Começa a mãe de todas as batalhas
A situação boliviana, como se costuma dizer na mídia, é volátil. A opinião pública é sacudida por uma série de acontecimentos, a maioria caracterizados pelo extravasar da fúria reacionária, particularmente no Oriente do país. Todos estes acontecimentos – que em breve farão parte das páginas da convulsa história política boliviana – não se caracterizam, no entanto, por nenhum traço original. Para dizê-lo em curtas palavras, mais não são do que episódios do desencadeamento de operações contra-revolucionárias de inconfundível cunho fascista. A semana passada, segundo o tinha antecipado, a União Juvenil de Santa de Santa Cruz ocupou uma série de instalações do governo central. O pretexto para estas ocupações era a execução dos resultados dos inconstitucionais «estatutos autonômicos». Segunda a interpretação da direita destes estatutos «todas estas instituições pertenciam aos povos de Santa Cruz, Beni, Tarija, etc.» e «deviam ser retirados ao governo centralista» para serem postos «ao serviço do povo» das suas regiões.
Os fatos revelam que essa é, no mínimo, uma retórica cínica. Quase todas as instalações ocupadas foram seriamente danificadas. Algumas delas completamente saqueadas e inutilizadas; alguns edifícios foram literalmente destruídos, como o da Empresa Nacional de Telecomunicações em Santa Cruz. Alguns dos escritórios sofreram saques que denunciam o seu objetivo. Nas instalações departamentais do Instituto Nacional da Reforma Agrária, milhares de documentos, processos referentes a terras e resoluções de entrega de terras às comunidades camponesas e povos originários foram queimados. Estas ações têm conexão direta com a «reocupação» de prédios conhecidos como Terras Comunitárias de Origem (TCO). É o caso de Monteverde (Santa Cruz), propriedade coletiva, recentemente reconhecida como do povo chiquitano. Não se trata de ninharia. São um milhão de hectares que pretendem usufruir os latifundiários.
Uma parcimônia suspeita
Chama a atenção o fato de algumas das ocupações terem sido acompanhadas de agressões a membros da polícia e do exército que, estranhamente, tiveram uma atitude quase passiva. Deixaram que soldados, polícias e até coronéis fossem sovados e insultados de modo nunca visto. Voltaremos ao significado desta passividade.
Os grupos fascistas, identificados com a cruz dos templários e algumas vezes com a cruz gamada, acentuaram a sua presença nas ruas, particularmente em Santa Cruz, dedicando-se a insultar e agredir, por vezes com inusitada brutalidade, sobretudo pessoas com traços índios. Inclusive humilharam mais os identificáveis pela sua roupa típica. Ensaiaram razias contra mercados camponeses (em Tarija) e no «Plano 3.000» (cidade de Santa Cruz). Nestes casos, as populações reagiram e repeliram com êxito, pela primeira vez, os esquadrões paramilitares.
Tudo isto é a confirmação da causa da resistência, do complot e da violência fascista: a defesa dos interesses dos representantes das transnacionais e latifundiários e a execução dos planos incentivados e desenhados pela CIA e a embaixada estadunidense.
O Inocultável rosto fascista
O fato mais grave registrou-se dia 11, nas localidades de El Porvenir e Filadélfia, departamento de Pando. Um importante grupo de camponeses dirigia-se nesse dia a Cobija, capital departamental, para realizar uma reunião ampla, quando foi interceptado num ponto do trajeto e acabou atacado a tiro impunemente por empregados da prefeitura de Pando e, talvez, por sicários estrangeiros. Foram assassinados 17 camponeses e estudantes e feridos mais de quarenta pessoas. Até hoje ainda não se soube o número total das vítimas.
O inaudito deste massacre é que foram vitimadas mulheres e crianças. A estes, antes de os assassinarem, bateram-lhes e flagelaram-nos. Os cadáveres dos menores não foram até agora encontrados. Também não podemos omitir que os agressores atiraram sobre alguns feridos e mataram-nos e outros foram submetidos a torturas, procurando que se denunciassem a si mesmos como agressores enviados pelo governo. Há relatos de parentes das vítimas que acusam que até os cadáveres foram violentados. Não é exagero dizer que o que sucedeu em Pando foi um genocídio.
O governo teve que decretar o estado de sítio no departamento. A recuperação do aeroporto significou perdas adicionais de vidas. Franco-atiradores colocados na mata assassinaram um recruta e um pastor evangélico. Os militares limitaram-se a recuperar o aeroporto e só muito paulatinamente entraram na cidade, onde a resistência dos grupos de choque e dos militantes da direita se foi diluindo. Mesmo depois do estado de sítio, um grupo armado conseguiu passar para o município de Filadélfia, ateando fogo em muitos prédios.
O Povo resolve organizar-se e lutar
Em alguns círculos militares comentou-se que as medidas tomadas foram aplicadas muito lentamente, sem resolução. Isto, imediatamente compreendido pela população, provocou uma grande efervescência popular. Centenas de milhares de manifestantes, em diversas assembléias e reuniões, sobretudo nos departamentos do centro e de ocidente, quase de modo espontâneo, começaram a discutir a organização de destacamentos, brigadas e outras iniciativas com um sentido muito definido: alistar-se para defender a integridade nacional, a democracia e a soberania nacional, para continuar o processo de mudanças progressistas. O tom principal deste ânimo social é o patriotismo. Lembra o ânimo dos patriotas da independência, como se tratasse, na verdade, de uma batalha pela segunda (e definitiva) independência nacional.
Apesar dos fascistas nos terem habituado a distorcer a verdade, não é demais mencionar que os meios de comunicação da direita pretendem torcer a verdade dos acontecimentos, a começar pelo prefeito Fernández. Este não teve mais nada para dizer, a não ser que os massacrados eram «pseudocamponeses», enviados e armados pelo governo. Inclusive, apareceu num programa de televisão onde, com uma desfaçatez indescritível, negou as acusações, praticamente na frente dos sobreviventes.
O separatismo não será fácil
Nos meios diplomáticos e em todo o mundo teve uma enorme repercussão a resolução do presidente Morales de declarar persona non grata o embaixador americano Goldeberg. A verdade é que os atos e movimentos de Goldberg eram há muito tempo, mais do que uma suspeita, uma evidência. Além da sua participação na conspiração contra Evo Morales, antecedia-o um extenso rol de outras ações entre as quais se destacava a sua ação no Kosovo. É conhecido como um especialista a desmantelar países. Suspeita-se de todas as suas ações, incluindo o ter alguma coisa a ver com o estatuto «autonômico» de Santa Cruz, que apresenta sugestivas concordâncias com a constituição política da «república» do Kosovo. A sua expulsão adquiriu a exata projeção que devia ter, juntamente com a expulsão do embaixador Duddy da Venezuela. Ao cabo e ao resto, Goldberg não era mais do que uma peça no quadro conspirativo desenhado pela CIA contra todos os governos progressistas da América Latina. Dois objetivos são evidentes: A derrubada dos mandatários ou o magnicídio destes ou, finalmente, a divisão do país. Zulia na Venezuela, Guayaquil no Equador e Santa Cruz na Bolívia. Na saída, Goldberg, na sua declaração à imprensa, pôs especial ênfase no tema do narcotráfico. Há que ter em conta a referência e o governo de Evo não deve esquecê-la por um momento que seja.
A alternativa separatista é difícil de levar à prática. Primeiro, pela própria resistência que gerará nos departamentos em cisão. O Plano 3.000, em Santa Cruz, é uma cidadela de uns 400.000 habitantes, onde a resistência ao prefeito Costas e aos grupos de choque da União Juvenil está a organizar-se e a adquirir a decisão de se defender e lutar pela sua liberdade e dignidade. Depois, há a decisão de importantes organizações sindicais e da própria Central Operária Boliviana (COB) que planeja realizar uma reunião ampla na própria capital de Santa Cruz, dir-se-ia no olho do furacão. Um verdadeiro desafio que, só com o seu anúncio, muda positivamente a perspectiva.
O contexto sul-americano
Também o ambiente sul-americano não é favorável aos sediciosos e separatistas. A reunião de urgência da UNASUR (União da Nações Sul-americanas), a que assistiram 8 presidentes, foi firme na rejeição das intenções golpistas ou separatistas. Ressaltam as palavras de Chávez, comparando a situação boliviana de agora com a que se deu no Chile há 35 anos, quando todos «ficaram mudos» perante a imolação de Salvador Allende, provocada pela ingerência do imperialismo norte-americano. Chávez, muito serenamente, disse que a América Latina mudou, já não somos mudos.
A Bolívia é conhecida pela sua combatividade, pelas tradições da sua classe operária, pela incorporação dos camponeses e agora também pela presença ativa dos povos indígenas. São demasiados fatores e um grande empurrão da História que não será fácil os reacionários superarem. Mas os revolucionários não podem dormir sobre os louros e o governo abandonar a sua guarda.
La Paz, 16 de Setembro de 2008
* Marcos Domich é membro da Comissão Política do Partido Comunista da Bolívia.