FORA, EXÉRCITO!

O que há de tão inusitado no fato de que militares, direta ou indiretamente, causaram a morte de três favelados que não haviam cometido crime nenhum, exceto o de não lamberem suas botas?

Durante a ditadura de 1964/85, assassinatos muito mais escabrosos foram por eles cometidos às dezenas, evidenciando que, quando desafiados, é mesmo com tal truculência e bestialidade que alguns de nossos militares reagem.

Também não será novidade nenhuma a existência de  ligações perigosas  entre integrantes das Forças Armadas e a criminalidade – isto se foram mesmo os traficantes que torturaram e executaram aqueles pobres coitados. Não deve ser descartada a hipótese de que se trate apenas de uma manobra diversionista, visando repartir com civis uma culpa exclusiva dos fardados.

Vale lembrar o emblemático episódio da equipe de torturadores da PE da Vila Militar (RJ), que, na década de 1970, incorreu em associação, seguida de disputa de mercado, com contrabandistas, para compensar o esgotamento do vantajoso filão do combate à  subversão, que lhe valia gordas propinas de empresários direitistas e o direito de rapinagem dos bens dos resistentes mortos ou detidos.

Como qualquer instituição, o Exército Nacional não tem apenas um paradigma positivo (Caxias). No outro extremo há o Capitão Aílton Guimarães Jorge, que conspurcou a farda duas vezes: como torturador e como contraventor.

O pior é que, mesmo tendo sido comprovado seu envolvimento com os contrabandistas, foi absolvido por seus pares. Não o expulsaram das Forças Armadas nem mandaram a julgamento na Justiça Civil, como seriam os procedimentos cabíveis. Deixaram que saísse do Exército pela porta da frente e fosse logo bater na porta dos fundos da fortaleza do bicheiro  Tio Patinhas, iniciando a meteórica carreira que o transformou num dos reis da  loteria zoológica  e do bingo no Rio de Janeiro.

O que separa o Exército de Caxias do Exército do Capitão Guimarães não são  desvios de conduta (o eufemismo que estão usando para justificarem o atual episódio chocante), mas sim  desvios de função.

Como atestam os muitos escândalos e negociatas ocorridos (e encobertos pelo manto da censura) durante a última ditadura, os militares não são imunes à corrupção que atinge o resto da sociedade. Enquanto ficam restritos à sua missão constitucional, esperando nos quartéis a hora de defenderem a Nação contra inimigos externos, mantêm-se razoavelmente a salvo desse contágio.

No entanto, ao saírem da caserna para policiar favelas ou a sociedade como um todo, podem tornar-se uma monstruosidade: criminosos com monopólio do uso legal da força.

Foi por isso que em abril de 2007, quando o governador Sérgio Cabral mandou ofício ao presidente Lula pedindo a ajuda das Forças Armadas para “assegurar a lei e a ordem na região metropolitana do Rio”, eu adverti que haveria “os inevitáveis episódios chocantes” e que o Estado não tinha “o direito de dispor a bel-prazer da vida dos favelados inocentes” (artigo Em abril Cabral descobre... os quartéis!, 12/04/07,  http://celsolungaretti-orebate.blogspot.com).

A reação da sociedade, principalmente dos defensores dos direitos humanos, tem evitado que se consagre essa política de delegar aos militares a manutenção da ordem interna – desastrosa sempre que a tentaram implantar. Daí o subterfúgio de requisitar-se o Exército para fornecer segurança ao projeto Cimento Social no morro da Previdência, um exercício de relações-públicas visando preparar o caminho para o desejo de Cabral se tornar realidade.

Pois bem, o tiro saiu pela culatra e, em vez de agradecida, aquela comunidade carente está gritando “Fora, Exército!”.

As primeiras reações oficiais, entretanto, foram as piores possíveis: lágrimas de crocodilo em novo exercício de relações-públicas e, o que realmente conta, a continuidade da iniciativa funesta.

Até o momento em que escrevo estas linhas, a posição é de que três cidadãos torturados e mortos não bastaram para que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva desista de enfiar pela goela da sociedade adentro o desvio de função dos militares. Quantas outras atrocidades serão necessárias?


* Celso Lungaretti, 57 anos, é jornalista e escritor. Mais artigos em http://celsolungaretti-orebate.blogspot.com/

 

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