(*) Esse artigo foi publicado originalmente em janeiro de 2009. A Carta Maior decidiu republicá-lo agora, pois o mesmo mantém uma notável atualidade e ajuda a entender a relação da situação atual do conflito entre Israel e Palestina com seu passado recente.
“Se o Hamas quer acabar com Israel, Israel tem que acabar com o Hamas antes”. Efraim, 23 anos, estudante de uma escola religiosa de Jerusalém - FSP 24/01/2009. Durante vinte e um dias de bombardeio contínuo, Israel lançou 2500 bombas sobre a Faixa de Gaza – um território de 380 km2 e 1.500 milhão de habitantes - deixando 1300 mortos e 5500 feridos, do lado palestino, e 15 mortos, do lado militar israelita. A infraestrutura do território foi destruída completamente, junto com milhares de casas e centenas de construções civis. E é provável que Israel tenha utilizado bombas de “fósforo branco” - proibidas pela legislação internacional com consequências imprevisíveis, no longo prazo, sobre a população civil, em particular a população infantil.
Ban Ki-moon, secretário-geral da ONU, se declarou “horrorizado”, depois de visitar o território bombardeado, e considerou “escandalosos e inaceitáveis” os ataques israelitas contra escolas e refúgios mantidos em Gaza, pelas Nações Unidas.
Richard Falk, relator especial da ONU sobre a situação dos Direitos Humanos em Gaza, também declarou que, “depois de 18 meses de bloqueio ilegal de alimentos, remédios e combustível, Israel cometeu crimes de guerra, e contra a humanidade, na sua última ofensiva contra os territórios palestinos. Crimes ainda mais graves porque 70% da população de Gaza tem menos de 18 anos”. Dentro de Israel, entretanto - com raras exceções - a população apoiou a operação militar do governo israelense. Mais do que isto, as pesquisas de opinião constataram que o apoio da população foi aumentando, na medida em que avançavam os bombardeios, até chegar a índices de 90%. E no final, na hora do cessar-fogo, metade desta população era favorável à continuação da ofensiva, até a reocupação de Gaza e a destruição do Hamas. (FSP, 24/01/09).
Seja como for, duas coisas chamam a atenção – de forma especial - nesta ultima guerra: a inclemência de Israel, e sua indiferença com relação às leis e às críticas da comunidade internacional. Duas posições tradicionais da política externa israelense, que têm se radicalizado cada vez mais, e são quase sempre explicadas pela “escalada aos extremos” do próprio conflito. Mas existe um aspecto desta história que quase não se menciona, ou então é colocado num segundo plano, como se as “visões sagradas” do mundo e da história fossem uma característica exclusiva dos países islâmicos.
Desde sua criação, em 1948, Israel se mantém sem uma constituição escrita, mas possui um sistema político com partidos competitivos e eleições periódicas, tem um sistema de governo parlamentarista segundo o modelo britânico, e mantém um poder judiciário autônomo. Mas ao mesmo tempo, paradoxalmente, Israel é um estado religioso, e uma grande parte da sua população e dos seus governantes, tem uma visão teológica do seu passado, e do seu lugar dentro da história da humanidade. Israel não tem uma religião oficial, mas é o único estado judeu do mundo, e os judeus se consideram um só povo, e uma só religião que nasce da revelação divina direta, e não depende de uma decisão, ou de uma conversão individual: “se ouvirdes a minha voz e guardardes a minha aliança, sereis uma propriedade peculiar entre todos os povos. Vós sereis para mim um reino de sacerdotes e uma nação santa” (Êxodo, 19, 5-6).
Alem disto, o judaísmo estabelece normas e regras específicas e inquestionáveis que definem a vida quotidiana e comunitária do seu povo, que deve se manter fiel e seguir de forma incondicional as palavras do seu Deus, mantendo-se puros, isolados e distantes com relação aos demais povos e religiões: “não seguireis os estatutos das nações que eu expulso de diante de vós... Eu Javé, vosso Deus, vos separei desses povos. Fareis distinção entre o animal puro e o impuro.. não vos torneis vós mesmos imundos como animais, aves e tudo o que rasteja sobre a terra” (Levítico, 20, 23-25) .
Para os judeus, Israel é a continuação direta da história deste “povo escolhido”, e por isto, a sua verdadeira legislação ou constituição são os próprios ensinamentos bíblicos.. A Torá conta a história do povo judeu e é a lei divina, por isto não pode haver lei ou norma humana que seja superior ao que está dito e determinado nos textos bíblico, onde também estão definidos os princípios que devem reger as relações de Israel com seus vizinhos e/ou com seus adversários.
Em Israel não existe casamento civil, só a cerimônia rabínica, e os soldados israelenses prestam juramento com a Bíblia sobre o peito e com a arma na mão: “Javé ferirá todos os povos que combateram contra Jerusalém: ele fará apodrecer sua carne, enquanto estão ainda de pé, os seus olhos apodrecerão em suas órbitas, e a sua língua apodrecerá em sua boca.” (Zacarias, 14, 12-15).
As ideias religiosas dos povos não são responsáveis nem explicam necessariamente as instituições de um país e as decisões dos seus governantes. Mas neste caso, pelo menos, parece existir um fosso quase intransponível entre os princípios, instituições e objetivos da filosofia política democrática das cidades gregas e os preceitos da filosofia religiosa monoteísta que nasceu nos desertos da Ásia Menor. Mas o que talvez seja mais importante do ponto de vista imediato do conflito entre judeus e palestinos, e do próprio sistema mundial, é que Israel - ao contrário dos palestinos – junto com sua visão sagrada de si mesmo, dispõe de armas atômicas, e de acesso quase ilimitado a recursos financeiros e militares externos.
Com estas ideias e condições econômicas e militares, Israel seria considerado – normalmente - um estado perigoso e desestabilizador do sistema internacional, pela régua liberal-democrática dos países anglo-saxônicos. Mas isto não acontece porque no mundo dos mortais, de fato, Israel foi uma criação e segue sendo um protetorado anglo-saxônico que opera desde 1948, como instrumento ativo de defesa dos interesses estratégicos anglo-americanos, no Oriente Médio. Enquanto os anglo-americanos operam como a âncora passiva do “autismo internacional” e da “inclemência sagrada” de Israel.