Cinco questões sobre o "avanço" de Obama no Afeganistão

O general David Petraeus admitiu no domingo, no programa Meet the Press [Encontro com a Imprensa], que a guerra do Afeganistão durará anos e provocará muitas mortes. A defesa implícita que Dick Cheney ofereceu ao presidente Obama nas questões da tortura e do fechamento de Guantánamo gerará enormes manchetes, mas, mais cedo ou mais tarde o público nos EUA entenderá. O país está hoje dividido entre os que pensam que os EUA podem e devem restaurar alguma estabilidade no Afeganistão antes de retirar-se de lá e os que querem imediata retirada.
A campanha em Marjah, pedra central da nova estratégia antiguerrilha, já completou uma semana de duração, e já é possível avaliar os primeiros resultados dessa nova e mais profunda intervenção dos militares dos EUA na violenta província de Helmand.
Ninguém jamais duvidou que os EUA e a OTAN venceriam sem dificuldade o confronto militar, ocupando as cidades de Marjah e Nad Ali, na vizinhança.
Marjah é cidade de 85 mil habitantes, menor que Ann Arbor, Michigan (ou Jataí de Goiás, por exemplo). Para entender o ataque a essa cidadezinha, é preciso considerar um contexto social e político mais amplo. As questões inescapáveis são:
1. A estratégia do general Stanley McChrystal, de tomar, limpar, ocupar e instalar-se poderá ser aplicada também em regiões mais profundas das áreas pashtuns? Marjah é no máximo um degrau a ser galgado em direção à cidade-chave de Candahar, no sul do país, com população de um milhão de habitantes, do tamanho de Detroit (ou Campinas, SP, por exemplo).
Esse ‘progresso’ ainda não foi testado, mas é absolutamente improvável que, algum dia, os pashtuns rurais caiam de amores pelo estrangeiro ocupante. Até o Wall Street Journal admite que, em Marjah, os Marines têm visto de tudo, exceto qualquer manifestação de amor e afeto dos civis que, supostamente, estariam sendo libertados.
Dado que os Talibã não são, de modo geral, tão corruptos quanto os senhores-da-guerra, quanto mais os EUA e a OTAN insistirem em afastar os Talibã e em reinstalar no poder os senhores-da-guerra, mesmo que sejam aliados dos EUA, mais os EUA estarão trabalhando para se separar das populações locais. De fato, evitar completamente a morte de civis é questão de vida ou morte para os exércitos estrangeiros.
Essa tarefa, contudo, será cada vez mais difícil, quanto mais os EUA se aprofundem em território pashtun, porque, ali, não haverá como não matar civis nas vilas que são, elas mesmas, abrigo dos guerrilheiros resistentes.
A ocupação soviética produziu 5 milhões de deslocados internos, além de centenas de milhares de mortos. Uma campanha em Candahar facilmente geraria meio milhão de pessoas expulsas de suas terras e lares, o que faria crescer enormemente o número de inimigos que EUA e OTAN teriam de enfrentar e praticamente jogariam nos braços da guerrilha.
Na 2ª-feira, o governador de Dai Kundi informou que um ataque aéreo dos EUA havia matado 27 pessoas, quase todos civis.
E há também a questão, levantada por Tom Englehardt, de se os EUA serão capazes de bem governar no Afeganistão... uma vez que não conseguem bem governar nem em Washington, DC.
2. Será que a demonstração de vitalidade e senso de evolução bastará para seduzir os públicos da OTAN, por tempo suficiente para manter uma guerra prolongada e o treinamento intensivo por vários anos, de soldados e policiais?
Não. Nesse fim de semana, o governo de centro-direita da Holanda discutiu a permanência de tropas holandesas no Afeganistão. A guerra do Afeganistão é universalmente impopular em toda a Europa continental. Os governos que concordaram com enviar soldados foram praticamente chantageados e forçados a agir contra a opinião pública interna, porque a OTAN invocou o artigo 5º artigo de seu Estatuto (“ataque contra um membro é ataque contra todos os membros da OTAN”) em relação aos ataques dos Talibã e da al-Qaeda no Afeganistão depois do 11/9.
Será preciso esperar vários meses pelas novas eleições da primavera, quando se constituirá um novo governo holandês, em parte como resultado da crescente popularidade do Partido da Liberdade, de Geert Wilders, populista, direitista, islamófobo e antimuçulmano – e partido que ninguém deseja acolher em coalizão. Os 2.000 soldados holandeses das tropas da OTAN serão retirados do Afeganistão até o final do verão. Os militares canadenses também estão de partida.
Serão casos isolados, ou já começou a retirada das tropas da OTAN, que deixará Obama isolado, preso naquele pantanal? A Austrália já se recusou a substituir os soldados holandeses, e o governo australiano está sob intensa pressão popular para retirar de lá os seus próprios soldados.
Por mais que se deva prever que o governo direitista, eivado de escândalos, do bilionário Silvio Berlusconi sobreviva às próximas eleições na Itália, pode bem acontecer o contrário; e, nesse caso, seu sucessor pode escolher afastar-se da muito impopular guerra do Afeganistão. (A morte de seis soldados italianos, no outono passado, fez crescer a oposição à guerra, também na Itália.)
Além do mais, também é possível que os guerrilheiros pashtuns farejem sangue na água, se os holandeses retirarem-se de Uruzgan (província natal de Mullah Omar), e ataquem à plena força – se virem reduzirem-se os contingentes da OTAN.
Há cerca de 45 mil soldados da OTAN e aliados no Afeganistão, e 74 mil norte-americanos. Obama desejava aumentar o contingente europeu com mais 10 mil soldados, mas a OTAN rejeitou o convite; e agora o próprio contingente da OTAN poderá começar a encolher, justamente quando aumenta dramaticamente a carência de novos treinadores. Calcula-se que o Exército Nacional Afegão [ing. Afegan National Army, ANA] conte hoje com 100 mil soldados, mas há quem diga que o número real mal chegue à metade disso; que a maioria desses não mais de 50 mil soldados são analfabetos, jamais receberam qualquer treinamento militar e raramente se pode confiar nas lealdades que os soldados declaram; além de haver problemas de uso de drogas, doenças e outras condições debilitantes.
3. O exército do Afeganistão poderá chegar rapidamente a ter capacidade para patrulhar e manter a ordem no país, independente da contribuição dos EUA, depois da retirada dos soldados de EUA e OTAN?
Muito pouco provável. A resposta sobre o grau de prontidão dos militares afegãos – depois de quase uma década de treinamento e 1 bilhão de dólares consumidos – é que os afegãos absolutamente não estão preparados. Na campanha de Marjah, os soldados afegãos não mostraram iniciativa nem capacidade de combate independente. O oficialato sabe que não pode contar com os soldados mais jovens, 90% dos quais são analfabetos. (O repórter do New York Times lamentou não vê-los estudando mapas e planejando movimentos de abordagem!) Não há informações claras sobre a constituição étnica dos batalhões que o exército afegão enviou para Marjah. Praticamente não há nativos da província de Helmand alistados como soldados; uma vasta maioria dos alistados são tadjiques (falantes nativos do persa dari, quase todos nascidos em cidades maiores). Tadjiques e pashtuns têm antigas questões jamais acertadas entre eles – e em Marjad há expressiva maioria de pashtuns. O conjunto de habilidades dos soldados afegãos que os Marines consideraram mais preciosas durante o assalto – a capacidade de identificar à primeira vista, quase que pelo cheiro, as casas nas quais poderia haver Talibã escondidos – pode ter sido muito útil na primeira fase, de chegada e limpeza, porque há quinze anos os tadjiques da Aliança do Norte combatem contra os Talibã; e pode tornar-se perfeitamente inútil, depois de não haver Talibã na região.
4. Pode-se esperar que o povo afegão, composto de vários grupos (tadjiques, hazaras, uzbeques) tão profundamente feridos pela violência dos Talibã, aceite qualquer proposta de reconciliação?
Pouco provável. Neste fim-de-semana, Abdullah Abdullah, ex-líder da Aliança do Norte e popular entre os tadjiques, alertou o presidente Karzai contra qualquer proposta de reconciliação com os Talibã. Abdullah desistiu da candidatura nas eleições presidenciais do outono passado, como protesto contra o que chamou de fraude eleitoral a favor de Karzai. Há hostilidade generalizada, todos contrários à reconciliação com os Talibã, entre os partidos que representam os grupos étnicos não-pashtuns, do norte.
5. É possível esperar que baste pressionar os Talibã, dos escalões médios até os mais inferiores, para que aceitem reconciliar-se com o governo de Karzai?
Até esse momento, não há sinal de que os principais líderes Talibã ainda em atividade tenham qualquer interesse em negociar. Porta-voz Talibã respondeu ao chamado à reconciliação emitido pelo presidente Hamid Karzai durante o fim-de-semana, com retumbante “Não!”. Qari Muhammad Yusuf Ahmadi disse à imprensa afegã islâmica, em pashtun, que os Talibã deporão armas quando não restar nenhum soldado estrangeiro em seu país. Disse, conforme tradução de The News:
“O mundo inteiro sabe que o Afeganistão foi invadido e ocupado por exércitos estrangeiros. Eles, não nós, começaram a guerra. Os Talibã nem deporão armas nem conversarão com o governo de Karzai enquanto houver um único soldado estrangeiro de ocupação no Afeganistão.(...)
“A guerra no Afeganistão é guerra entre afegãos e estrangeiros ocupantes. A responsabilidade por essa guerra é dos estrangeiros e de seus lacaios. Continuam a fazer guerra contra civis em áreas populosas. Enviaram 15 mil soldados para uma pequena aldeia como Marja; e continuam a matar civis e a tentar impor infiéis para governarem afegãos.”
“Nem o próprio Karzai tem qualquer poder. Os estrangeiros da ocupação controlam tudo. O Afeganistão está em luta contra eles.”
Comentando a morte de 12 civis em Marjah, Qari Muhammad disse:
“Karzai deveria ter dado os nomes dos que trucidaram o povo. Nenhum Talibã matou afegãos nem destruiu casas de famílias. Os estrangeiros bombardeiam casas e matam civis por todas as partes. Eles, não nós, trouxeram desgraça para o povo de Marja.”
Por outro lado, os membros do governo-sombra Talibã que estão agora sob custódia do Paquistão são menos categóricos. Um terceiro-comandante Talibã, Maulvi Kabir (governador-sombra da província de Nangarhar) foi capturado por militares paquistaneses, prisão possibilitada, pelo que se diz, por informação fornecida por Mullah Abdul Ghani Baradar. Baradar, chefe militar do Estado-maior do Velho Talibã de Mullah Omar, foi recentemente preso em Karachi, em operação conjunta dos serviços secretos paquistanês e dos EUA, que interceptaram mensagens de Baradar. Essas prisões têm provocado graves fraturas no governo-sombra dos Talibã, militantes que planejam as operações de bombardeamento e implantação de minas nas estradas e outros ataques em específicas províncias do Afeganistão, mas vivem escondidos no Paquis tão.
Riza Yusuf Gilani primeiro-ministro do Paquistão e o general Ashfaq Kayani, chefe militar do Paquistão, parecem estar convencidos de que, se esses altos líderes do Talibã Afegão forem capturados, Islamabad terá melhores condições para negociar um acordo que ponha fim à disputa entre o governo de Karzai e a extrema direita religiosa pashtun organizada como força de resistência.
A política de Obama de escalada no Afeganistão, contra os muito escaldados pashtuns, é política desesperada – além de perigosa e temerária – de pôr-se a tentar construir castelos de areia em praia de maré montante.
Ironicamente, seu maior sucesso aconteceu no Paquistão, onde Obama parece ter convencido a elite a intervir firmemente contra seus próprios Talibã, os Talibã Paquistaneses; e agora, também a começar a prender os membros do velho governo-sombra dos Talibã que se escondem em solo paquistanês. Se Obama conseguir avançar e convencer Islamabad de que o apoio dado aos Talibã Afegãos foi gravíssimo erro estratégico, que explodiu pela culatra contra o próprio Paquistão, Obama talvez se aproxime mais rapidamente de alguma vitória possível, do que jamais conseguirá chegar algum dia mediante qualquer ‘avanço’ militar que os EUA inventem dentro do próprio Afeganistão.
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