As novas ameaças aos direitos humanos

Paris, dezembro/2009 – No dia 10 deste mês, a Declaração Universal dos Direitos Humanos completará 61 anos e são inegáveis os progressos obtidos neste período. Em particular, a associação normativa em favor dos direitos humanos não para de aumentar no mundo. Ao mesmo tempo, noto alguns perigos adversos aos esforços para fazer da proteção dos direitos humanos a linguagem comum da humanidade.

Refiro-me, em primeiro lugar, a uma refutação de tipo ideológico sobre a universalidade da Declaração de 1948, em razão de se assentar na primazia do indivíduo, enquanto para as sociedades do Terceiro Mundo – asiáticas e africanas – a preeminência corresponde aos grupos e às tribos. Este enfoque destaca que a proteção dos direitos coletivos da tribo é a condição para garantir os direitos dos indivíduos que a integram. Neste contexto, parece-me que seria um erro desprezar a importância da “tribalização” do poder, como também o seria desprezar o sentimento de segurança e harmonia que existe nos grupos majoritários étnicos, religiosos ou linguísticos diante da incapacidade do Estado de lhes dar uma tutela efetiva.

Em segundo lugar, vejo uma ameaça de cunho religioso que não se concilia com a universalidade dos direitos humanos. Refiro-me à contradição entre o conteúdo da Declaração e a sharía, o direito islâmico. Esta incompatibilidade se manifesta, especialmente, em relação aos direitos fundamentais das mulheres, à liberdade de conversão de credo religioso e à aplicação de penas corporais. O mais grave é que a corrente salafita fundamentalista muçulmana considera a defesa dos direitos humanos como uma ingerência neocolonialista que constitui uma nova cruzada contra o islamismo. Este sentimento é, por sua vez, exacerbado por uma atitude anti-islâmica que prevalece no mundo ocidental desde os atentados de 11 de setembro de 2001 em Nova York, o que faz com que cada muçulmano seja visto como um terrorista ou um eventual terrorista.

Coloco em terceiro lugar uma ameaça cuja importância diminuiu, mas ainda permanece vigente e pode fazer ressurgir a expansão das duas novas superpotências, China e Índia. Refiro-me à chamada “exceção asiática”, uma corrente que predominou na conferência regional da Ásia e do Pacífico sobre os Direitos Humanos, que aconteceu em Bangcoc dois meses depois da Conferência Mundial sobre Direitos Humanos, realizada em Viena em junho de 1993. Aprovada por mais de 40 representantes de governos da Ásia e do Pacífico, a Declaração de Bangcoc é a afirmação coletiva de uma perspectiva asiática sobre os direitos humanos, segundo a qual esses direitos devem ser enquadrados nas particularidades históricas, culturais e religiosas dos países do continente.

Menciono por último uma corrente revisionista, que pensa que a Declaração Universal dos Direitos Humanos precisa ser atualizada e modificada em relação aos progressos e às evoluções ocorridos nestes 61 anos, que implicaram mutações na comunidade interestatal confrontada com a globalização. Esta corrente se reforçará ao longo dos próximos anos e das conseguintes novas e contínuas mudanças tecnológicas nos aspectos sociais, econômicos e culturais.

Tudo isto se enquadra no que para mim é o maior desafio à universalidade dos direitos humanos: a fratura econômica e social do planeta. É necessário recordar que quase dois bilhões de pessoas lutam pela sobrevivência cotidiana com apenas um ou dois dólares por dia? É necessário recordar que a cada dia morrem 35 mil crianças por desnutrição? Diante da tragédia de tantas crianças, mulheres e homens que sofrem e morrem, se impõe do modo mais insuportável a realidade de que, embora todos os seres humanos sejam iguais, a história continua nos tratando como se não o fôssemos e ergue barreiras econômicas e sociais entre nós.

Este sentimento de injustiça indica um progresso na consciência humana. A passagem da comprovação destas desigualdades à ação para eliminá-las pode-se cumprir, em parte, graças à afirmação universal dos direitos humanos. Este conceito é a premissa para passar da moral ao direito e estabelecer escalas de valores e de normas jurídicas sobre as atividades humanas que constituem a base para julgar as atitudes humanas e o comportamento do poder. A defesa dos direitos humanos é, sem dúvida, a melhor resposta à desregulamentação generalizada que nos ameaça. Porém, não deve se limitar a um combate solitário que se transforme em um fim em si mesmo. IPS/Envolverde

* Boutros Boutros-Ghali foi Secretário-Geral das Nações Unidas no período 1992-1996.

(IPS/Envolverde)
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