A AMORALIDADE COMO NORMA

Quando eu estava começando a formar minhas convicções, aos 15 anos, assisti a uma peça de teatro amador sobre Galileu Galilei, que trazia, destacada nos cartazes e no programa, uma fala que me marcou para sempre: “Há um mínimo de dignidade que não se pode negociar. Nem mesmo em troca da liberdade. Nem mesmo em troca do sol”.

Referia-se ao recuo tático do grande físico, matemático, astrônomo e filósofo italiano, que renegou sua convicção de que o Sol (e não a Terra) era o centro de nosso Universo, para obter a clemência da Inquisição. Doente e quase cego, o septuagenário Galileu fez esta concessão ao obscurantismo religioso para que sua pena de exílio fosse convertida no que hoje chamamos de prisão domiciliar.

Os homens têm enfrentado, ao longo dos séculos, o dilema moral de escolherem entre o que é certo e o que é conveniente. Às vezes, em situações ainda mais dramáticas, como a que os relatos lendários sobre a Guerra de Tróia atribuem ao rei Agamenon, quando a partida de sua monumental frota estava sendo impedida pela calmaria e um profeta lhe revelou que a deusa Ártemis exigia a vida de sua filha Ifigênia como contrapartida de ventos favoráveis.

Mas, dificilmente as opções negativas são feitas por motivos tão extremos. E, nas situações prosaicas do cotidiano, o ensinamento de Jesus Cristo continua apontando o único caminho verdadeiramente ético: “Que aproveitará ao homem ganhar o mundo inteiro se perder a sua alma?” (Mateus, 16:26).

Neste melancólico século 21, pouquíssimos hesitam em trocar a alma por dinheiro, status e poder. O capitalismo, erigindo a competitividade e a ganância em valores supremos da vida social, transforma os homens em fiéis devotos do bezerro de ouro.

A amoralidade virou norma. E existem até os que a justificam com argumentação sofisticada, como os advogados: ao representarem os piores canalhas, eles alegam que assim procedem em nome da democracia, de forma a assegurar o direito a defesa que até os nitidamente culpados têm.

Por coincidência, os piores canalhas tendem a ser os clientes que melhor remuneram os serviços advocatícios. E nunca é lembrado que todo advogado tem o direito de recusar uma causa que repugne à sua consciência, posto que outro advogado a acabará defendendo; em último caso, o juiz designará um defensor de ofício, que atuará por obrigação e não por mercenarismo.

Essas divagações me ocorreram ao ler o patético Manifesto em defesa da liberdade de Religião e do Estado de Direito, no qual o advogado Luiz Flávio Borges D’Urso invoca os mais nobres princípios para tentar colocar a opinião pública contra o Ministério Público de São Paulo, em benefício de Estevam Hernandes Filho e Sonia Haddad Moraes, autoproclamados apóstolo e bispa da Igreja Renascer.

O que se pode dizer de uma  religiosa  capaz de esconder dinheiro na sua Bíblia para burlar a alfândega? Nada além do que o Cristo já disse: “A minha casa será chamada casa de oração; vós, porém, a fazeis covil de ladrões” (Mateus, 21:13).

A liberdade de religião não justifica a omissão do Estado diante da prática continuada e comprovada do estelionato, do curandeirismo e da lavagem cerebral, como tem ocorrido até agora. A Igreja Universal do Reino de Deus já foi flagrada cometendo um rosário de crimes, sem receber a punição merecida. Continuou arrancando até o último centavo dos indivíduos sofredores e desesperados que caem em suas garras.

D’Urso esbraveja para tentar fazer com que a Renascer também escape ilesa, reforçando o ceticismo da população quanto à possibilidade de se colocar na prisão os criminosos de colarinho branco: aqueles que são ricos, detentores de bancadas legislativas e donos de emissoras de TV.

Presidente da seccional paulista da OAB, D’Urso foi o principal articulador do suspeito e fracassado movimento Cansei. Mas, parece não compartilhar do nosso cansaço com a impunidade dos exploradores da fé popular e dos poderosos em geral – que, esta sim, é uma gravíssima ameaça ao Estado de Direito, pois faz a população descrer das soluções civilizadas e ansiar pelas tropas de elite do autoritarismo.

* Celso Lungaretti é jornalista e escritor. Mais artigos em http://celsolungaretti-orebate.blogspot.com/

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