Chipre, Islândia: pequenos países, grandes destinos

O euro revelou-se uma armadilha. A soberania da moeda cipriota – e européia – é definida alhures: em Frankfurt, em Bruxelas, em Berlim, com uma pequena participação de Paris. Mas seria um erro dizer que a culpa é da moeda. A responsabilidade cabe, em primeira e última instância, aos que detém a hegemonia sobre ele, os tecno-burocratas que regem a vida dos governantes daquelas capitais.

A melhor frase para se definir o estado da atual “crise do Chipre”, que outra não é senão a crise na neoliberal União Européia, encontra-se no inglês: “the plot thickens”. “Plot” quer dizer “enredo”, mas a melhor tradução na nossa língua é “o caldo engrossa”.

Engrossa para trás e para diante.


Para trás: dedos e unhas seguem crispados, apontando culpas e culpados. Os políticos cipriotas culpam Wolfgang Schäuble, o ministro das Finanças alemão, apontado como o principal “falcão” da reunião do fim de semana em que se definiu o “genial” plano de assaltar as contas de todos os correntistas em 6,75% até 100 mil euros e 9,9% acima. “As through this world I roam/I’ve seen lots of funny men/Some rob you with a six gun/Some with a fountain pen”, dizia célebre canção de Pete Seeger, dos tempos da Grande Depressão. Ela se aplica inteiramente ao caso.

Schäuble se defende. Diz que não queria penalizar os pequenos correntistas. Queria apenas que o Chipre também se responsabilizasse pela cobertura do rombo dos bancos. Por trás de seu empenho paira a futura eleição alemã, no segundo semestre, e uma opinião pública fomentada por uma mídia – mais ou menos sensacionalista – segundo a qual todo o problema deriva da promiscuidade orçamentária que prevalece no sul da Europa – promiscuidade pública e privada. Mas também paira um parecer atribuído ao FMI, segundo o qual qualquer novo endividamento do governo de Chipre acima de 10 bilhões de dólares tornaria o país insolvente.

Por trás do parecer, a impávida Christine Lagarde argumenta que jamais defendeu que os pequenos e médios correntistas cipriotas fossem penalizados. Isto, parece, é verdade. Os dedos e unhas então se voltam para o governo de Nicos Anastasíade, o novo governante conservador que, apenas 24 horas após empossado, sucedendo a um governo chefiado por um ex-comunista, se viu no meio da maior tempestade que se abateu sobre a ilha desde sua ocupação, ao norte, pelo Exército turco, no final do século passado.

Nicos, diante da imposição de que seu governo teria de levantar 7 bilhões de euros da noite para o dia, teria se recusado a penalizar mais os grandes investidores – russos, britânicos e outros – que, atraídos pelo paraíso fiscal em que Chipre se transformou, graças ao governo do ex-comunista que deixou o poder há pouco, detém somas fabulosas no país. Os russos, por exemplo, são responsáveis por 31 bilhões de euros nos insolventes bancos cipriotas e mais de 40 bilhões de investimentos em empresas sediadas em Chipre, o que não quer dizer que sejam nacionais.

A opção teria sido zerar ou diminuir as “contribuições” das “sardinhas” e aumentar para 12,5% ou 15% a contribuição dos “tubarões”. Isto, temia o debutante Anastasíades, poderia afugentar os alienígenas, afundando o sistema bancário de imediato.

Os dedos então se voltam para o futuro. O que fazer? Da Rússia, o czariato governante acena com a possibilidade de algum socorro. Isto é uma novidade: pela primeira vez a Rússia é envolvida diretamente na crise europeia. Mas seu preço seria alto: o controle sobre as reservas de gás descobertas na costa de Chipre. Putin nem confirma nem nega esta opção.

Reunidos em vídeo-conferência de emergência, os ministros da Zona do Euro acenaram com a redução para 3% da “contribuição” dos depósitos até 100 mil euros, mais a isenção até 20 mil. Mas isto elevaria a contribuição dos magnatas. Anastasíades hesita.

Por fora, correntistas italianos e espanhóis se assustam. Ninguém acredita na declaração de que “Chipre é um caso único”. Todos temem por suas contas. Exemplo (mau): a Grã-Bretanha suspendeu os pagamentos de seu pessoal militar acampado na ilha (devido à presença turca, em parte, talvez ainda a ecos da antiga Guerra da Criméia) através dos bancos cipriotas. Ao invés, enviou um avião militar recheado por um milhão de euros em notas pequenas, prova de que o colchão tornou-se mais seguro do que o banco.

A Igreja Ortodoxa de Chipre, através de seu patriarca, o arquibispo Chrysostomos II, anuncia que vai mobilizar seus recursos para ajudar o país. E eles não são poucos, envolvendo terras, ações bancárias e até uma cervejaria.

Ainda não se sabe o que fazer, nem o que vai acontecer. Os economistas e comentaristas ortodoxos permanecem inflexíveis: a Europa deve endurecer com Chipre e seus correntistas insatisfeitos e ingratos. À “generosa” ajuda dos “contribuintes europeus”, responderam com “intolerável arrogância”, protegendo, na verdade, oligarcas russos. Os russos esperam salvaguardar suas contas enquanto o Kremlin arma o bote sobre as reservas de gás. O governo de Chipre, espremido entre as manifestações de rua e os sobrolhos em Bruxelas e Frankfurt, não sabe, na verdade, o que fazer. Os cipriotas vão à rua. Haverá esperança para sua causa? É difícil prever. Não entram nos cálculos dos tecno-burocratas que informam o comportamento de Frankfurt, Bruxelas e Berlim, como o jovem Jeroen Dijsselbloem, ministro das Finanças da Holanda e presidente do Grupo do Euro.

Mas não custa perguntar como o Chipre foi para nesta situação. Através da desregulamentação de seu sistema bancário, ora. Como na pequena Islândia, o sistema bancário do pequeno Chipre cresceu desmesuradamente. Foi ao equivalente a oito ou dez vezes – ou mais, as cifram variam – o seu PIB anual. Quer dizer, além de ingovernável, tornou-se inafiançável. Movido pela ganância especulativa, investiu zilhões de seus capitais em “bonds” da dívida grega. Quando esta foi “reestruturada”, cortando na carne dos montantes a serem pagos, os bancos cipriotas não tiveram o fluxo de capitais necessário para pagar as próprias dívidas. Entraram em falência e em pânico. O governo não tinha como ajudá-los. Ressalvadas as proporções, como o Titanic, seu tamanho os perdeu. E, como o Titanic, sem botes salva-vidas.

Há um elemento de corte nestes destinos. Na época (2008/2009) o governo islandês quis fazer algo semelhante ao cipriota. Com uma diferença: ao invés de um assalto abrupto, foi planejado um ritmo de conta-gotas: os islandeses pagariam um imposto-extra, durante anos a fio, para honrar a dívida de seus bancos, nacionalizada pelo governo. Este, no entanto, caiu. O novo governo, social-democrata, evitou o assalto. Contava, como poderosa auxiliar, com a soberania sobre sua moeda, a coroa. Pôde ajustá-la, de acordo com suas necessidades. Disto, o Chipre não desfruta. O euro revelou-se uma armadilha. A soberania da moeda cipriota – e europria – é definida alhures: em Frankfurt, em Bruxelas, em Berlim, com uma pequena participação de Paris.

Mas seria um erro dizer que “a culpa é do euro”. A responsabilidade cabe, em primeira e última instância, aos que detém a hegemonia sobre ele, os tecno-burocratas que, por detrás da cortina, regem a vida dos governantes daquelas capitais. Formados todos num brete econômico – o do ideário ortodoxo – não abrirão nem mesmo uma pequena fresta na Cortina de Ferro de seus ideais onde o povo, decididamente, não tem lugar, a não ser como cobaia ou pasto de suas chuvas, frentes frias e outras intempéries.


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