STF LIBERTA O BICHEIRO QUE FOI TORTURADOR DA DITADURA

Momento da detenção, em
2007; acaba sempre saindo.

Ele foi toi um dos principais torturadores da PE da Vila Militar (RJ), unidade na qual morreu assassinado, no final de 1969, o militante Chael Charles Schreier, 23 anos, companheiro de Dilma Rousseff na VAR-Palmares.
Ele é citado nos testemunhos de outros presos como autor de alguns dos chutes e pontapés que causaram a morte de Schreier por “contusão abdominal com rupturas do mesocólon transverso e mesentério, com hemorragia interna”.
Foi  surpreendido, com outros integrantes da sua equipe de torturadores, tentando roubar a carga de contrabandistas aos quais eles achacavam habitualmente.
Estigmatizado no próprio Exército, iniciou nova carreira como bicheiro em Niterói.
Foi  várias vezes preso como chefão do jogo do bicho e dos bingos.
É acusado de pertencer a grupos de extermínio do Espírito Santo.
Acaba de ser libertado pelo Supremo Tribunal Federal, que conseguiu enxergar motivos para conceder a um cidadão com tal prontuário o direito de aguardar em liberdade o julgamento do seu  recurso contra a condenação a 48 anos de detenção que lhe foi imposta pela juíza Ana Paula Vieira de Carvalho, da 6ª Vara Federal Criminal do RJ, como consequência da  Operação Furacão, deflagrada pela Polícia Federal em 2007.
Seu nome, claro, é Ailton Guimarães Jorge, vulgo  Capitão Guimarães.
A decisão de emporcalhar as ruas do Rio, infelizmente, partiu do ministro Marco Aurélio Mello, de atuação muito digna em casos como o de Cesare Battisti e do garoto Sean, que Gilmar Mendes trocou por um subsídio a exportadores. Depois de muitas no cravo, Mello acaba de acertar uma na ferradura --e das piores!
Para ele, como a sentença é de primeiro grau, cabe recurso. Então, o réu ainda disporia do benefício da dúvida, já que o processo não transitou em julgado.  Mas, até este réu?!
Capitão Guimarães foi um dos 25 contraventores  que a PF acusou há cinco anos de explorarem jogos de azar no País, inclusive subornando membros do Executivo, Legislativo e Judiciário.

Schreier é da fase em que o Capitão
Guimarães assassinava resistentes

Presidente da Liga Independente das Escolas de Samba do Rio de Janeiro, ele já havia sido condenado em 1993 por envolvimento com o jogo-do-bicho, ao lado de outros 13  banqueiros, pela juíza Denise Frossard. Sabia-se que eles todos eram responsáveis por, pelo menos, 53 mortes.
Pegaram seis anos de prisão cada, a pena máxima por formação de quadrilha. Mas, em dezembro de 1996 estavam todos de volta às ruas, beneficiados por liberdade condicional ou indultos.
Afora os crimes atuais, que fazem do  Capitão Guimarães um personagem emblemático do que há de pior neste país, ele continua sendo o mais notório exemplo vivo do banditismo inerente aos órgãos de repressão da ditadura militar.
A outra celebridade capaz de rivalizar com ele nesse quesito já morreu, como um  arquivo queimado pelos próprios cúmplices: o delegado Sérgio Paranhos Fleury, em cujo benefício os militares chegaram até a criar uma lei, com o único propósito de mantê-lo fora das grades.
O Capitão Guimarães atuava na II seção (Inteligência) da PE da Vila Militar (RJ), que, como todas as equipes de torturadores da ditadura, auferia ganhos substanciais ao capturar ou matar militantes revolucionários.
Tudo que era apreendido com os resistentes e tivesse algum valor, virava butim a ser rateado entre aqueles rapinantes. Jamais cogitavam, p. ex., devolver o dinheiro aos bancos que haviam sido  expropriados pelos guerrilheiros urbanos. Numerário, veículos, armas e até objetos de uso pessoal iam sempre para a  caixinha do bando. De mim, até os óculos roubaram.
Havia também as vultosas recompensas oferecidas pelos empresários fascistas. Estes acertaram inclusive uma tabela com os órgãos de repressão: dirigente revolucionário preso valia tanto; integrante de  grupo de fogo, um pouco menos, e assim por diante.
RAPINANTES À BEIRA DE
UM ATAQUE DE NERVOS

Ocorre que, em novembro de 1969, como conseqüência das torturas aplicadas por Ailton Guimarães Jorge e seus comparsas, morreu o estudante Schreier. O episódio repercutiu pessimamente no mundo inteiro e no próprio Brasil, onde a revista Veja fez uma matéria-de-capa histórica sobre as torturas.

Depois desta edição da Veja, a
censura no Brasil passou a ser total

As Forças Armadas decidiram, então, proibir que a unidade de Inteligência de cada Arma fosse à caça por sua própria conta. 
Unificaram o combate à luta armada no quartel da PE da rua Barão de Mesquita (Tijuca), que passou a ser a sede do DOI-Codi/RJ, integrado por oficiais da II Seção do Exército, do Serviço de Informações da Aeronáutica (Sisa) e do Centro de Informações da Marinha (Cenimar), mais investigadores da polícia civil.
A equipe do Ailton Guimarães Jorge, até como punição pela morte do Schreier, foi alijada desse vantajoso esquema. Então, quando cheguei preso lá, em junho de 1970, aqueles rapinantes estavam desesperados com a falta de grana.
Tinham se habituado a um padrão de vida mais elevado e já não conseguiam subsistir apenas com o soldo. Tentavam por todas as maneiras convencer seus superiores de que mereciam ser readmitidos no combate à luta armada, em vão.
Foi por isso que, em 1974, a equipe de torturadores da PE da Vila Militar envolveu-se com contrabandistas: como forma de obter a renda adicional que tanto lhe fazia falta. 
Mas, tornaram-se ambiciosos demais. Tentaram roubar dos outros bandidos uma carga particularmente valiosa, houve troca de tiros e a matéria fecal foi para o ventilador...  
O Exército instaurou um Inquérito Policial-Militar contra soldados, cabos, sargentos e quatro oficiais, inclusive o tenente Ailton Joaquim (um dos 10 piores torturadores do período, segundo o Tortura Nunca Mais) e o capitão Aílton Guimarães Jorge.
JUSTIÇA POÉTICA:
QUEM COM FERRO FERE...

As investigações foram conduzidas com o método que o Exército invariavelmente utilizava. Então, aqueles notórios torturadores acabaram conhecendo na própria pele a tortura. Houve até caso de assédio sexual à esposa de um dos acusados, por parte dos seus colegas de farda!
Como o Élio Gaspari relata em A ditadura escancarada, o caso acabou, entretanto, em pizza:
"Todos os indiciados disseram em juízo que o coronel do 1PM lhes extorquira as confissões. A maioria deles sustentou que, surrados, assinaram os papéis sem lê-los. Num procedimento inédito, os oficiais do Conselho de Justiça decidiram que o processo tramitaria em segredo. Durante o julgamento a promotoria jogou a toalha, e, em maio de 1979, os 21 acusados foram absolvidos. 
O caso voltou ao STM, cinco ministros recusaram-se a relatá-lo, e, por unanimidade, confirmou-se a absolvição.

O Superior Tribunal Militar, hoje.
Nos anos 70, inocentou a gangue da PE
.

A sentença baseou-se num só argumento: ‘Tudo o que se apurou nestes autos, o foi, exclusivamente, através de confissões, declarações e depoimentos extrajudiciais, retratados e desmentidos posteriormente em juízo, sob a alegação de violências e ameaças praticadas durante o IPM'".
Ora, todos os IPMs instaurados contra os resistentes poderiam ser anulados pelos mesmíssimos motivos. Dois pesos, duas medidas.
A carreira militar do Capitão Guimarães, ficou, entretanto, comprometida. Nos quartéis, ele seria sempre visto como ovelha negra e apenas tolerado. Então, pediu baixa e foi capitanear o jogo-do-bicho, conforme narra o Gaspari:
"Coube ao bicheiro Tio Patinhas consertar a vida de Ailton Guimarães Jorge. (...) O processo do contrabando ainda tramitava (...) quando ele se transferiu formalmente para a contravenção, levando a patente por apelido e diversos colegas como colaboradores. 
Começou como gerente do banqueiro Guto, sob cujo controle estavam quatro municípios fluminenses. Um dia três visitantes misteriosos tiraram Guto de casa e sumiram com ele. (...) Tio Patinhas passou-lhe a banca. 
Em três anos o Capitão Guimarães foi de tenente a general, sentando-se no conselho dos sete grandes do bicho, redigindo as atas das reuniões, delimitando as zonas dos pequenos banqueiros. Seu território estendeu-se de Niterói ao Espírito Santo. 
Seguindo a etiqueta de legitimação social de seus pares, apadrinhou a escola de samba Unidos de Vila Isabel e virou a maior autoridade do Carnaval, presidindo a liga das escolas do Rio de Janeiro.

Tão desfigurado o Eremias ficou que
a repressão anunciou o morto errado

Rico e famoso, adquiriu uma aparência de árvore de Natal pelas cores de suas roupas e pelo ouro de seus cordões. Tornou-se um dos mais conhecidos comandantes da contravenção carioca.
Do seu tempo da PE ficou-lhe o guarda-costas, um imenso ex-cabo que, como ele, começara no crime organizado da repressão política".
Esse cabo, Marco Antônio Povorelli, pesava 140 quilos e lutava judô. No final de 1969, ao tentar prender meu companheiro Eremias Delizoicov, que tinha apenas 18 anos, foi por ele atingido com um disparo no braço. 
Povorelli e os outros torturadores/meliantes retalharam então o Eremias com 35 tiros, tornando impossível até sua identificação (só souberam quem era pelas impressões digitais).
Depois, em junho de 1970, unicamente por ter sabido que eu era amigo do Eremias desde a infância, ele fez questão de vingar-se em mim pelo final prematuro de sua carreira de judoca: estourou meu tímpano com um fortíssimo tapa de mão aberta. Nunca mais tive audição normal, apesar das três cirurgias por que passei.
Eram esses os ratos de esgoto dos quais a ditadura servia-se para combater os heróis e mártires da resistência.

* jornalista, escritor e ex-preso político. http://celsolungaretti-orebate.blogspot.com
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