De um lado, a certeza de que 2009 transcorrerá sob recessão e a dúvida sobre se a atual crise cíclica capitalista evoluirá para uma depressão tão terrível como a da década de 1930.
Do outro, a nova demonstração bestial de força de Israel, que reage de forma exageradíssima às agressões sofridas, para transmitir aos inimigos o recado de que massacrará impiedosamente quem se-lhe opuser (mesmo tornando-se genocida aos olhos do mundo e igualando-se aos seus carrascos de outrora, os nazistas).
O baixo astral é tamanho que a imprensa brasileira está esquecendo de registrar que, em 2009, serão comemorados os 40 anos de um dos acontecimentos mais alentadores do século passado: o Festival de Música e Artes de Woodstock.
Foi uma moeda que caiu de pé: os deuses de todos os povos e de todos os tempos parecem ter-se mobilizado para que tudo desse certo durante três dias mágicos, maravilhosos, que seriam para sempre lembrados como uma amostra da perfeição possível neste sofrido planeta.
Sem favor nenhum, posso afirmar que Woodstock foi o evento musical que mais influenciou as artes e os costumes na história da humanidade. E a conjunção de fatores que o transformou em marco e lenda dificilmente se repetirá. Sorry, moçada de hoje, mas o Gilberto Gil é que estava certo: "quem não dormiu no sleeping bag/ nem sequer sonhou".
Para começar, o Festival de Woodstock foi o ponto de chegada e a culminância de vários fenômenos e acontecimentos marcantes.
A escalada norte-americana no Vietnã, ao longo da década de 60, engendrara um movimento pacifista de crescente influência entre os jovens dos EUA, com direito a manifestações de protesto, queimas de cartas de recrutamento, choques com a polícia e a uma manifestação-monstro de cerco ao Pentágono.
Em 1965, um estudante de química chamado Owsley Stanley aprendeu como fabricar ácido lisérgico no porão de sua casa e logo inundou San Francisco com o LSD, impulsionando o surgimento da geração das flores, imortalizada pela bela canção de Scott McKenzie: “Se você vier para San Francisco,/ não se esqueça de colocar/ algumas flores no seu cabelo...”
Foi aí que o movimento hippie nasceu, aglutinando jovens que recusavam o american way of life e caíam na estrada, em busca de aventuras e novas experiências.
Em termos mais profundos, pode-se lembrar que era a fase em que a crescente mecanização da indústria mais e mais dispensava o uso da força física, demolindo algumas vigas-mestras da sociedade norte-americana, toda ela construída em cima do ascetismo puritano (a negação do prazer a fim de poupar energias para o trabalho). Na década de 60, o prazer reconquistava suas prerrogativas.
Grandes festivais de rock já haviam ocorrido em Monterey (1967) e na Ilha de Wight. Este último vinha se realizando desde 1968, embora o mais marcante e lembrado seja o de 1970, quando se deu uma das últimas apresentações de Jimi Hendrix.
Quanto a públicos expressivos, também não eram novidade: o festival inglês já reunira 250 mil pessoas.
Mas, foi no de Woodstock que a indústria cultural investiu pesado, pela primeira vez. É que, com algum atraso, os mercadores das artes se deram conta de que tinham um diamante bruto ao alcance das mãos. Prepararam-se, então, para explorar em grande estilo o evento seguinte.
Por último, vale notar que ainda se vivia a época dos compactos, em que eram singles e não elepês que corriam o mundo, com a repercussão dependendo, principalmente, da divulgação nas rádios.
Pouco se conhecia da segunda onda do rock (a primeira, nos anos 50, fora a dos pioneiros Elvis Presley, Chuck Berry, Little Richard, Bill Haley, etc.).
Muitos garotos, como eu, amavam os Beatles e os Rolling Stones. De resto, haviam escutado. “The House of Rising Sun” (Animals), “Sunny” (Johnny Rivers), “A Wither Shade of Pale” (Procol Harum) e quase nada mais.
Existia uma produção musical de grande qualidade represada, não atingindo circuitos mais amplos. Seria a irrupção dessa nova geração de importantes artistas ainda relativamente desconhecidos que asseguraria a surpresa e o enorme impacto causados pelo filme Woodstock e pelo álbum triplo com registros desse evento.
BRINCANDO NA CHUVA – Foram três dias de “paz, música e amor”, de 15 a 17 de agosto de 1969, levando 450 mil jovens até a fazenda do leiteiro Max Yasgur, a 80 quilômetros de Woodstock, estado de Nova York.
Logo no primeiro dia o festival foi declarado livre: quem não tinha comprado antecipadamente o ingresso, não precisou mais fazê-lo. Com isto, os promotores tiveram US$ 100 mil de prejuízo inicial, mas acabaram saindo no lucro: o filme lhes proporcionaria um retorno imediato de US$ 17 milhões.
O torrencial aguaceiro do segundo dia foi tirado de letra pela moçada, que aproveitou para relembrar a infância, chapinhando na lama. De início se tentou afastar a chuva com a força do pensamento positivo, todo mundo gritando “No rain! No rain!”. Depois, o jeito foi se amoldar a ela, brincando de tobogã e cantando. No álbum Woodstock há dois registros disto: no disco I, o improvisado “canto da chuva”; e no II, a multidão entoando em coro o refrão “deixa o sol brilhar!”, da peça Hair.
As boas vibrações não impediram a ocorrência de três mortes: uma overdose, um atropelamento por trator e um ataque de apendicite. O guitarrista e líder do The Who, Peter Townshend, não se limitou, como de hábito, a destruir o instrumento de trabalho no final apocalíptico de sua performance; levou a fúria para os bastidores, quebrando o pau com o líder hippie Abbie Hoffman.
O evento foi processado para o cinema por Michael Wadleigh, que fez uma magnífica edição de imagens e introduziu uma novidade: a bi ou tripartição da tela, oferecendo ao espectador tomadas simultâneas do mesmo grupo, de artistas isoladamente, do público, etc.
Há, além disto, nítido empenho em situar o evento sociologicamente, ao contrário do documentário sobre o Festival de Monterey, que se ateve quase exclusivamente à música. Daí a merecida reputação de Woodstock como o filme que inovou a arte de registrar espetáculos musicais.
NEM TUDO FOI MOSTRADO – Muitos artistas deixaram de ter um número exibido no filme e no álbum triplo. Ficaram de fora Melanie, Mountain e Butterfield Blues Band, com o consolo de aparecerem no segundo álbum Woodstock, duplo, que foi lançado algum tempo depois. O Jefferson Airplane não está no filme, mas sua “Volunteers” consta do álbum triplo e teve mais canções aproveitadas no álbum duplo.
A relação dos que lá estiveram mas ficaram de fora tanto do filme quanto dos álbuns é extensa: Janis Joplin, Grateful Dead, The Band, Blood Sweat & Tears, Creedence Clearwater Revival, Incredible String Band, Johnny Winter e Ravi Shankar. Motivo: problemas contratuais.
[Agora, na onda do MP-3, tudo isso foi finalmente disponibilizado para os saudosistas dos velhos e bons tempos, bem como para os jovens que querem saber saber como era o som que os pais, tios e avós curtiram...]
Os cachês mais altos foram os de Jimi Hendrix (US$ 18 mil), Blood Sweat & Tears (US$ 15 mil), Joan Baez e Creedence Clearwater Revival (US$ 10 mil cada). Santana exibiu sua empolgante fusão de rock e sonoridades latinas, “Soul Sacrifice”, pela bagatela de 750 dólares.
O trovador John Sebastian tirou a sorte grande: não foi convidado, mas apareceu para dar uma olhada e acabou subindo ao palco quando a chuva recém-finda impedia a apresentação de bandas eletrificadas. Ganhou direito a constar do filme e do disco, além de receber mil dólares.
O Crosby, Stills, Nash & Young, que acabava de ser constituído, cativou a platéia com seu folk-rock contestador e obteve êxito instantâneo, lançando as bases da longa carreira de seus integrantes (pouco tempo como quarteto e muito mais como artistas-solo).
No extremo oposto, o Ten Years After foi a principal vítima da síndrome de Woodstock: nunca igualou os 11 esfuziantes minutos de “Goin’ Home”, que valeram para Alvin Lee a reputação de grande guitarrista.
Outra curiosidade: foi marcante a aparição de Arlo Guthrie (“Comin’ Into Los Angeles”), cuja trajetória acabaria sendo eclipsada pela de Bob Dylan. Os estilos vocais e temáticos eram semelhantes, tendo Dylan sido mais eficiente em afirmar-se como herdeiro da arte e da lenda de Woody Guthrie, o precursor dos mochileiros. Correndo na mesma faixa, ele sobrepujou o próprio filho de Woody.
A vertente negra do rock se destacou em duas performances memoráveis. Richie Havens, um talento que depois definharia, arrepiou a platéia com seu camisolão africano e a interpretação fulgurante de “Freedom”. E Jimi Hendrix, no auge de sua genialidade, puniu simbolicamente os militaristas com a implosão do hino nacional norte-americano.
Isto para não falar do herdeiro branco e britânico de Ray Charles, o chapadíssimo Joe Cocker, com sua voz poderosa e postura bizarra, sacudindo o corpo para a frente e para trás como um boneco de mola enquanto as mãos dedilhavam sem parar uma guitarra inexistente.
O rock erudito, que marcaria toda uma época, também se fez presente em Woodstock: o The Who interpretou uma compilação de faixas da ópera-rock Tommy, projetando mundialmente essa sua (para a época) extravagância: um álbum-duplo que, faixa a faixa, vai contando a história de um menino que flagra o adultério da mãe e o assassinato do pai, recebendo então a ordem de apagar aquele episódio da mente e nunca relatá-lo a ninguém. O trauma o torna cego, surdo e mudo, mas ele acaba se libertando e atingindo a iluminação.
SÍNTESE DA CONTRACULTURA – Com Woodstock ganhou repercussão ampla o movimento de paz e amor que fermentava na boêmia San Francisco desde meados daquela década, como um desdobramento lisérgico e roqueiro do antigo movimento beatnik.
Suas características externas são ressaltadas no filme:
* o amor livre e a desinibição corporal, com o nudismo sendo amplamente praticado, de forma inocente e até singela;
* a convivência harmoniosa, sem nenhum resquício de preconceito, entre indivíduos de todas as raças, credos e orientações sexuais;
* o consumo explícito e justificado (por alguns entrevistados, como Jerry Garcia) das drogas que, no entender daquela geração, abriam as “portas da percepção”;
* o visual premeditadamente desarrumado do pessoal, com suas roupas coloridas, ponchos e cabeleiras imponentes;
* a substituição dos laços familiares por uma comunidade grupal (ou, como se dizia então, tribal);
* a volta à natureza e a redescoberta do lúdico (em vários momentos, vêem-se marmanjos entregues a brincadeiras pueris, sem nenhum constrangimento);
* a profusão de crianças, pois os hippies mandavam às favas o planejamento familiar, os anticoncepcionais e os abortos, assumindo plenamente o amor e suas conseqüências;
* o solene desprezo pelas regras e valores dominantes na sociedade, que se evidencia até nas falas dos organizadores do festival, não ligando a mínima para os prejuízos que estavam ameaçados de sofrer.
De certa forma, este comportamento era inspirado por teóricos como Reich, Marcuse e Norman O. Brown, que vincularam o autoritarismo político à repressão instintiva, alegando que a liberdade era cerceada não só pelos mecanismos sociais que mantinham a estrutura de classes (visão da esquerda convencional), como também pelos condicionamentos que embotavam a imaginação e inibiam o desfrute pleno da sexualidade.
Essas teses inspiraram uma nova voga anarquista, que pregava o combate ao stablishment também no íntimo de cada pessoa. As drogas serviriam para o resgate de faculdades esquecidas devido ao desuso; e a liberalidade sexual, incluindo as práticas antes estigmatizadas como perversões (homossexualismo, sodomia, sexo oral, masturbação), seria a premissa de uma visão erótica do mundo, em substituição ao princípio da realidade freudiano.
BRASIL: COMUNIDADES E BICHOS-GRILOS – A influência de Woodstock em nosso país pode ser detectada na música (Raul Seixas, Made in Brazil, a última fase dos Mutantes), no teatro (Oficina, Tuca), na cinematografia (o chamado cinema marginal) e, sobretudo, nos costumes, com os bichos-grilos que percorriam as estradas como caronas, indo e vindo à meca de Arembepe (BA), além de criarem comunidades urbanas e rurais onde exercitavam um estilo alternativo de vida.
Essas tentativas, entretanto, esbarraram no ambiente repressivo dos anos de chumbo, o que levou, p. ex., a ser expulso do Brasil o elenco do Living Theatre de Julian Back, que supôs encontrar aqui seu paraíso tropical; e, em termos mais amplos, na própria impossibilidade de contingentes mais amplos, num país pobre como o nosso, garantirem indefinidamente seu sustento com artesanato, aulas de ioga e que tais.
A grande vitória da Geração Woodstock foi ter conseguido arrancar os Estados Unidos do Vietnã. E seu exemplo repercute até hoje no ativismo em defesa do meio ambiente e a favor de algumas causas justas.
Além disto, ela entronizou a imagem do jovem como centro do universo do consumo, em substituição ao modelo rígido do pai de família, daí derivando a descontração no vestir, no falar e no comportamento.
E ainda lançou alguns modismos que hoje estão em menor evidência, como o ioga, a macrobiótica, o ocultismo e a agricultura natural (sem defensivos e fertilizantes).
Não perduraria, entretanto, aquela militância política idealista e generosa: as gerações seguintes se desinteressaram de mudar o mundo, voltando a priorizar a ascensão profissional e social. O rock, depois de uma fase intensamente criativa e experimental, voltou aos caminhos seguros do marketing.
As drogas, ao invés de abrirem as portas da percepção, se tornaram instrumentos para a fuga à realidade e a ilusão de onipotência, cada vez mais pesadas, até que se chegou ao pesadelo do crack. E o amor livre degenerou em sexo casual, promiscuidade e AIDS.
O sonho acabou? Talvez. Mas, quem o partilhou só lamenta que haja durado tão pouco e tenha sido substituído por uma realidade tão insossa.
Eu prefiro mesmo é a postura do inesquecível Raulzito: ele nunca deixou de acreditar que a roda da fortuna giraria de novo, trazendo de volta, desta vez para ficar, o "paraíso-agora" que iluminou nossas vidas por um fugaz instante... e, mesmo assim, marcou-nos para sempre.
Oh, baby, a gente ainda nem começou!
* Jornalista e escritor, foi crítico de rock nas décadas de 1970/80, sob o pseudônimo de André Mauro. Mantém os blogs
http://celsolungaretti-orebate.blogspot.com/
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