Em boa parte dessa população, o cidadão considerado pobre, além de pobre financeiramente é pobre também de espírito e não releva nada do seu semelhante ou tampouco procura saber da verdade ou razão dos fatos geradores das intrigas para resolução em conversa com a parte adversa, como pessoas civilizadas. De tudo procura a Delegacia, sempre pensa estar com a razão e quer solução imediata, por vezes relacionada a problemas esdrúxulos e sem sentido algum, como é o presente caso em que um cidadão chegou aflito querendo providencia da Polícia em uma das unidades que trabalhei:
- Doutor, eu amanheci vestido com essa calcinha e com a regueira da bunda toda “melada” de gala e quero as providencias da Polícia porque fui estuprado ontem à noite por três fuleiros que eram meus amigos... Quero que aqueles fios do cabrunco e do estopô balaio da peste sejam presos...
Observando de relance (sem encostar perto) a calcinha que o cidadão mostrava e até cheirava dizendo ter cheiro de gala e que trazia consigo como prova material do pretenso crime, aparentemente estava com resquícios de uma substancia meio grudenta, gosmenta, parecendo realmente ser esperma. Entretanto, pela compleição física da suposta vítima não dava margem de quaisquer suspeitas para a prática do crime de estupro, vez que o cidadão apesar de ter 55 anos de idade demonstrava ter uns 67, além de ser maltrapilho, imundo, fedorento, desdentado, zarolho, esquelético, mas de barriga inchada cheia de vermes, zambeta, bunda seca, barbudo e cabeludo parecendo ter vastas criações de piolhos de toda espécie e qualidade possíveis, um estrupício chupando limão, uma verdadeira bagaceira em final de feira, um arremedo de defunto em decomposição que tinha se esquecido de se enterrar. Então confabulei para não rir da excêntrica situação:
- Quer dizer que o senhor amanheceu vestido com essa bonita calcinha de rendas vermelha e supostamente com a bunda cheia de uma substancia parecida com esperma, por isso acha que foi estuprado pelos seus amigos?... Conte-me esse fato direito para ver se eu entendo como é que foi esse crime.
- Eu e mais três amigos invadimos um terreno lá no Goré, na beira do rio e construímos um cercado no mangue seco onde guardamos o que de melhor achamos pelas ruas e nas lixeiras, como latinhas de cervejas, metais, garrafas de plástico, papelão e tudo mais que se aproveita na reciclagem, e quando já tem uma boa quantidade a gente vende, divide o dinheiro e compra os mantimentos para o nosso viver...
- Então vocês fizeram uma espécie de cooperativa, não é verdade?... Mas vamos ao que interessa... Ao estupro.
- Cada um de nós tem um barraco separado e moramos vizinhos ali mesmo na invasão onde juntamos o material. Dois deles tem mulher e uma ruma de filhos, eu e o outro não... Quando a gente vende o estoque sempre há comemoração e ontem foi esse dia... A gente comprou duas garrafas de cachaça pra se divertir, daí não sei mais o que aconteceu porque fiquei bêbado e dormi. Quando me acordei estava nessa situação... De calcinha e todo melado de gala... Fiz a maior arruaça lá, mas aí eles ficaram mangando da minha cara dizendo que tinham arrancado meu cabaço... Como não quero matar ninguém estou aqui pedindo ajuda da policia... Ainda nem me lavei e estou com a bunda toda grudada e melada de gala... Se o senhor quiser pode mandar fazer exame...
- Vamos fazer o seguinte cidadão: Primeiro eu quero ouvir também esses seus amigos antes de tomar qualquer posição... Eles estão lá agora ou estão pelas ruas catando lixo?...
- Com toda certeza que eles estão lá, doutor, porque todas as vezes que a gente ganha algum dinheiro passa dois dias sem trabalhar, só bebendo...
Mandei duas viaturas ao local. Os policiais trouxeram além dos três acusados, as duas mulheres que fizeram questão de acompanhá-los como testemunhas e no meu gabinete um deles explicou o pretenso estupro do cidadão:
- Foi só uma brincadeira, doutor... Como ele não aguentou a cachaça e apagou de vez, então tiramos a roupa dele, colocamos a clara de três ovos na regueira da bunda dele e vestimos essa calcinha vermelha nele que foi da minha mulher... Era tudo pra ele pensar que realmente a gente tinha comido o rabo dele... O senhor nos desculpe doutor...
E então desabafou a suposta vítima:
- Eu não gosto desse tipo de brincadeira, por isso vou embora e quero a minha parte do barraco e das coisas que vão ficar com eles...
Daí uma das mulheres interferiu:
- Deixa de besteira rapaz!... A idéia da brincadeira foi minha... A gente gosta de você... Além do mais você não tem pra onde ir... Você é que nem um urubu no mundo, sem casa, sem ninguém, sem nada, só tem a gente... Prefere morar debaixo de uma ponte só por causa de uma besteira dessa?... Vamos voltar pra lá e “rebater a bucha”... Botei o arroz e o feijão no fogo e até tira-gosto já aprontei... Vamos deixar o doutor trabalhar em paz que ele tem mais o que fazer.
Autor: Archimedes Marques (Delegado de Policia Civil no Estado de Sergipe. Pós-Graduado em Gestão Estratégica de Segurança Pública pela Universidade Federal de Sergipe) Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.