestam nem disputam nem questionam a existência dos crimes acima listados, mas questionam o uso de câmaras de gás para cometer genocídio e assassinato em massa. De fato, praticamente não há “negação” da perseguição que os nazistas moveram aos judeus. Por isso a lei serve para ‘quaisquer casos’ em que alguém manifeste posições ou ideias que qualquer um, em quaisquer circunstâncias, considere antissemitas.

Assim aconteceu no processo movido contra Bruno Gollnisch, membro destacado do Front National. Gollnisch, professor de estudos asiáticos na Universidade de Lyon, apenas descartou, sem responder, uma pergunta sobre o Holocausto, durante uma entrevista, dizendo que seria questão para especialistas. O processo afinal foi anulado, em segunda instância, mas até que isso acontecesse o professor passou cinco meses impedido de trabalhar na universidade.
Esse tipo de lei tem efeitos que vão além da aplicação imediata.

Primeiro, contribuiu para a sacralização do Holocausto, ou “Shoah”, que cada dia é mais considerado como dogma sagrado e menos como evento histórico. Em estado secular, no qual as religiões tradicionais são excluídas das escolas públicas, só o Holocausto ainda é tratado com a paixão mental e o envolvimento emocional que tradicionalmente só se reservam para as religiões. Nos currículos escolares, aumenta o lugar do Holocausto, na exata medida em que encolhe o lugar das aulas de História em geral.

Inicialmente, os crimes nazistas foram ensinados como crimes contra toda a humanidade. A identificação das vítimas foi-se contudo centrando nos judeus. Com isso, até as crianças nas escolas foram implicitamente divididas entre potenciais vítimas, a saber, as crianças judias e o resto do mundo, cuja inocência não está absolutamente garantida. É praticamente o verso da medalha do preconceito medieval, quando os judeus eram ditos “matadores de Cristo”. Hoje, os não judeus estão na difícil posição de serem descendentes de “matadores de judeus” (ou, na melhor das hipóteses, como descendentes dos que fracassaram na tentativa de salvar crianças judias da deportação para Auschwitz).

Efeito inevitável de tudo isso é encorajar outras comunidades étnicas a reforçar seus traços comunitários como também vítimas históricas, quase sempre vítimas de “genocídio”. Africanos, armênios, muçulmanos e outros muitos povos que sofreram tragédias de grandes proporções também se sentem humanos o suficiente para exigir que suas tragédias sejam respeitadas e relembradas, como a tragédia dos judeus. Essa disputa quanto ao ‘nível’ de vitimidade pode levar a extensões da Lei Gayssot, ou de lei anterior, contra o incitamento ao ódio racial, e levar a processos contra pessoas que considerem inadequada a expressão “genocídio” aplicada aos eventos trágicos na Ucrânia, na Armênia, na Bósnia etc.
Converter a história mais em objeto de reverência, do que de curiosidade, marca regressão sutil, mas grave, dos valores seculares do livre pensar e do livre investigar. Essa conversão regressista contribui para criar atmosfera de autocensura, de censura pelo ‘politicamente correto’, que mais estimula a covardia do pensamento, que a coragem.

Efeito político disso tudo é ensinar às crianças francesas, desde a escola, a visão de mundo dos ‘Três Vs’, segundo a qual os EUA são sempre o Vitorioso Salvador e a França não passa de semiculpada coadjuvante da própria história.

Os tempos, afinal, estão mudando

Para parte significativa da nova geração, o culto do Holocausto, com obrigação de comemorações anuais e o “dever de lembrar”, está-se tornando tão tedioso quanto qualquer outra religião imposta pelo Estado. Já não impede, sequer, críticas, por judeus, do tratamento que os israelenses dão aos palestinos. A arapuca da culpa (europeia) pode estar começando a ruir.
Sua visita, Noam, a Paris, nos últimos dias de maio, acontece em momento em que já se veem sinais de que os ventos ideológicos estão mudando. Sinal eloquente dessa mudança foi o público jovem que acorreu para ouvi-lo no salão da Mutualité, em conferência patrocinada pelo jornal mensal Le Monde diplomatique.

Em atitude oposta à de Le Monde diplomatique, o jornal Le Monde, que já foi jornal respeitado, tornou-se porta-voz do “pensamento único” sempre a favor da subserviência aos EUA, à União Europeia e à Aliança Atlântica.
Primeiro, Le Monde publicou matéria ridícula, assinada por um repórter que não assistiu à conferência de Chomsky no Collège de France; e escreveu longa matéria ressentida, por ter ficado do lado de fora.

Poucos dias depois, Le Monde voltou à carga, e publicou coluna, na seção de livros, ignorando todos os novos lançamentos e desenterrando o “caso Faurisson”, como pretexto para requentar todos os argumentos que se usaram contra, sem apresentar nenhum dos argumentos da defesa de Chomsky.

Por outro lado, ao final de sua visita a Paris, o professor Chomsky foi entrevistado num programa de alta audiência popular, Ce soir ou jamais, onde encontrou uma chance, depois de tantos anos, de responder às boas perguntas propostas pelo entrevistador, Frédéric Taddei. É programa popular, e os telespectadores que durmam cedo podem assisti-lo facilmente pela internet[6].

Essa entrevista recebeu comentários elogiosos na revista Marianne que, nos anos recentes, tornou-se a revista semanal de maior tiragem na França. Marianne destacou o “estranho silêncio da mídia” em torno da visita de Chomsky, sobretudo ao ignorar suas duras críticas ao ataque, pelos israelenses, contra a Flotilha da Paz, que acontecera naquela manhã. A revista reproduziu palavras do próprio Chomsky, para explicar o estranho silêncio: às vezes conscientemente, às vezes inconscientemente, tendemos a filtrar o que não queremos ver ou ouvir, se são coisas que nos perturbam.

Não há dúvidas de que Chomsky ainda perturba muito gravemente muita gente na mídia francesa contemporânea.

Mas nem todos. Houve, é claro, ampla cobertura da visita em Le Monde diplomatique, copatrocinador da visita, que publicou longo artigo do professor Jacques Bouveresse, que recebeu Chomsky no Collège de França. Daniel Mermet mestre de cerimônias do popular “Là-bas si j’y suis”, do rádio vespertino, cobriu o encontro entre Chomsky e líderes operários. O jornal católico La Croix também publicou matéria informativa sobre o visitante.

De volta a fevereiro de 2003, o então ministro das Relações Exteriores Dominique de Villepin discursou no Conselho de Segurança da ONU, opondo-se ao ataque dos EUA contra o Iraque. O discurso recebeu elogios entusiasmados em vários jornais do mundo. Na França, ainda falta reencontrar vozes independentes.

Mas o medo de sofrer retaliações pelos EUA, pela impertinência daquele ministro, foi fator decisivo para que Sarkozy, imediatamente depois, se alinhasse aos EUA e Israel. Nada recebeu como recompensa interessante, além do ‘direito’ de também envolver-se no labirinto afegão, e alienar parte significativa da população francesa de raízes árabes. Anos de George W. Bush, a guerra do Afeganistão, o apoio sem qualquer crítica que os EUA garantem aos crimes que Israel comete em série, a crise financeira e a desilusão crescente com a União Europeia estão fazendo despertar os franceses e minando a aceitação, pelos cidadãos, da posição de parceiro passivo do imperialismo norte-americano.

O pêndulo vai e vem. Villepin, inimigo político figadal de Sarkozy, está de volta à cena, conclamando a França “a aprender as lições do Vietnã, da Argélia, do colonialismo”, a retirar-se do Afeganistão, a reconhecer que o mundo está mudando. O Ocidente já não pode impor a própria voz ao mundo, há novos poderes emergindo, Villepin insiste. É voz ainda muito distante do poder, mas suas palavras continuam ecoando.

É paradoxal que Chomsky, considerado antifrancês pelo desdém que sempre manifestou pelos intelectuais franceses contemporâneos, ofereça hoje a base argumental para todos quantos desejam que a França recobre sua independência nacional para que consiga desempenhar papel construtivo e de pacificação no mundo multipolar que se avizinha. Não se pode negar que Chomsky é e sempre foi uma voz a favor da liberdade de expressão.

Saudações cordiais,

[assina] Diana Johnstone
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