DE FALÁCIAS E MÁ FÉ

“Em um país sem memória, é muito fácil reescrever a história”, afirmou Marco Antonio Villa, que leciona tal matéria na Universidade Federal de São Carlos, em seu artigo “Falácias Sobre a Luta Armada na Ditadura” (Folha de S. Paulo, 19/05/2008).
 
Confiante nessa facilidade, Villa não se deu sequer ao trabalho de reescrevê-la de com algum apuro, como se constata neste parágrafo, o mais revelador das intenções subjacentes à sua racionália tortuosa:
 
“Argumentam que não havia outro meio de resistir à ditadura, a não ser pela força. Mais um grave equívoco: muitos dos grupos existiam antes de 1964 e outros foram criados logo depois, quando ainda havia espaço democrático (basta ver a ampla atividade cultural de 1964-1968). Ou seja, a opção pela luta armada, o desprezo pela luta política e pela participação no sistema político e a simpatia pelo foquismo guevarista antecedem o AI-5 (dezembro de 1968), quando, de fato, houve o fechamento do regime.”
 
Que grupos praticantes da luta armada existiam antes de 1964, quando golpistas armados acabaram com a democracia no Brasil, destituindo o presidente legítimo, subjugando o Congresso, extinguindo partidos e entidades legais, cassando, caçando e torturando?
 
Refere-se, talvez, às Ligas Camponesas de Francisco Julião, que buscavam timidamente e sem muita eficácia responder à violência desenfreada dos latifundiários. Ou aos  grupo dos 11  brizolistas, constituídos a partir da resistência ao golpe tentado em 1961 e que acabaram servindo apenas como espantalho útil para a propaganda direitista: nem desenvolveram ações características da luta armada, nem conseguiram evitar que a tentativa golpista seguinte fosse vitoriosa.
 
E quais foram os grupos de luta armada criados “logo depois” de instaurada a ditadura militar? A única ocorrência nessa linha se deu, na verdade,  dois anos  depois: o início de implantação de focos guerrilheiros por parte de militares expulsos das Forças Armadas, em Caparaó.
 
Descobertos em abril/1967, foram presos antes mesmo de entrarem em ação. Parafraseando Apparício Torelly, Caparaó foi a guerrilha que não existiu...
 
A luta armada começou a entrar verdadeiramente na pauta da esquerda brasileira a partir da conferência da Organização Latino-Americana de Solidariedade, em agosto de 1967. Mas, entre a conversão de Carlos Marighella a essa tese e as ações concretas, houve um hiato de vários meses.  

Então, a organização de esquerda que realmente desencadeou a luta armada acabou sendo a VPR, com um assalto a banco que teve toques de comédia de pastelão. No meu livro Náufrago da Utopia (Geração Editorial, 2005), eu reproduzi assim o relato que ouvi de um dos participantes, o marujo Cláudio de Souza Ribeiro (Matos):

— Nós, os ex-militares, estávamos todos sendo procurados, era difícil arrumar emprego. Chegou um ponto em que não havia mais como conseguir dinheiro para o dia a dia. Então, resolvemos expropriar um banco. Naquele momento foi por necessidade mesmo, não como uma opção política. Levamos duas ou três semanas preparando tudo, vigiando a agência, estudando cada detalhe. Adiamos várias vezes, sempre surgia algum imprevisto. Um dia não tínhamos dinheiro mais nem pra comer, então decidimos: é hoje! Lá dentro deu tudo certo. Mas o pessoal estava tão afobado que quase foi embora me deixando pra trás. Tive de correr atrás do veículo... 

Segundo o Matos, alguns assaltos depois a VPR decidiu assumir essas expropriações, espalhando panfletos nos locais. E o exemplo foi seguido pelo grupo do Marighella. 

O certo é que a luta armada foi secundária, quase irrelevante, ao longo de 1968. Alguns assaltos a bancos e roubo de armamentos, petardos de baixo poder destrutivo colocados na porta do consulado norte-americano e do jornal O Estado de S. Paulo, o carro-bomba lançado contra o QG do II Exército, a morte de um oficial norte-americano que cursava incógnito uma faculdade paulistana. Nem uma centena de militantes envolvidos.  

Enquanto isso, as passeatas aconteciam no Brasil inteiro e a maior delas, no RJ, conseguiu reunir 100 mil manifestantes, além dos artistas e intelectuais mais ilustres da época. Os movimentos estudantil (principalmente) e operário é que deram a tônica da resistência à ditadura militar nesse ano de notável ascensão do movimento de massas.  

Então, pelo menos em relação a 1968, Villa não está muito longe da verdade ao dizer que “a luta armada não passou de ações isoladas de assaltos a bancos, seqüestros, ataques a instalações militares e só”. Os militares preferiam minimizá-la e a opinião pública era-lhe indiferente.  

Omite, entretanto, que o movimento de massas foi enfrentado com arbitrariedades e violência crescentes  por parte da ditadura, começando pelo assassinato do jovem Edson Souto numa inofensiva passeata que tinha lugar num restaurante universitário do Rio de Janeiro. 

Seguem-se a ocupação militar do município paulista de Osasco, como se o País estivesse em estado de sítio; a  sexta-feira sangrenta  no RJ, quando 23 pessoas foram baleadas pela repressão e quatro morreram; espancamentos e humilhações a que eram submetidos manifestantes do País inteiro; a generalização das torturas, cada vez mais brutais; a prisão dos cerca de 1.200 universitários que realizavam o congresso da UNE, etc. 

Além disso, a ditadura era conivente com a atuação dos grupos paramilitares de direita, que praticaram atentados contra instituições como a OAB e a ABI, seqüestraram a atriz Norma Bengell, espancaram os atores da peça Roda-Viva e assassinaram um secundarista na  batalha da rua Maria Antônia  (quando agentes das Polícias Civil e Militar que cursavam Direito na Universidade Mackenzie, utilizando armamento privativo de suas corporações, travaram luta desigual com estudantes da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, que só tinham pedras e rojões para se defender). 

O próprio AI-5 foi uma resposta ao discurso que o deputado Márcio Moreira Alves pronunciou numa sessão quase deserta da Câmara Federal e à recusa do Congresso em permitir que ele fosse processado (com medo de que esse precedente abrisse caminho para mais cassações).   

É indiscutível que, durante todo o ano de 1968, os militares sempre usaram de força desproporcional aos desafios que recebiam, sendo eles os grandes responsáveis pela escalada de radicalização – e não os grupos guerrilheiros, cuja atuação passava quase despercebida.
 
Quanto à existência de um “espaço democrático” entre 1964 e 1968, é uma afirmação tão risível que faz lembrar a piada sobre meia-virgem – tão inexistente quanto a Batalha de Itararé.
 
Depois que se instalaram no poder com toda truculência (vale lembrar a humilhação e tortura públicas do lendário dirigente comunista Gregório Bezerra, mundialmente repudiadas) e abusaram das arbitrariedades para adequarem o cenário político a seus desígnios, os golpistas sentiram-se seguros para se comportarem como   déspotas esclarecidos  por uns tempos. Mas, já na repressão bestial às  setembradas  de 1967 a máscara caiu.
 
Da mesma forma, as artes e o pensamento só foram poupados do obscurantismo enquanto os Torquemadas ainda não haviam aquilatado sua  periculosidade. Quando a ficha lhes caiu, impuseram uma censura tão furibunda quanto ridícula (pelas intervenções desastradas em assuntos muito além de sua capacidade de compreensão).
 
O “fechamento do regime” – eufemismo para o estabelecimento no Brasil de um totalitarismo comparável ao da Alemanha nazista – criou, sim, uma situação em que “não havia outro meio de resistir à ditadura, a não ser pela força”.
 
Com o Legislativo e o Judiciário de mãos atadas, a suspensão do direito de habeas-corpus e a  licença para torturar  durante 30 dias (prazo de incomunicabilidade que, aliás, os verdugos ultrapassavam a bel-prazer, no meu caso foram 75 dias), o trabalho de massas se tornou suicida para os que o realizavam de peito aberto; e inócuo, no caso dos cautelosos que recorriam a expedientes como o de deixar panfletos nos banheiros de cinemas, restaurantes e locais de trabalho, sem nenhum resultado concreto).
 
Então, militantes do movimento de massas que não se deixaram intimidar pelo terrorismo de estado, direcionaram-se maciçamente, a partir da assinatura do AI-5, para a luta armada, com os resultados trágicos que todos conhecemos.
 
Aquele famigerado 13 de dezembro foi um divisor de águas. Dali em diante, a ditadura passou a ter como derradeira adversária a vanguarda armada e nela concentrou seu poder de fogo imensamente superior, até aniquilá-la com torturas e assassinatos (incluindo um sem-número de execuções de resistentes rendidos e indefesos).
 
A simplificação dessa história equivale à sua desfiguração – e o professor Villa sabe muito bem disso. Acreditou que ninguém percebesse a  falácia  por ele cometida ao estender aos contingentes que ingressaram na luta armada a partir do AI-5 as acusações que faz aos pioneiros.
 
E mesmo com estes foi injusto, ao omitir que os de origem militar foram privados de suas carreiras, perseguidos e levados ao desespero pelo arbítrio instaurado no País, não sendo de estranhar, portanto, que acabassem optando por ações desesperadas.
 
Até para reescrever a história é necessário algum talento. Apenas má fé não basta.


* Celso Lungaretti, 57 anos, é jornalista e escritor. Mais artigos em http://celsolungaretti-orebate.blogspot.com/

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