O fim do poder, do escritor e analista de assuntos econômicos e políticos Moisés Naím, é um artigo inspirado: aborda tendências que muitos já havíamos percebido, sem relacioná-las umas às outras. Paradoxalmente, às vezes é difícil enxergarmos o óbvio.
Vale a pena reproduzir, na íntegra, o texto do venezuelano Naím, que serve como ponto de partida para depois eu ampliar um pouco o foco:
"O que têm em comum o aquecimento global, a crise na zona do euro e os massacres na Síria? O fato de ninguém ter o poder de detê-los. Cada uma dessas situações vem se deteriorando em plena vista do mundo. As três implicam graves perigos e o sofrimento de milhões de pessoas. Há ideias do que fazer em relação às três. Mas não acontece nada.
Há reuniões de ministros, cúpulas de chefes de Estado, exortações de líderes sociais, religiosos e acadêmicos. Nada. Diariamente, somos informados de que cada uma dessas crises segue adiante na corrida desembestada rumo ao despenhadeiro. E...? Nada. Não ocorre nada.
É como assistir a um filme em câmera lenta em que um ônibus cheio de passageiros ruma ao precipício, enquanto o motorista não pisa no freio nem muda de direção. O problema é que todos estamos nesse ônibus. No mundo atual, o que acontece em outro lugar, por distante que pareça ser, acaba nos afetando.
Mas minha metáfora é imperfeita. Supõe que o freio e o volante funcionem e que exista um motorista com o poder de frear ou mudar de rumo. Porém não é o que ocorre.
No caso dessas três crises -e de muitas outras-, não há um motorista único, e sim vários. E cada vez há mais motoristas, ou candidatos a motoristas, que, embora não tenham o poder de decidir a direção e a velocidade do ônibus, têm, sim, o poder de impedir que sejam tomadas decisões das quais discordam.
"É impossível ignorar os efeitos do clima sobre todos nós e sobre as gerações que vão nos seguir" |
Rússia e China não podem solucionar a crise na Síria. Mas podem vetar as tentativas de outros países de deter as matanças. Os líderes de Itália, Espanha ou Grécia precisam da ajuda de outros países e de entidades como o Banco Central Europeu ou o FMI para enfrentar sua crise. Contudo, embora nem Angela Merkel nem os órgãos internacionais tenham o poder de solucionar a crise, eles podem bloquear o jogo.
Com o aquecimento global é a mesma coisa. As evidências científicas avassaladoras confirmam que a atividade humana está aquecendo o planeta, o que gera variações climáticas traumáticas. Se as emissões de certos gases não diminuírem, as consequências para a humanidade serão desastrosas.
E, se para alguns é fácil ignorar a tragédia síria, por estar muito distante, ou a europeia, por lhes ser alheia, é impossível ignorar os efeitos do clima sobre todos nós e sobre as gerações que vão nos seguir.
Essas três crises são uma manifestação de uma tendência que as ultrapassa e que molda muitas outras esferas: o fim do poder. Isso não significa que o poder vá desaparecer ou que já não haja atores com imensa capacidade de impor sua vontade a outros. Significa que o poder vem ficando cada vez mais difícil de exercer e mais fácil de perder. E que quem tem poder hoje está mais limitado em sua aplicação do que eram seus predecessores.
O presidente dos EUA (ou da China), o papa, o chefe do Pentágono ou os responsáveis por Banco Mundial, Goldman Sachs, 'The New York Times' ou qualquer partido político hoje têm menos poder do que aqueles que os precederam.
O fim do poder é uma das principais tendências que vão definir o nosso tempo".
A SOLUÇÃO REAL PARA A CRISE ECONÔMICA É O FIM DO CAPITALISMO
Apesar de terem como ponto comum a chocante omissão dos que deveriam liderar a humanidade face a elas, tais crises guardam também diferenças significativas entre si.
O colapso da economia capitalista é inevitável e sua agonia já se prolonga muito mais do que deveria. Trata-se de uma óbvia consequência da contradição entre a produção coletiva dos bens e a apropriação individual de parte significativa dos frutos desse trabalho coletivo, gerando permanente descasamento entre produção e consumo.
Como uns não recebem um quinhão proporcional ao que produziram e outros não têm nem o que fazer com a imensidão de quinhões alheios que usurparam, geram-se distorções em escala geométrica, desembocando nas crises cíclicas do capitalismo flagradas no tempo de Marx.
O capitalismo conseguiu, principalmente graças aos mecanismos de crédito que vão esticando a corda do elástico, impedir que tais crises ocorram periodicamente (como outrora pipocavam mais ou menos de dez em dez anos).
Mas, a artificialidade do edifício erigido é tal que o acerto de contas --todo mundo, governos, empresas e cidadãos, gasta mais do que possui e vai empurrando com a barriga dividas que não teria como saldar--, adiado indefinidamente, acabou emperrando a economia mundial como um todo.
Não há mais como escapar. Marchamos para uma depressão pior ainda que a da década de 1930; e, se tivermos sorte, para uma revolução que conduza a humanidade para um estágio superior de civilização. Se tivermos azar, para o caos e a barbárie.
Engels alertou que é esta a consequência de se represar as revoluções necessárias e prementes; segundo ele, ao impedir que o levante dos gladiadores de Spartacus desse fim à escravidão, liberando as forças produtivas do Império Romano, este se condenou ao desaparecimento, ensejando um retrocesso tão acentuado que a civilização levou um milênio para alcançar de novo o estágio de desenvolvimento já atingido por Roma.
JÁ PASSOU DA HORA DE DETERMOS A HECATOMBE HUMANITÁRIA NA SÍRIA
Diferentemente, a crise síria poderia ser resolvida. Ocorre que os desatinos da intervenção da Otan na Líbia estão sendo, até agora, obstáculo a uma solução civilizada.
Ditadores são difíceis de remover, pois usam parte do que saquearam dos seus povos para armarem-se até os dentes e não hesitam em recorrer às mais bestiais torturas e as matanças mais indicriminadas para perpetuarem-se no poder.
Quando, finalmente, os cidadãos pegam em armas contra as tiranias, há, sim, motivo para (e necessidade de) a comunidade internacional intervir, para evitar que sejam massacrados. Até aí a ONU estava certa no caso da Líbia --por mais que uma esquerda que ainda não saiu das trevas do stalinismo berre e esperneie, continuarei defendendo esta postura civilizada.
Mas, num ponto qualquer do caminho, a Otan extrapolou a missão que a ONU lhe conferiu. Ao invés de apenas defender a população civil e evitar massacres, passou a conduzir ela própria as operações militares para a derrubada de Gaddafi. Cabia aos líbios livrarem-se por si sós do odioso tirano, não à Otan fazer o serviço no lugar deles.
Tal erro acabou tendo trágicas consequências, não só na Líbia, como as que se verificam hoje na Síria, onde há muito tempo deveria ter havido uma intervenção da ONU, nos mesmíssimos moldes daquela que ela autorizou contra Gaddafi, apenas zelando para que desta vez fosse mantida sob estrito controle.
O preço da omissão é a destruição do país e os sofrimentos terríveis que estão sendo impostos a centenas de milhares de sírios. Nenhuma racionália geopolítica justifica tal hecatombe humanitária. Quem compactua com tais horrores é tudo, menos um seguidor de Marx ou Proudhon. Está mais para herdeiro de Pol Pot e Vlad Dracul.
A CONTAGEM REGRESSIVA PARA OFIM DA HUMANIDADE ESTÁ EM CURSO
Finalmente, a destruição das próprias bases da sobrevivência da espécie humana por parte do capitalismo --e aqui nos referimos não só ao aquecimento global, mas também ao malbaratamento de recursos finitos que nos são essenciais, como a água-- não cessará enquanto a organização social e econômica priorizar interesses particulares e não a promoção do bem comum.
Ninguém precisa ser cientista para perceber que o quadro se agrava insensivelmente, que as alterações climáticas causam cada vez mais estragos e (vide Fukushima) que corremos enorme risco de as inundações e terremotos servirem como estopins de acidentes nucleares.
Mas, há cientistas pagos pelos agentes do juízo final para proclamarem exatamente o contrário, minimizando o perigo. Há nações que proclamam a prevalência do seu direito ao crescimento econômico sobre os interesses maiores da humanidade, inclusive a salvação da espécie humana.
Então, repetindo a conclusão sobre a agonia da economia capitalista:
- se tivermos sorte, quando a escalada de catástrofes intensificar-se a ponto de não restarem mais dúvidas de que marchamos para o fim, os homens se unirão numa luta coletiva pela sobrevivência e depois cuidarão de reconstruir a sociedade em bases solidárias, pois vão saber muito bem aonde o cada um por si desemboca;
- se tivermos azar, ou a espécie humana será extinta, ou o retrocesso vai ser maior ainda que o ocorrido após a queda do Império Romano.
É simples assim. É terrível assim.
* jornalista e escritor. http://celsolungaretti-orebate.blogspot.com