Fico pensando nas profundas mudanças que pude testemunhar ao longo dos meus quase 60 anos de vida. O mundo se transformou mais radicalmente nesse período do que, digamos, do século V até o século XV.
Nasci numa sociedade patriarcal e moralista, passei pela revolução sexual e agora estou presenciando o ápice do sexo casual.
A libertação dos corpos veio com a pílula anticoncepcional, que livrou as mulheres do pesadelo da gravidez indesejada.
Mas, na decantada Geração 68, o que fizemos foi encurtar o caminho da atração para as vias de fato. Quando um homem e uma mulher se gostavam à primeira vista, podiam ir logo para a cama, sem tanta enrolação.
O clima de tolerância estendeu-se às relações homossexuais e às práticas que anteriormente muitos consideravam pervertidas, como a masturbação, o sexo oral e o anal.
Sadomasoquismo e sexo grupal havia bem menos. Troca de casais também é coisa da década de 1970 em diante.
Nós, os garotos que amávamos os Beatles e os Rolling Stones, seríamos considerados hoje puritanos. Acreditávamos que tinha de haver uma afinidade básica com a outra parte, como ponto de partida.
Nossa aposta era mais ou menos esta: sentímo-nos atraídos e vamos fazer amor, talvez pela única vez, talvez para iniciarmos uma vida a dois, dependendo do que rolar.
A expressão fazer amor, que presumo fosse de origem francesa, também caiu em desuso. Pois o sexo passou a ser encarado como uma mera descarga física, sem comprometimento emotivo. Dormimos, comemos, bebemos, defecamos, urinamos, transamos.
Lá pelo ano 2000, quando meu casamento havia agonizado e eu resolvi realizar um sonho de décadas, ser pai de uma criança com meu sangue (já criara uma adotiva), fiz constatações engraçadas ao voltar, velhusco, ao mercado amoroso.
Uma delas foi que havia moças dispostas a transar, mas não a serem beijadas. Reprimiam o envolvimento emocional como suas congêneres dos anos 50 reprimiam o físico (pelo menos, antes do casamento). As voltas que o mundo dá.
Era uma atitude típica das prostitutas do tempo em que eu era adolescente: alugavam o corpo, mas reservavam os beijos para seus namorados. Era como procediam para sentirem-se... puras.
Algumas das imbeijáveis de hoje são as profissionais com bons empregos no sistema, que fazem questão de manter vida independente. O que realmente amam é a carreira. Homens são para usar e jogar fora, como os cafajestes sempre fizeram com as mulheres.
E a moda das pulseiras do sexo leva a novo patamar a promiscuidade (não consegui evitar o termo...).
Eu já me chocara quando, nos primórdios da Aids, um texto analítico revelou a existência, na Europa, de saunas gays em que os passivos simplesmente entravam num cubículo com uma abertura para deixar o traseiro à mostra. Aí os ativos escolhiam o traseiro mais atraente e consumavam o ato, sem que um visse sequer a cara do outro.
Agora, é a sorte que decide se uma moça vai mostrar os seios, praticar felação, ser possuída na posição de missionário, etc.
Fico me lembrando de um romance profético do Carlos Heitor Cony: Pilatos (1974).
Nele, os seres humanos já não têm mais nenhum sentimento elevado. Amor, amizade, solidariedade, compaixão, esperança, dignidade, tudo isso simplesmente deixou de existir. Restaram só as necessidades físicas, única motivação que impulsiona os humanos.
Lançado em pleno milagre brasileiro, foi um desabafo contra os se omitiram face à tirania e contra os que voltaram as costas a quem lutou pelos ideais superiores do homem.
Tipo, "se é nessa podridão que vocês optaram por viver, então chafurdem à vontade, enquanto eu estarei lavando minhas mãos como Pôncio Pilatos".
Parece que dessa distopia não escapamos. Pois o mundo que o capitalismo globalizado engendrou é, em certo sentido, um inferno pamonha, como o Paulo Francis rotulou: à desigualdade, às injustiças e à desumanidade, acrescenta-se o embotamento do pensamento crítico sob a égide da indústria cultural.
E, noutro sentido, não passa de uma pocilga, com as pessoas priorizando sofregamente seus prazeres sem complementação, um sendo o objeto do outro e nada mais, estranhos que copulam e logo se distanciam, como os animais.
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* Jornalista e escritor, mantém os blogues
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