Não vejo saída para o conflito israelo-palestiniano

Daniel Barenboim acha que a situação no Médio Oriente nunca esteve tão mal e que Israel se tornou "um lugar desumano". Não se trata apenas dos direitos dos palestinianos. Netanyahu põe em risco o futuro da presença judaica na região, e a sociedade israelita não vê isso. "Está apodrecida." Quanto a Obama, ainda não conseguiu nada.
Entre o palco da Gulbenkian e o seu camarim, Daniel Barenboim já falou inglês, alemão, espanhol e hebraico. Filho de judeus refugiados, nasceu em Buenos Aires em 1942, cresceu em Israel, e hoje vive em Berlim. É um dos mais célebres pianistas e maestros do mundo, e certamente o único com cidadania israelita mas também palestiniana. Em 1999, criou, com o seu amigo palestiniano Edward Said, a Orquestra West-Eastern Divan, para jovens músicos israelitas, palestinianos, sírios, libaneses, jordanos e egípcios. Já sobreviveram a várias guerras.

Mas hoje não seria possível darem um concerto histórico como o de Ramallah em 2005, só possível com várias intervenções diplomáticas e cooperação das seguranças israelitas e palestiniana. Porque hoje tudo está muito pior.

Barenboim explica porquê nesta entrevista, feita em Lisboa, na véspera dos dois concertos que deu. E como nele "está tudo ligado" (título do seu último livro, publicado agora pela Bizâncio), aqui se fala de política mas também de música.

Ficou satisfeito com a eleição de Obama, mas tem dito que a solução para o conflito israelo-palestiniano não pode vir de fora. Entretanto, tivemos a guerra em Gaza, a eleição de Benjamin Netanyahu, o discurso de Obama no Cairo e negociações. Como define a situação agora?

Acho que nunca foi tão má, tão desastrosa. Israel tornou-se realmente um lugar desumano. Não é uma questão de política, se estamos à direita ou à esquerda. É total desrespeito, e não só pelos palestinianos. O governo israelita actual está a brincar com a futura existência do Estado de Israel, de uma população judaica naquele território, ao fazer com que não seja possível haver nem dois estados nem um estado binacional.

O que acha que o governo de Netanyahu quer?


Estão totalmente fora da realidade. Pensam que o tempo está do lado deles, e que o mundo se sentará quieto a vê-los fazer. Agora Netanyahu crê que melhorando a situação económica nos territórios vai melhorar as coisas. Quer criar um novo palestiniano. Mas não é o dever dele, criar um novo palestiniano, devia pensar no seu próprio país. Ao dar condições ligeiramente melhores aos palestinianos, tornará a vida um pouco mais fácil, e durante algum tempo tudo estará calmo, e depois será pior.

Portanto, além da questão moral, acho que Netanyahu está a pôr em risco o futuro da presença judaica na região. Se continuar assim, vai parecer-se cada vez mais com a situação doapartheid sul-africano. A África do Sul, viu que não havia outro caminho e tornou-o possível. Se Israel não vir isso, será terrível.

A guerra de Gaza fê-lo cancelar concertos...

Pediram-nos que os adiássemos. Tínhamos um concerto no Qatar e um no Cairo, e no Qatar pediram-nos que adiássemos por razões de segurança, porque temos 35 israelitas na orquestra. Mas o concerto do Qatar vai acontecer a 5 de Janeiro.

... como foi vivida a guerra dentro da orquestra?


O começo da digressão era Qatar, Cairo e a seguir íamos para Moscovo. Quando tivemos de adiar os concertos, arranjámos rapidamente dois concertos em Berlim. Então, em vez de Qatar e Cairo, toda a gente foi para Berlim.

Ao fim do primeiro dia juntos, falei com a orquestra: "Esta é uma guerra terrível, e imagino que seja difícil para alguns tocarem com os outros. Só tenho um pedido: se alguém aqui não quer ou não pode tocar nestas circunstâncias, garanto que compreenderei e não haverá problemas. Mas digam-me agora, não me digam na tarde de um concerto em Moscovo ou em Viena, porque vamos tocar asVariações de Schoenberg, peças difíceis, para as quais é preciso toda a espécie de instrumentos. Por favor, pensem nisso, falem entre vós. E se sentirem que a situação é tão má que preferem não o fazer, façam os concertos amanhã em Berlim e depois vemo-nos no Verão."
Pensei que os israelitas se iam reunir entre eles e os árabes se iam reunir entre eles. Nada disso. Tiveram uma reunião da orquestra. Durante a guerra, israelitas e palestinianos e sírios, todos eles, tiveram uma reunião para discutir se alguém não queria participar na digressão! Eu saí, disse que não queria influenciar ninguém. Quando acabaram, vieram chamar-me e disseram: "Toda a gente vai tocar. Não há ninguém que não queira." Só queriam fazer uma declaração que fosse impressa em todos os programas. O que fizemos.

Sinto que isto foi um fantástico passo em frente. Reparem bem: na digressão havia palestinianos a telefonarem a familiares em Gaza, e havia israelitas a telefonaram a familiares em Gaza - soldados, do lado oposto.

A maturidade disto representa um desenvolvimento extraordinário. A orquestra tornou-se um verdadeiro pensamento alternativo.

E quanto aos seus sentimentos sobre a guerra?

O que aconteceu em Gaza é completamente indesculpável. E a reacção do governo israelita ao recente relatório das Nações Unidas é inaceitável. Inaceitável. Que o Hamas usou escudos humanos, como também diz o relatório, é claro. Mas isto [a acção do exército israelita] é homicídio em massa. Em Sabra e Chatila, os israelitas ficaram quietos a ver os libaneses a fazê-lo, mas agora fizeram-no eles próprios. Isto é um massacre.

Aparentemente, Obama está empenhado numa solução para o conflito. Como avalia o que ele tem feito?

Acredito nele, ainda. Acredito que ele quer uma solução. Mas penso que as pessoas na Casa Branca, e especialmente as pessoas no Departamento de Estado, não estão a seguir isso.

Hillary Clinton não está a seguir isso?

Não estou a falar de Hillary Clinton, mas de todo o departamento, e penso que também na Casa Branca. Sei que é uma coisa muito desagradável de fazer. Mas a não ser que ele pressione Netanyahu, nada se vai mover.

Vê alguns sinais disso?

Não. Até agora, não.

O que achou do discurso do Cairo?

Acho que foi absolutamente fantástico. Muito claro, justo.  Mas devo dizer que estou a ficar cada vez mais impaciente com os diferentes governos israelitas. Acho que perderam todo o sentido da realidade. 

O discurso do Cairo podia fazer uma diferença, ser um ponto de viragem neste conflito?


Desde que seguido por acções. Obama disse que os colonatos tinham de parar e agora [o negociador de Obama, George] Mitchell não consegue convencer Netanyahu a congelar os colonatos.

O discurso do Cairo é um marco, mas não pode ficar só como um discurso, tem de ser seguido por acção.

Pensa que a atitude em relação a Israel é algo impossível de mudar?


Acho que se está a tornar mais difícil a cada mês, a cada semana, a cada dia. Se Israel tivesse devolvido os territórios ocupados em 1968, em 1970, em 1980, isso teria sido visto como um gesto de grande generosidade. Agora passaram 42 anos. E é isto que arruina completamente a moral do Estado de Israel. Não se pode ocupar alguém durante 42 anos e ter uma sociedade saudável. O problema é que a narrativa israelita não é completamente verdadeira. Muito do que foi conseguido é admirável, mas parte da narrativa simplesmente não é verdade - o que aconteceu em 1948, como as pessoas [palestinianos] foram forçadas a sair. Assim sendo, ninguém em Israel tem um sentido de responsabilidade para com o problema palestiniano, e não se pode fazer paz sem isso.
E não faz sentido dizer: "Eles também matam." OK, claro, não estou a dizer que todos os palestinianos são anjos. Mas há um problema básico de justiça em relação ao povo palestiniano, e como os israelitas não sentem essa responsabilidade, não fazem nada quanto a isso. Esse é o primeiro passo, não Obama. É preciso educar as pessoas em Israel.

Não percebo porque isto é tão difícil. Aconteceu há 61 anos.

Não percebo porque é tão difícil para um primeiro-ministro israelita dizer: "Tivemos o Holocausto. Sei que não é um problema dos palestinianos, mas seis milhões morreram nos campos de concentração, e muitos vieram para aqui, e naquele tempo só estávamos a pensar na sobrevivência..."

"Não podíamos cuidar de ninguém."

"... não podíamos, não víamos. Mas agora vemos isso, portanto tentemos encontrar um modo de viver." Acho que isso significaria tanto. Mas como Israel não sente isso, ninguém se mexe. Esse é o problema. Se aceitamos a responsabilidade, fazemos algo. Talvez não o suficiente, mas algo.
Há toda uma geração de israelitas que, como você, viveram o Israel socialista dos pais fundadores, dos valores humanos que foram a razão mesma do estado, mas a nova geração não tem esta memória. Portanto, o terreno moral da fundação está a perder-se.

E vinte e cinco por cento da população é gente que veio da União Soviética com visões extremistas de direita, nem ouviu falar dos palestinianos. E vinte e dois por cento são palestinianos, os chamados árabes israelitas. Portanto, estamos a falar de 50 por cento.

Mas Israel não compreende, pensa que pela força vai manter os palestinianos do lado de fora. Não vai. Não vai [bate na mesa].

O que está a dizer é que não se trata apenas dos direitos dos palestinianos, mas da sobrevivência de Israel.

E da presença judaica! Mesmo que haja um estado binacional, creio que a maior parte deles quererá partir.

Ou seja, este não é o caminho para aqueles que querem manter Israel.

Não, não é. Alguns israelitas dizem: "Oh estamos cansados, não precisamos disto, temos de lhes dar territórios. Para nós Telavive é suficiente." Mas até isso não é um entendimento do que se passa.

É uma sociedade apodrecida, a de Israel. Apodrecida.

(pausa)

Geralmente não falo de forma tão veemente sobre isto, porque tento continuar o meu trabalho, mas está a tornar-se absolutamente...

Sente que é um sonho arruinado?

Sinto que está muito pior, muito pior. A prova é que agora não conseguiríamos fazer o concerto de Ramallah [como em 2005].

Porquê?

Na altura houve uma cooperação da segurança israelita e da segurança palestiniana. Creio que hoje isso não aconteceria. Acho que demasiados palestinianos estão fartos e só querem boicotar tudo o que tenha a ver com Israel.

Faria esse concerto agora?

Eu iria a qualquer lugar. Qualquer lugar.

Faria um concerto da Orquestra Divan em Israel?

Não é possível. Não é uma ideia realista.

Quando foi a Ramallah disse que a ideia da Orquestra Divan só estaria cumprida quando pudesse tocar em Damasco, em Amã, em Israel...

Claro, a total dimensão do projecto só será cumprida assim. Mas se formos a Israel não podemos levar os sírios, os libaneses.

Virá o dia.

Virá?

Acho que sim.

Recorda o concerto de Ramallah como o concerto da sua vida?

(Longa pausa). Foi uma coisa única. Não quero dar-lhe outro título. Foi um dia único.

Como uma inspiração - como uma possibilidade, porque aconteceu -, qual é o significado desse concerto?

O significado é que há israelitas com um sentimento de solidariedade humana com o povo palestiniano, e eles queriam ir lá. E por causa disso, os palestinianos, os sírios, todos, também puderam ir.

É uma grande pena que os palestinianos não queiram nada com nenhuns israelitas. Compreendo-o, porque sofreram muito, mas em muitos casos deveriam poder distinguir uns de outros. E penso que lhes faria muito bem, e aos israelitas, se pessoas com voz na sociedade palestiniana fossem a Israel e falassem com israelitas. Muitos israelitas são completamente ignorantes quanto à situação.

Não podem ir aos territórios ocupados.

Não querem.

Não querem e não podem, portanto é um círculo.

Conhece a Cisjordânia actual. Quando vemos o mapa hoje, o território palestiniano aparece fragmentado como milhares de ilhas, com os colonos no meio. Entre Cisjordânia e Jerusalém Leste há quase meio milhão de colonos. Como pode ser possível um estado palestiniano ali?

É por isso que digo que Netanyahu está a tornar as duas soluções impossíveis. E nem se apercebe da questão demográfica. Na área a que os palestinianos chamam Palestina e Israel chama Grande Israel - da fronteira do Líbano ao Mar Vermelho -, a população não-judia é quase 50 por cento, 22 por cento em Israel e o resto nos territórios. O que pensa ele que vai fazer com estas pessoas? Matá-las? Pô-las na Jordânia? Mandá-las para a lua?

Se o problema dos colonos não for resolvido, será impossível um estado palestiniano, mas continua a haver um irrealismo do Ocidente quando fala de um estado palestiniano ali.
O que os judeus viveram no século XX é a coisa mais horrível que podemos imaginar. E no Ocidente ainda existe um sentido de responsabilidade em relação a isso.

Os europeus ainda são incapazes de enfrentar este assunto?

Acho que os europeus e os americanos não são capazes.

E, felizmente, pessoas como Ahmadinejad são tão ridículas que não podem ser levadas a sério. Se fossem um pouco mais inteligentes teriam uma influência enorme, porque algumas das coisas que dizem têm de ser levadas em consideração. Não se ganha nada em negar o Holocausto. Além de tudo o mais, é estúpido. E torna impossível que alguém com um pouco de sentido de justiça, de História, o leve a sério. Mas algumas das coisas que diz são absolutamente verdadeiras.

Tem dito que não é boa ideia excluir alguém do diálogo, porque mais tarde teremos aí um problema. Como vê a forma como o Ocidente tem lidado com o Hamas?

Não sou um político e não tenho contactos com políticos. Escrevo sobre o que observo. E parece-me que há uma ampla parte da ala política do Hamas que está disposta a aceitar a Proposta Saudita [e consequentemente a existência do Estado de Israel], mas o governo de Netanyahu não está a querer ver isso.

Ambos os lados estão convencidos de que o tempo está do lado deles. Esta é a tragédia hoje. Os israelitas pensam que se se mantiverem firmes o problema desaparece. E os palestinianos pensam que com a demografia têm uma hipótese.

Está a falar de um cenário trágico. Sente que não há saída?

De momento, tal como as coisas estão, sinto.

Do seu contacto com eles, o que pensa que aprendeu sobre os árabes que os israelitas geralmente não vêem?

Como todas as generalizações, o que vou dizer é um pouco exagerado e não se aplica a todos. Mas de forma geral, a grande contribuição dos israelitas para a Orquestra Divan é uma abertura, uma existência desprovida de inibições. São como são, e é preciso aceitá-los pelo que são. Isto é muito positivo, muito saudável. Não entendem algumas das subtilezas do comportamento humano que os árabes têm.

E os árabes têm inibições que eles não têm.

Há algo na mentalidade árabe que é menos directo. Não nos dizem: "É assim. Faz assim." Dão uma pista para tentarmos entender qualquer coisa. Depois, o momento em que nos encontramos uns com os outros é algo muito belo.

Os israelitas na orquestra tiveram um efeito muito benéfico. Os árabes aprenderam com eles a não ter complexos. Muitos árabes têm o complexo de que os israelitas os odeiam, mas ao mesmo tempo admiram o facto dos israelitas serem criativos, positivos, afirmativos. E na orquestra há uma interacção maravilhosa.

Portanto, está a criar o verdadeiro médio-oriental.

É por isso que falo de uma forma alternativa de pensar. A música não vai trazer paz, não vai trazer justiça, mas é uma forma alternativa de pensar.

Como vai o seu projecto de formação musical na Palestina?

Muito bem. Temos o centro da nossa fundação em Ramallah, a iniciação musical nos jardins de infância vai bem, cooperamos com o centro musical Al Kamandjati e abrimos um conservatório em Nazaré. Agora vamos abrir um outro em Jaffa.

Tem dito que a Orquestra Divan é a coisa mais importante da sua vida. Deixaria tudo por ela se fosse possível dedicar-se à orquestra a tempo inteiro?

Se a situação permitisse torná-la numa orquestra a tempo inteiro no Médio Oriente, deixava tudo automaticamente.

Os instrumentistas da orquestra têm percursos muito distintos a nível cultural e de formação. Essas diferenças interferem no trabalho musical?

Não interferem de todo. Temos uma maneira de trabalhar muito sólida e detalhada. Ainda há pouco estava a falar lá em baixo com um rapaz que foi primeiro violoncelista da orquestra vários anos. Este ano não pôde participar porque a sua mulher teve um bebé, mas viu o concerto de Londres na televisão. Tocámos aSinfonia Fantástica de Berlioz e ele não queria acreditar, o nível é o de uma das grandes orquestras do mundo. E dizia-me: "Já reparou que a orquestra tem apenas um ano de existência? Foi criada há 11 anos mas como funciona um mês por ano..." E porquê? Porque temos pessoas do mais alto nível. O concertino é da Filarmónica de Berlim, temos um oboé solista da Bayerischer Rundfunk e assim por diante. Há também pessoas que tocam em orquestras de nível intermédio e algumas crianças, por exemplo um violinista de 12 anos. Como é possível a orquestra atingir uma tal homogeneidade? Acontece que o trabalho é orientado sempre pelas mesmas mesmas pessoas da Staatskapelle Berlin [a orquestra da Berliner Staatsoper Unter den Linden, da qual Barenboim é maestro principal vatalício] desde o princípio. Sou sempre eu que dirijo e no final do Verão damos bolsas aos instrumentistas que não estão tão adiantados para prosseguirem os estudos. Normalmente vão para Berlim e continuam a trabalhar com os mesmos professores. Quando regressam em Julho estão muito melhor preparados e o processo repete-se ano após ano.

Nunca trabalham com outros maestros?


A única excepção foi Pierre Boulez.

A ideia subjacente ao projecto da Orquestra Divan é uma ideia humana, mas não se pode usar a música para outro fim. Por outras palavras, quando se faz música, ela tem de ser a prioridade principal. Não podemos dizer: "OK, isto não está assim tão bom mas não importa..." Desse modo a mediocridade instala-se e acabou-se. Por isso somos muito cuidadosos - eu diria mesmo severos - com a qualidade.

Os instrumentistas têm de sentir que devem ser os melhores?

Sim.

Como escolhe os programas?

Tento escolher peçaspivotda literatura musical: as Sinfonias de Beethoven,Variaçõesde Schoenberg, a música de Boulez. Este ano fizemos pela primeira vez uma ópera completa em versão de concerto - oFidélio de Beethoven - porque acho que é muito importante a relação com o texto.

Bach, Beethoven ou Wagner são compositores muito importantes na sua carreira mas esta temporada fará uma digressão Chopin, que começou aqui em Lisboa e assinala o bicentenário do nascimento do compositor em 2010. Qual é a sua visão da música de Chopin?

Há dois aspectos fundamentais, um deles puramente pianístico. É óbvio que Chopin escreveu para piano com uma facilidade e beleza dificilmente alcançada. Mas por outro lado, acho a linguagem musical extremamente atractiva. Não são apenas belas melodias. O contraponto e o mundo harmónico em Chopin são muito desenvolvidos. Não é uma coincidência que ele se tivesse interessado tanto por Bach. Sentimos um talento melódico que recorda Bellini e Donizetti, mas algumas das harmonias apontam para Liszt e Wagner. É um mundo fascinante.

Que pianistas prefere em Chopin?

[Arthur] Rubinstein. Ele limpou a interpretação de Chopin de uma série de hábitos que vinham da segunda metade do século XIX. Quando começou a carreira, no início do século XX, algumas pessoas consideravam-no extremamente seco, sem excessos. Rubinstein mostrou o classicismo da música de Chopin da mesma forma que Mravinsky mostrou o classicismo nas Sinfonias de Tchaikovsky. Não se trata só de explosão emocional. Rubinstein tinha um grande sentido do ritmo, o que não se associa habitualmente a Chopin, cuja imagem é identificada com a do compositor romântico que sofria de tuberculose... Admiro tanto Rubinstein! Há algo de extremamente saudável na sua maneira de encarar essa música.

A interpretação de Chopin deu lugar a muitos excessos como o abuso dorubato [aceleração ou desacelaração do andamento]...

O termo quer dizer "roubado". Se roubamos algo, num outro momento temos de o devolver. Acontece o mesmo na música, se roubamos tempo num momento importante da frase temos de o devolver noutro lado. Mas todos os grandes intérpretes que têm o sentido do "rubato" têm uma lógica no que fazem.

No seu livro refere que alguns maestros não escolhem o andamento adequado porque não compreendem adequadamente omelos[o fluir da melodia em relação com o ritmo, a tonalidade, ou a harmonia]. É o que pode suceder norubato?

O problema é que não se pode calcular. Orubato tem de ser espontâneo, mas também tem de ter lógica. Como podemos ser espontâneos e lógicos ao mesmo tempo? O outro problema é ser usado vagamente para atrasar o tempo. A liberdade do "rubato" tem de ir nas duas direcções: pode usar-se para andar mais devagar mas também mais depressa, às vezes é preciso acelerar.

Quais foram os maestros que atingiram esse equilíbrio entre tempo e compreensão do conteúdo musical?

Furtwängler.

E nas gerações posteriores?

Celibidache de certa forma, Mravinsky.

Escreveu que Furtwängler dirigia os ensaios como um filosófo e os concertos como um poeta. Este princípio também é válido para si?

Tento. Mas acho que temos de ensaiar como cientistas e não como filósofos. Devemos observar as coisas como num laboratório: esta nota tem de ser mais curta, esta passagem tem de ser mais forte, etc. Mas não podemos tocar ou dirigir num concerto dessa forma. Tem de haver uma compreensão natural.

Faz trabalho analítico antes de interpretar uma obra, mas por outro lado fala muito de liberdade na interpretação. Como se conciliam as duas vertentes?

Há uma grande diferença entre liberdade e anarquia. Liberdade é também o resultado do pensamento e da necessidade de fazer isto ou aquilo para expressar determinada coisa. Não é o mesmo que dizer: "Não quero saber, sinto assim e vou fazer assim."

A verdadeira liberdade vem da disciplina?

Absolutamente. Quanto mais soubermos sobre uma coisa, mais podemos voar.
Há música recente nos países árabes que se possa adequar à sua orquestra e lhe desperte interesse como maestro?

Sim, há alguns bons compositores na Síria e em Israel. Noutros países, menos.

E em relação ao desenvolvimento da linguagem musical em geral nas últimas décadas, qual é a sua opinião?

Gosto muito da música de dois velhos mestres: Pierre Boulez e Elliott Carter. Encontraram um novo idioma nos últimos 15 ou 20 anos. Destilaram a essência da música, livrando-se de complexidades desnecessárias. Boulez e Carter nos anos 50 eram incrivelmente complicados. A música deles não era apenas complexa, era complicada. Mas agora, sem a música ter perdido complexidade, puseram as complicações de lado.


A Rede para Difusão da Cultura Árabe-Brasileira Samba do Ventre tem como missão incentivar e promover pesquisas da agregação de valor da cultura árabe à cultura brasileira, e proporcionar a integração com diversas  comunidades na busca "Pela Paz no Oriente Médio e pela valorização da auto-estima  do povo árabe e seus descendentes através da música, da dança oriental e todas as manifestações sócio-culturais que derivaram deste caldeirão étnico chamado BRASIL."
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